sábado, 30 de agosto de 2014

BREVE PONTO DE ORDEM ORÇAMENTAL

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Tem sido uma tal sucessão de acontecimentos, declarações, comentários e números em catadupa que já poucos portugueses ainda tentam perceber algo que lhes sustente o seu cada vez mais vernáculo desabafo contra os políticos e o estado caótico em que tudo isto se encontra. Tento aqui algum esclarecimento, tomando apenas por referência os elementos factuais mais recentes.

Vejamos: em meados do mês, tivemos uma decisão do Tribunal Constitucional (TC) obrigando o Governo a repor salários de funcionários públicos e impedindo a tributação dos subsídios de doença e de desemprego, assim como os cortes nas pensões de viuvez; uma semana atrás, foi feita a divulgada da estimativa de execução orçamental relativa aos primeiros sete meses do ano; e, há dois dias, foi apresentado o segundo Orçamento de Estado Retificativo de 2014.

É óbvio que os termos da decisão do TC sempre teriam de ter implicações orçamentais negativas, pelo que a única questão de que se quis fazer polémica foi a de saber se o TC era o inviabilizador geral da árdua tarefa de consolidação que estava a ser levada a cabo por diligência governativa (a nova “força de bloqueio”, para citar Cavaco) – como sublinharam Passos e muitos dos seus apaniguados – ou se do seu acórdão apenas provinha algum acréscimo de dificuldades (aliás há muito anunciadas pelos especialistas) para a teimosa aplicação pelo Governo de uma “estratégia” de austeridade largamente assente na penalização de funcionários públicos e pensionistas – o que foi o caso, como veremos.

Por um lado, a síntese da execução orçamental de julho já evidenciava quanto o Governo vinha laborando em claro arrepio das suas próprias previsões. Com efeito, os dois gráficos abaixo (a laranja, as taxas de crescimento a que o Governo se comprometeu em início do ano, aquando do primeiro orçamento retificativo de 2014; a verde, as taxas de crescimento efetivamente verificadas nestes primeiros sete meses do ano) mostram bem como assim é a vários títulos e, muito especialmente, em domínios que nada têm a ver com a interferência do TC: impostos em sobredose (receita fiscal prevista diminuir em 2,5% e realmente aumentada em 4%, p.e.) e incapacidade de contenção da despesa do Estado tout court (a chamada aquisição pública de bens e serviços – algo não muito diverso dos celebérrimos consumos intermédios de outrora, i.e., uma rubrica de despesa que deixa de fora os gastos com o pessoal, com transferências e com juros – foi anunciada como indo estar em queda de 10% e regista um sinal contrário, subindo 0,4%).



Por outro lado, a recentíssima apresentação do segundo orçamento retificativo de 2014 e as correspondentes explicações de Albuquerque sobre o mesmo vieram confirmar não apenas a dimensão da folga orçamental (que não existe segundo a ministra das Finanças enquanto houver défice, batize-a então como lhe aprouver) em vias de ser garantida pela ligeira melhoria registada na atividade económica e no emprego (um encaixe adicional de 0,7% do PIB, cerca de 1000 milhões de euros, em impostos e de 0,3% do PIB, cerca de 500 milhões de euros, em descontos para a Segurança Social) mas também, e sobretudo, a existência assumida de desvios na despesa que vão largamente para além dos decorrentes da decisão do TC.


Muito mais haveria a procurar discernir em todo este emaranhado de complicações em que estamos metidos. Mas o que acima fica dito será certamente já o bastante para que por aqui nos fiquemos, deixando absolutamente claros os excessos austeritários em curso e a incapacidade governamental no tocante a um controlo da despesa pública que anteriormente era considerado necessário e simples. E ainda que a contabilidade não permite que o bode expiatório do TC pegue ao ponto que sugerem, referem, proclamam ou decretam Passos, Portas, Albuquerque, Pires, Montenegro e tantas outras finíssimas figuras da nossa pauperrimamente escrutinada democracia – porque Passos, mais do que apontar o dedo acusador ao TC, devia preferencialmente assumir o banho gelado que lhe permitiria maior legitimidade na subsequente nomeação dos seus tão amados contribuintes...

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