terça-feira, 30 de setembro de 2025

ILITERACIA BÁSICA

Acabei de ler o excelente relatório da OCDE “Education at a glance – 2025”, já um clássico na matéria. Dele quero reproduzir hoje um detalhe que reputo de eloquente quanto ao estado da espessura intelectual que grassa na população adulta portuguesa e assim se torna elucidativa das razões que levam uma parte significativa dos nossos cidadãos a embarcar em discursos populistas desinseridos da verdadeira realidade que os envolve e tendentes a procurar culpabilizações imediatistas, irracionais e imprudentes perante o estado a que “Isto” chegou. Veja-se acima que, numa amostra de 28 países, Portugal surge colocado num desonroso penúltimo lugar no tocante a um domínio designado por “proficiência em literacia entre adultos”; mais em concreto, 46% dos nossos concidadãos caem nos dois níveis mais baixos de literacia (ou, na realidade, numa zona de manifesta iliteracia), contra 28% para a média da OCDE e, por exemplo, 21% para a Estónia, 23% para a Eslováquia, 26% para a Chéquia, 29% para a Croácia, 33% para a Espanha e a Hungria, 35% para a Letónia, 39% para a Lituânia ou 41% para a Polónia, para apenas salientar as nações cuja comparabilidade é necessariamente maior. Se a este dado adicionarmos o que decorre de uma consideração alternativa dos três níveis mais baixos, em que Portugal vê posicionados 79% dos seus cidadãos em idade ativa (contra 59% em termos de média da OCDE), não pode deixar de nos ficar um amargo de boca quanto à impreparação e ignorância que reina na sociedade de que somos parte e, repito-o, quanto ao modo primário como esta age e funciona, com a classe política a ser uma mera e compatível expressão do caráter incipiente, desligado e tosco das dominantes reações individuais e coletivas que fazem a nossa vivência quotidiana.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

E NAS CAPITAIS DE DISTRITO?

(Elaboração própria a partir de https://www.cne.pt)

Mais uma apresentação de resultados prováveis e possíveis nas próximas Autárquicas. Em causa, desta vez, as dezoito capitais de distrito – uma designação caducada mas que persistimos em não enterrar, fruto da nossa “inconsistência institucional” – e um mix diferentemente conseguido de aritmética eleitoral afinada com dados locais e algumas sondagens que se vão conhecendo. Na infografia acima, a situação vigente (8 presidências do PSD, 5 do PS, 3 da CDU e 2 de movimentos de cidadãos independentes) e a que resultaria de uma transposição do desfecho das últimas Legislativas (15 vitórias da AD e 3 do Chega, neste caso Setúbal, Beja e Faro) são postas em confronto com o cenário a que atribuo maior grau de probabilidade (PSD a passar de 8 para dez câmaras, PS de 5 para 6 e vitória de 2 de movimentos de cidadãos independentes) – de notar, neste quadro, que as capitais de distrito em que o Chega alcançou vitória em maio passado beneficiariam de três efeitos locais relevantemente desfavoráveis à extrema-direita, a candidatura da ex-presidente comunista (Maria das Dores Meira) com apoio do PSD em Setúbal, a última candidatura de um incumbente apreciado em Beja (Paulo Arsénio do PS) e a candidatura em Faro de um autarca prestigiado e com obra feita no concelho vizinho de Olhão (António Miguel Pina do PS); por outro lado, o efeito incumbente tenderia a prevalecer na maioria dos casos, sendo exceções o desvio de Vila Real, Porto e Setúbal para o PSD, de Coimbra para o PS e de Évora para um movimento independente; por fim, o PCP perderia as presidências que detém.

 

Dito isto, não quero deixar de sublinhar que a indeterminação fundamental que apontei em post anterior como sendo dominadora em Lisboa fica claramente à vista em mais alguns destes municípios, que conhecerão certamente vitórias tangenciais ou só apuráveis ao soar da meia-noite. Tal é em especial o caso de seis deles em que parece incontornável uma disputa tripartida taco-a-taco, a saber: Faro, Leiria, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo e Viseu. Neste sentido, dois cenários menos prováveis mas a não excluir são reproduzidos abaixo, um com hegemonia do PSD mas três presidências obtidas pelo Chega e o outro, de autêntico pesadelo, com hegemonia de um Chega vencedor em todos os concelhos em que tal se apresenta aritmeticamente factível e um PS quase completamente arredado de poderes presidenciais. Fica o alerta!

(Elaboração própria a partir de https://www.cne.pt)

QUE BEM SOUBE GANHAR A RYDER CUP!

