(Quem lê regularmente e com alguma atenção os meus modestos escritos para memória futura neste espaço de reflexão já compreendeu que a crescente presença das agendas iliberais e autoritárias por esse mundo fora, com particular incidência na Europa e na deriva que se anunciava nos EUA domina já há algum tempo as minhas mais salientes preocupações. Se pararmos um pouco para um rápido flashback pelo menos da última ou duas últimas décadas, rebobinando o tempo da atenção que prestámos aos acontecimentos, emerge claramente a conclusão de que não terá sido por falta de avisos fundamentados que alguns passaram ao lado do que ocultamente primeiro e aos olhos de todos depois estava a acontecer. Recordo, por exemplo, o que os escritos de Anne Applebaum, a intelectual e jornalista da Atlantic, nos trouxeram sobre a iliberalização e progressivo autoritarismo do leste europeu, com foco na Hungria de Orbán e o efeito viral que essa orientação estava a provocar no chamado grupo de Visograd. Basta percorrer os últimos acontecimentos político-eleitorais por essas ou próximas paragens, Roménia, Polónia e Eslováquia, para compreendermos como Applebaum estava certa na sua análise. Mas outras vias foram-nos propostas para compreender as tendências ocultas que nos cercavam. É o caso, por exemplo, do que a tecnologia digital poderia ocultar em termos de controlo social e de ameaças à liberdade. A excêntrica Shoshana Zuboff com o seu “The age of Surveillance Capitalism” (Profile Books, 2019) deu o mote para essa via de reflexão, que haveria de revelar-se prolixa em termos de investigação. O que eu quero dizer com isto é que a deriva iliberal e autocrática em afirmação progressiva foi desde há algum tempo diagnosticada e que não foi por falta de investigação sobre o tema que podemos justificar a desatenção do mundo liberal e democrático para com as ameaças que pairavam sobre as suas cabeças. É nesse âmbito que tenho desenvolvido a talvez obsessiva procura de contrapontos e exemplos na história que nos permitam compreender como é que a degenerescência das instituições democráticas favorece ou dá origem aos tais Cavalos de Troia de que tenho falado, hoje confortavelmente instalados no seio das sociedades democráticas que dávamos por estáveis e adquiridas.)
(Shoshona Zuboff)
Dos meus estudos de economia do desenvolvimento, em que a história é uma dimensão relevante das relações de causalidade (“history matters”), tenho claro que a analogia entre diferentes processos históricos tem sempre de ser utilizada com muita cautela. A contextualização dos processos submetidos à análise comparativa é um elemento fundamental das relações de causalidade que se pretendem reafirmar através da analogia. Muitas vezes, a preguiça analítica impede-nos de ir fundo na explicação da importância exercida pelo contexto da época estudada nos acontecimentos que pretendemos transpor precocemente para outros contextos históricos. Todo este introito é por mim invocado para situar a minha obsessão recente por estudar um pouco mais a fundo o período que na Alemanha conduziu à ascensão do nazismo ao poder, em grande medida confundido com a chamada República de Weimar e sobretudo com a degenerescência das instituições democráticas nesse período, que haveriam de colapsar e colocar uma passadeira vermelha ao nazismo de Hitler e seus próximos.
Nesta minha procura, não me move qualquer propósito determinista. Sei que a República de Weimar é antecedida por uma Primeira Guerra Mundial e que nas negociações que castigaram a Alemanha pela sua ousadia bélica (que levariam às negociações e ao Tratado de Versalhes) um Grande Economista, John Maynard Keynes, levantou a sua voz, avisando os aliados vencedores para os riscos de submeter a Alemanha a indemnizações que manifestamente ela não poderia solventemente pagar. Por isso, já escrevi repetidas vezes neste bloque que a obra “The Economic Consequences of the Peace” de autoria de Keynes (recomendo vivamente a edição que tem uma introdução de Paul A. Volcker) deveria ser considerada leitura obrigatória para qualquer formação básica em Economia.
