quinta-feira, 24 de abril de 2025

INDIFERENÇA E CONTRADIÇÕES

 

                                                        (Diário de Notícias)

(Estou em crer que acabarei a minha vida profissional na área do planeamento e continuarei a ler notícias sobre a crise dos excedentes de vinho na região demarcada do Douro. Já muito atrás no tempo, o tema dos vinhos do Douro e do Porto encheu-me de entusiasmo por poder contribuir com um diagnóstico arejado da situação estrutural vivida por aquela região vitícola e já aqui referi diversas vezes que acabou por ser das experiências mais ricas que tive de trabalho no terreno e de envolvimento com stakeholders de grande sensibilidade e sabedoria, que passei a considerar de Grandes Senhores do Vinho. A minha sensibilidade para o tema começou bem antes dos estudos estratégicos setoriais que tive oportunidade de coordenar, primeiro para o IVDP e depois para a Associação das Empresas do Vinho do Porto. Ela começou com a minha participação nos estudos preliminares da preparação da candidatura a património UNESCO da região demarcada, estudos esses que deram origem posteriormente aos estudos da candidatura propriamente dita liderados pelo Professor Bianchi de Aguiar da UTAD. Tal como acontece, regra geral, com situações estruturais que vão perdurando sem qualquer ensaio de solução, paulatinamente vai sendo gerada uma situação de indiferença perante o problema, pois a permanência dos diagnósticos ao longo do tempo vai criando em alguns a ideia de que as coisas não estarão assim tão mal, pois, caso contrário, já teriam rebentado de vez. A referida indiferença vai-se alimentando da inércia, mas no seio dessa inércia desenvolvem-se estratégias diversificadas de sobrevivência, cavalgando ilegalidades ou informalidades que estão paredes meias com essa possível ilegalidade. Tudo isso acontece porque sobretudo o mundo do vinho do Porto é altamente regulado e os recursos humanos disponíveis para a fiscalização de procedimentos no terreno a cargo do IVDP vão escasseando cada vez mais. Por outro lado, ainda não consegui entender o que é que o ressurgimento da velha e malfadada Casa do Douro trouxe à resolução do problema. Podem perguntar-me: porquê então regressar ao tema com mais um post? Faço-o porque, além da indiferença e inércia instaladas, existe agora a evidência de que não só não se perfilam soluções para o problema estrutural, como a política pública está a suscitar novas contradições. E isso merece um novo comentário.)

Recordemos para já o problema central. Existe um excedente de produção de vinho na Região, seja porque a procura de Vinho do Porto está desde há muito tempo a abrandar implicando aumento de valor por garrafa e nunca aumento de produção física, seja porque os chamados vinhos do Douro tão sedutores na sua qualidade de topo também não conseguem absorver todas as uvas cultivadas.

Já no tempo dos estudos que coordenei era evidente que o benefício atribuído no âmbito do Vinho do Porto, originalmente concebido em função de uma classificação multicritério de uvas segundo o padrão de localização das vinhas para garantir a melhor qualidade ao Vinho do Porto, se transformara numa boia de salvação para os pequenos produtores com produção coberta pelas classes de melhor qualidade. Entender como é que uma parte significativa das uvas subsidiadas acaba por ser aplicada na produção de vinhos do Douro implicaria um longo curso de aprendizagem das práticas de sobrevivência que se desenvolvem na Região, tamanha é a complexidade dos processos que lhe estão subjacentes. Devo confessar que depois de ouvir sucessivas histórias concretas em trabalho de terreno rapidamente cheguei à conclusão de que nunca entenderia plenamente a diversidade dessas práticas. A sobrevivência exercita a imaginação.

O excedente permanente de vinho na Região coloca os pequenos produtores numa situação de risco permanente, levando a que alguns destes produtores que não consigam obter benefício decidam não colher as uvas, pois evitam pelo menos o prejuízo da vindima.

E o problema é que os vinhos do Douro tão sedutores no seu charme comunicacional acabam também eles por viver uma situação insustentável, pagam a uva que transformam a preços incompatíveis com a justa remuneração aos produtores, estimulando estratégia de competitividade-preço em detrimento da competitividade-valor.

O montante de benefício anual é ajustado em função do que é conhecido em matéria de excedentes e de comportamento da procura, acabando por ser um instrumento de controlo da produção. Com redução do benefício, a experiência mostra que se entra no “salve-se quem puder”. Outras vias têm sido ensaiadas como a de autorizar a transformação de uvas em aguardente, fazendo com que o Vinho do Porto recorra a aguardente da Região e não a aguardente importada. Mas tudo isto não consegue resolver estruturalmente o problema do excedente real e sistematicamente reavivado a cada ano em que se prepara a aplicação do salvífico benefício.

O problema persiste, mas só um grande especialista e muito atento consegue acompanhar a profusão de marcas Douro que vão aparecendo no mercado. A indiferença e a inércia coexistem paradoxalmente com um mercado cada vez mais diversificado.

Mas há gente lúcida no Douro a pensar diferente e a tentar abanar a inércia. Pedro Garcias é um jornalista e pequeno produtor no Douro que leio bastante, pois houvesse muitos Pedros no Douro com esta lucidez e a Região estaria melhor.
É a ele que recorro, pois no seio de toda esta indiferença é uma das raras vozes que denunciou a estranha contradição de num universo de excedentes a política pública estar a autorizar a plantação de novas vinhas. Atentemos no realismo do seu raciocínio:

“Um país a nadar em vinho e um ministro a sonhar à João Félix (…)

Irracional é a decisão do Ministério da Agricultura de, nesta conjuntura, conceder direitos de plantação para mais 2415 hectares de novas vinhas durante este ano. Este regime de autorizações anuais graciosas enquadra-se nos objetivos da União Europeia de não perder quota de vinha e está previsto que vigore pelo menos até 2045. Mas até a Comissão Europeia já percebeu que é um contrassenso plantar mais vinha quando o mundo regurgita de vinho. José Manuel Fernandes, que tutela o Instituto da Vinha e do Vinho, acha que não. Acha que é necessário aumentar a oferta, quando o país está a abarrotar de vinho e há uma nova vindima à porta, que, se for generosa (e a abundância de chuva aponta para isso), pode agravar ainda mais o problema”.

Compreendem agora que não existe apenas indiferença e inércia. Temos o disparate instalado.


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