 

(O golfe é em terras civilizadas um desporto de boas maneiras. Há muita gente que o considera elitista, mas basta assistir a uma transmissão televisiva de três dias e observar o entusiasmo e a dedicação do público para compreendermos que essa ideia do elitismo está errada. Não podemos ver o elitismo pelos chorudos prémios dos principais protagonistas. Isso também acontece noutras modalidades e não as consideramos elitistas. A Ryder Cup deste último fim de semana, realizada em Nova Iorque, tinha um sabor especial, pois ela nunca tinha sido travada com tanta animosidade política entre os EUA e a Europa. Poderia temer-se o pior, pois o ambiente político na América do Norte alimenta os comportamentos mais violentos. Pois se podia antecipar-se o pior ele verificou-se. A campanha de intimidação que foi perpetrada contra os jogadores europeus e contra as suas famílias que os apoiaram nos campos é do pior que se viu algumas vez num torneio de golfe. A mulher de Rory McIlroy foi vítima de uma intensa perseguição e foi mesmo atingida por uma lata de cerveja deliberadamente atirada na sua direção. O ambiente reinante era de pressão violenta, tanto mais que o resultado começou a pender para as duplas europeias, atingindo no final evidências de dramatismo sem precedentes. Bastaria assistir no final à dança do irlandês Shane Lowry a festejar a consumação da vitória para compreender o seu mais amplo significado. A violência verbal observada entre os espetadores americanos não pode ser dissociada do ambiente particular em que a sociedade americana, pejada de símbolos e ímpetos nacionalistas, se encontra. Por isso, a vitória europeia soube tão bem. Tão bem como a vitória dos pró-europeus na Moldova com maioria absoluta, numa prova de confiança extraordinária na Europa. Será que estaremos à altura para corresponder a esta fabulosa e corajosa prova de confiança?)

 

A QUALIDADE DA DEMOCRACIA LOCAL

 

(O comentário político e o pensamento sobre o estado das coisas em Portugal, apesar de toda a sua diversidade e idiossincrasias dos protagonistas, podem dividir-se em dois grandes grupos, tudo indica de dimensão bastante desigual. De um lado, temos um grupo que vive e anima uma bolha analítica, centrada na política em sentido estrito, largamente motivada pelo que se passa na aglomeração da Capital, com mapas mentais do país distorcidos, em alguns casos compensados com algum cosmopolitismo e internacionalização. Do outro lado, temos um grupo de menor dimensão expressiva, que vê o país não através das lentes afuniladas da Capital, mas antes segundo uma perspetiva territorial, vendo o todo a partir do particular. Este grupo tem obviamente variantes que podem ir desde localismos extremados, incapazes de ter uma interpretação do país a partir das suas referências territoriais até visões mais elaboradas, também internacionalizadas e cosmopolitas e que acrescentam à visão de país as ditas referências territoriais. Estes dois grupos praticamente não se relacionam e os media aniquilam regularmente os protagonistas do segundo grupo, não lhe reconhecendo o direito a uma visão territorial do país. Grande parte dos protagonistas deste último grupo desistem desse reconhecimento e notoriedade porque o julgam artificial e efémero. Alguns são direcionados para um acantonamento empobrecedor e outros resistem a esse acantonamento, mas abdicam de uma maior notoriedade e de lutar por ela. Esta longa introdução reflexiva explica-se porque estamos em vésperas de eleições autárquicas. O meu colega de blogue demonstrou eloquentemente de que lado o Eixo do Mal está nesta profunda divisão e de facto a compreensão do fenómeno autárquico e o desdém que certas comunidades de pensamento nutrem pelo poder local resulta diretamente em meu entender desta profunda divisão, descontando os seus matizes. É neste contexto que saúdo e me regozijo com as longas entrevistas que o jornal Público realizou com alguns autarcas que finalizam agora os seus mandatos por força da limitação legal existente. Para já, li com prazer as entrevistas dos presidentes cessantes de Arraiolos, Braga, Fundão e Sintra, Sílvia Pinto, Ricardo Rio, Paulo Fernandes e Basílio Horta. Com as suas diferenças e especificidades, temos quatro grandes autarcas e exemplos vivos do segundo grupo de perspetivas sobre o país, construídas a partir de referências territoriais bem marcadas, que dão bem conta da riqueza da diversidade do país.)

O que ressalta da leitura destas entrevistas é todo um outro país, porque visto através de outras lentes. Depois, entrando mais fundo nas práticas desenvolvidas e na consistência do pensamento que ressalta das palavras recolhidas por Manuel Carvalho, percebemos que estamos perante políticos locais de grande dimensão e estaleca. Se compararmos essa consistência e solidez de pensamento e prática com alguns dos vultos que se passeiam pelos corredores do poder a diferença é tão notória que até doi. E o que é importante notar é que isso acontece numa atividade altamente escrutinada não só política como administrativamente. Poderão os mais céticos dizer-me que são exceções. Pelo meu conhecimento de terreno, diria que exceções são as ovelhas tresmalhadas.