A sequência causal de efeitos das indemnizações impostas à Alemanha no agravamento das dificuldades macroeconómicas e sociais da República de Weimar nunca poderão ser esquecidas por alguém interessado na análise comparativa dessa derrocada com as ameaças que hoje pairam sobre as democracias ocidentais. Como é óbvio, não existem hoje fenómenos de magnitude similar às da 1ª Guerra Mundial e consequentes indemnizações impostas aos derrotados. Mas tendo isso em mente, é fundamental compreender o que efetivamente aconteceu nesse contexto pós 1ª Guerra e pós-Versalhes. Talvez essa compreensão nos inspire a compreender melhor as ameaças de hoje.
É nesse sentido que nas abertas do meu ainda intenso trabalho profissional tenho procurado conhecimento que me ajude nessa tarefa. É nestes momentos que uma regularidade histórica pessoal me fascina. Regra geral, nestes momentos de procura sistemática e guiada por um objetivo a atingir, os meus algoritmos informais de busca levam-me sempre a propostas de leitura das quais mais tarde registo com prazer e alguma admiração como me foram úteis na busca do conhecimento pretendido.
É o caso de duas obras que me chegaram ao conhecimento por via das minhas buscas algoritmizadas pela minha própria experiência de leitura e de influências multidisciplinares cruzadas.
A primeira é uma obra publicada em alemão em Munique em 2024 e que consultei em edição espanhola de 2025 da Taurus, de autoria de Volker Ullrich. Chama-se em português “O Fracasso da República de Weimar – as horas fatídicas de uma democracia”. É uma leitura fundamental para ter uma compreensão global articulada de todo o processo que levou à ascensão do nazismo. Dos meus tempos de passagem intelectual pelo marxismo, lembro-me de escritos de Rosa Luxemburgo sobre o período mais violento desses acontecimentos de guerra civil, mas a obra de Ullrich situa esses acontecimentos no âmbito de uma compreensão global de todas as transformações da época. Numa palavra, fundamental para compreender o contexto único, mas inspirador da República de Weimar.
A segunda obra é mais curiosa e claramente fora da caixa. Trata-se da obra de Charlotte Beradt, jornalista progressista em Berlim, de ascendência judia, no ano de ascensão ao poder do nazismo, originalmente publicada em 1966 e agora reeditada em 2025 pela Princeton University Press, com prefácio (excelente prefácio) do poeta iraquiano Dunya Mikhail. Mas o que é que esta obra tem de novidade? O seu título anuncia-nos essa novidade: “O Terceiro Reich dos Sonhos – os Pesadelos de uma Nação”.
É, de facto, uma investigação desconcertante sobre uma ideia notável, mas aterradora. A jornalista progressista Charlotte Beradt começa, nos dias imediatamente após a tomada do poder por Hitler, a ter uns tremendos sonhos e pesadelos que antecipavam, sabemo-lo agora, todos os terrores e privação da liberdade que o nazismo haveria de impor aos que pretendia aniquilar. É nesse contexto que a jornalista pensa que, se ela está a passar por essa experiência aterradora de antecipação dos horrores nazis, seguramente que outras pessoas das suas relações, vizinhança ou proximidade estarão também a passar pelo mesmo. O livro não é mais do que o relato sistemático desses sonhos e pesadelos de todos os indivíduos que quiseram partilhar com Charlotte Beradt a sua experiência. É como se a ideologia opressora nazi cavasse fundo na privacidade de cada um, invadindo os próprios sonhos e mostrando que a sua influência se estenderia ao domínio do sono. A história pessoal da jornalista é cruzada com as experiências de cada sonho, mas o importante é a alegoria de que a opressão invadia os caminhos mais profundos da privacidade, como se os indivíduos aterrados pelos seus próprios pesadelos duvidassem da “legalidade” de ter aqueles pesadelos. O caráter invasivo do totalitarismo é aqui descrito de forma original e notável, alertando-nos para quão profunda pode ser essa influência opressiva.




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