(Uma excelente VISITA GUIADA na RTP 2 da passada segunda-feira de Paula Moura Pinheiro sobre Barrancos, cuja visualização recomendo vivamente para compreender melhor a identidade própria daquele remoto interior, levou-me a trazer para a reflexão os territórios raianos, um pouco esquecidos por estes dias nas reflexões sobre o território ibérico. Tenho de reconhecer que o território raiano em que passamos longas horas da nossa também já longa vida, Seixas com o Monte de Santa Tecla permanente no horizonte visual está longe de apresentar o abandono e esquecimento de outros territórios raianos mais longínquos. A evidência é segura e esse foi o traço diferenciador que os trabalhos iniciais de cooperação entre a Galiza e o Norte de Portugal em que tive o enorme prazer vivencial de participar quiseram destacar. O relacionamento transfronteiriço em territórios de mais elevada densidade populacional apresenta um outro potencial que é fundamental capitalizar, sobretudo com medidas de capilaridade para transformar em mobilidade a atração natural pelo lado de lá. A nova Presidente da Câmara de Caminha (AD) insiste na velha ideia da ponte em Caminha e La Guardia, esquecendo que o contexto ambiental é hoje outro e que muito provavelmente a preservação do estuário do Minho é incompatível com essa inventiva infraestrutural. Veremos o que os estudos prometidos pela autarca irão determinar.).
Com os territórios raianos mais longínquos e menos densos a exigirem que não os devotemos ao mais profundo esquecimento, apenas interrompido quando alguma escapadela de fim de semana os relembra, dei de caras com um belo artigo de Nuno Nabais Freire na VOZ DE GALICIA, que vem mesmo a propósito e do qual tomo a liberdade de citar um longo excerto para responder a essa necessidade – não esquecer os territórios raianos:
“(…) Da Galiza interior até ao Sabugal português observa-se que a partir do ponto em que a linha política termina, começa o relato partilhado da diáspora, o contrabando e as línguas mestiças. A crise que a Galiza esvaziada vive com a perda das suas falas, dos seus mitos e das suas romarias é o espelho fiel do drama replicado ao longo de toda a fronteira. É a perda da identidade coletiva que nos une como espaço ibérico.
As grandes políticas de coesão invertem a geografia física, pontes, estradas e ligações de alta velocidade. Todavia, falham redondamente não financiando a geografia da alma. De nada serve uma estrada imponente se não existir nada nas aldeias de A Gudiña, Laza ou Viana do Bolo para contar a história do lugar que conecta. O problema que enfrentamos na Galiza e no norte de Portugal é um esquecimento institucionalizado que dá prioridade à economia de escala em detrimento do património imaterial.
Quando uma aldeia na raia se esvazia, não perdemos apenas casas, perdemos um arquivo irrecuperável. Perdemos o léxico único, a receita ancestral e principalmente a lenda fundacional que dá sentido a esse território. A autenticidade do relato é o último recurso valioso e esse relato está prestes a ser silenciado para sempre.
A reflexão deve ir além da tristeza rural. Estamos a assistir a uma segunda, e mais subtil, forma de extinção: a erosão digital da memória.
Em toda a faixa ibérica, as lendas falam das mouras encantadas, figuras míticas ligadas a tesouros e fontes. Hoje, o perigo veste-se de algoritmo. A moura, o mito que devora a identidade, não precisa já de um poço de água, agora esconde-se no GPS, nas aplicações de genealogia que mercantilizam as raízes e nos marcadores (pins) do Google Maps que reduzem um santuário a um mero ponto de selfie.
Georreferenciando cada canto, digitalizando a memória sem o contexto da voz humana que a transmite, corremos o risco de vender a alma da raia, peça por peça, no mercado global do esquecimento. O profano inverte-se, o sagrado reside agora na resistência a não registá-lo totalmente, a não atraiçoar a tradição oral com a frieza do dado digital.
A cultura e, em particular, a literatura devem assumir a função de georreferenciar a alma destes lugares através da arte antes que desapareçam.
O silencio das aldeias da raia é um grito de auxílio, dirigido não apenas a Lisboa ou Madrid, mas também a Bruxelas. A União Europeia deve financiar o resgate ativo do património imaterial, reconhecendo que a raia não é a periferia das nações, mas antes o coração vibrante da identidade ibérica partilhada.
Se não convertermos esse silêncio em palavra, em literatura, em teatro, em arte digital, não será apenas a raia que se apaga, mas também uma parte insubstituível da memória coletiva europeia que a modernidade, ironicamente, está a acelerar.”
Pode dizer-se que se trata de uma reflexão plena de nostalgia. Sabemos que nem sempre a nostalgia é boa conselheira da ação. Mas, neste caso, acho que nos podemos inspirar nesta reflexão para um programa de ação sobre a raia que não invente infraestruturas de conexão onde elas já existem. Estarão aqui os possíveis fundamentos para um ambicioso programa de animação imaterial destes territórios.

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