Não faço ideia qual vai ser o futuro político de Sílvia Pinto, a presidente da Câmara de Arraiolos, filiada no PCP. Quanto a Basílio Horta a reforma estará perto. Mas Paulo Fernandes e Ricardo Rio, se não me engano, irão ascender a funções regionais relevantes, podendo projetar nessa escala territorial a consistência das suas ideias.

Recomendo vivamente a leitura ou a audição das longas entrevistas.

Aprende-se mais, bastante mais, do que com o ruído emanado da bolha.

 

domingo, 28 de setembro de 2025

O EIXO DO MAL VAI DE MAL A PIOR

O programa já tem anos e já teve diversas e multifacetadas variações e intérpretes desde os tempos longínquos da “Noite da Má Língua”. Na sua versão atual de “Eixo do Mal” e com os quatro protagonistas residentes e resistentes que se conhecem (Clara Ferreira Alves, Pedro Marques Lopes, Daniel Oliveira e Luís Pedro Nunes), o debate já teve melhores dias e tem vindo a decair em qualidade de modo insofismável. Curiosamente, no início era uma Clara inteligente que concedia a essencial razão de ser intelectual para a minha disponibilidade de os ouvir e não dar o tempo por perdido, com um Daniel ainda tenrinho mas já afirmativo e convencido, um Pedro ainda à procura de encontrar um lugar no comentariado à altura dos seus pergaminhos ideológico-sociais e um Luís Pedro ainda a treinar a sua incapacidade persistente para articular uma ideia com princípio, meio e fim. O tempo foi passando e quase tudo mudou, exceto a aparente imbecilidade de Luís Pedro (dizem-me que é mesmo só aparente e que o problema do rapaz não é o que parece): Clara ganhou em arrogância, enfado e pseudo-superioridade, numa atitude profundamente contrastante com a cronista da “Revista do Expresso” que continua a ser legível, interessante e por vezes brilhante (sigo aqui a opinião do meu colega de blogue), e tornou-se praticamente inaudível pela forma como diz e pelo que chega a dizer quando o disparate ou a irritação a invadem; Daniel adquiriu experiência, tem manifestamente trabalhado muito a sua inata intuição, prepara-se para saber daquilo que fala e passou a ser um comentador a ter em conta (mesmo quando se mantém agarrado a alguns dos seus clichés ou a algumas das suas contradições de ordem político-pessoal); Pedro também conheceu uma evolução digna de nota, abandonando os seus axiomas e as suas tentativas de ser quem não é para passar a aparecer libertado de amarras e capaz de raciocinar politicamente com bastante propriedade (o que não significado sempre com a devido rigor e a devida dose de justeza).

 

Vem tudo isto a propósito do programa da última Quinta-Feira e da sua parte final em que os quatro comentadores eram supostos analisar as eleições autárquicas que aí vêm. E digo que eram supostos porque na verdade não apenas houve dois que não o fizeram (Clara e Luís Pedro) como ainda se entretiveram com declarações confrangedoras sobre os processos de escolha a nível local que confessadamente me enfureceram. Luís Pedro não aprecia as eleições autárquicas porque são 308, logo muitas e demais, e porque as câmaras municipais são grandes centros de emprego por esse País fora, afirma que no Porto está sempre tudo empatado, jura que o candidato do PSD no Porto e a do PS em Lisboa rezam para não ganhar, acha que Sintra merece Rita Matias, além de tudo o mais que lhe passou pela cabeça e não teve espaço para dizer pela boca fora (felizmente!). Quanto a Clara, eis como arrancou: “Eu não me interesso nada por Autárquicas. O poder autárquico desiludiu-me muito ao longo dos anos, destruição de paisagem... Houve excelentes autarcas mas houve corrupção e houve autocracias, mandatos que se prolongaram indefinidamente, feudos, etc. Portanto, houve muita coisa errada no poder autárquico.” E desse justificativo insuscetível de qualificação passou a explicar que apenas se interessa pelo que acontece em Lisboa (“sou muito egoísta”) – onde o seu veredito foi no sentido de que Alexandra Leitão é um erro de casting (simpática mas não para este cargo), Carlos Moedas possui uma voz irritante, a civilidade do candidato do Chega lhe deixou a esperança de haver alguém dentro do Chega que não passe o tempo aos gritos e, retumbantemente, o de que o “príncipe” no debate televisivo foi João Ferreira, “magnífico, consistente, sábio”, uma espécie recauchutada (digo eu) da face humana de um Partido Comunista que nunca a enganou e, portanto, alguém que, não obstante, não quer que seja Presidente da Câmara, ponto final parágrafo. Ah, e a terminar ainda conseguiu classificar o seu colega de debate Daniel, de quem julgávamos ser amiga, de “um ser absurdo”...

HABITAÇÃO OU A TRÁGICA FÉ NO MERCADO

 

(Na primeira página do Público de ontem, sábado, podia ler-se a acompanhar uma grande fotografia do ministro das infraestruturas com a pasta da habitação, Pinto Luz, a afirmação de que “é o incentivo do mercado que fará baixar os preços das casas”. Pinto Luz não pode ser acusado de nos impingir gato por lebre, antes pelo contrário. A sua mensagem de proposta sempre foi a mesma. Uma fé insistente nos mecanismos e incentivos de mercado para resolver um problema que é fundamentalmente resultado de uma falha de mercado. Este não consegue fornecer habitação a preços que correspondam a uma procura solvente e, pior do que isso, as margens de insolvência dessa procura, isto é, a massa de famílias que não conseguem em mercado obter a habitação de que necessitam não para de crescer. A entrevista ao Público confirma essa fé inabalável na ideia de que os mecanismos e incentivos que ditaram a subida vertiginosa dos preços de venda e de arrendamento serão os mesmos que determinarão a inversão desse processo. Essa fé inabalável na regulação espontânea do mercado) é tão obcecada que chega a ser tonta, sobretudo porque não dá conta que ao nível da oferta e da procura de habitação estão a observar-se alterações significativas que impedirão essa regulação espontânea. Não interessa mesmo ter em conta a relativa novidade do conceito de habitação moderada, que inclui como sabemos valores de venda até 648.000 euros e rendas até 2.300 euros. A mera ideologia como instrumento de política de habitação é algo que vai seguramente dar mau resultado.)

A cegueira ideológica na crença nos mecanismos de mercado impede as autoridades governamentais de compreender a onda especulativa que grassa pelo mercado habitacional. Onda especulativa essa que vai absorvendo na melhoria de resultados do negócio de construção e promoção imobiliário qualquer instrumento de política destinado a baixar o valor dos preços de venda e de rendas, como, por exemplo, as descidas de IVA e/ou as bonificações de crédito. Basta estar atento aos sinais evidentes do mercado de que vamos tendo notícia que multiplicam em pouco tempo por três ou por quatro valores de transação de várias tipologias habitacionais e que puxam os valores do arrendamento para cima. A ideia de que existem problemas a nível de construção civil, evidentes por exemplo nos múltiplos projetos municipais PRR cujos concursos públicos ficam a descoberto, cai estrondosamente por terra quando percebemos que os projetos mais especulativos não enfrentam esses problemas. A tal escassez de capacidade de construção desaparece miraculosamente para alimentar a continuidade do processo especulativo. É conhecido que o próprio universo de empresas de construção civil está hoje com uma distribuição territorial profundamente desequilibrado. Basta ver, por exemplo, a dinâmica construtiva no Porto e em Vila Nova de Gaia, alimentada pelo novo traçado do Metro, para perceber que a oferta de construção civil existe, simplesmente está sequestrada pelo mercado mais especulativo.

Mas do lado da procura há também sinais de que a regulação espontânea enfrentará obstáculos de monta. Não existe propriamente um fenómeno de monopolização da procura (monopsónio na procura de habitação), mas essa concentração está a concentrar-se de forma evidente. Existem vários sinais da chegada ao mercado de fundos de investimento e de compradores institucionais ou provados de grande capacidade financeira com poder para adquirir a preços especulativos empreendimentos na sua totalidade ou grandes frações dos mesmos. Podemos agitar a ideia talvez especulativa de que o branqueamento de capitais pode estar a alimentar este processo, mas com ou sem branqueamento o que se verifica é uma forte concentração da procura, gerando uma via natural de reprodução do processo especulativo em curso.

Não é preciso ser um grande especialista para compreender que com este contexto de mercado a fé nos mecanismos e incentivos de mercado é pura ideologia. Os mecanismos de incentivos de mercado produzem para contextos diferenciados resultados também diferenciados.

Obviamente que, no âmbito de uma abordagem alternativa, a colocação de património público ao serviço de programas habitacionais de renda acessível ou de venda a preços moderados e a mobilização de terrenos públicos, designadamente municipais, para promover por exemplo o cooperativismo habitacional que precisa de ser de novo revitalizado são medidas importantes, desde que sejam consideradas no âmbito de programas mais vastos.

O que é fundamental é contrariar a ideia de que a especulação se combate com fé nos mesmos mecanismos que determinaram a sua ocorrência. Nas forças da oferta e da procura as tendências especulativas estão implantadas e isso basta para que esses mecanismos produzam resultados diferenciados.