terça-feira, 16 de dezembro de 2025

OUÇAMOS O SÁBIO HABERMAS

 


(Começo por definir o contexto em que a leitura da súmula da muito recente conferência proferida por Jurgen Habermas na Fundação Siemens, Alemanha, me levou a outras reflexões. O gráfico que abre este post é elaborado a partir da informação que os World Development Indicators publicados recentemente nos proporcionam, medindo o produto interno bruto em dólares internacionais comparáveis, isto é, à paridade de poder de compra. Se consultarmos a informação publicada pela própria Comissão Europeia, o valor de 15% do produto mundial à PPC assumido pela UE ainda é apresentado como um indicador da força económica do bloco europeu. No entanto, quando olhamos para a evolução dinâmica desse indicador, o panorama é desolador, pois se tudo continuar como o previsto, restará à União algo em torno dos 9% do produto mundial, que, como alertava o Financial Times, anuncia uma significativa perda de influência regulatória europeia. Na sua crueza, bastaria este número para que os membros da União se deixassem de malabarismos mais ou menos nacionalistas e se concentrassem na capitalização do bloco europeu enquanto tal. Essa concentração de esforços deveria suplantar todas as tentativas de ganhos de migalhas em iniciativas de pendor nacional. O contexto internacional e a queda anunciada do peso europeu no mundo bastariam, em meu entender, para anular de vez a infundada tentativa de construir o projeto europeu sem abdicar de uma parte mínima que seja do poder nacional de decisão. Podem dizer-me, e estarão com a razão, que grande parte desse poder já foi cedido, sem grandes consequências favoráveis. Mas essa é outra questão. Ora, é neste contexto que as palavras de Habermas são sábias e avisadas. Afinal, não é ele um dos raros europeístas prestigiados vivos?)

O título da conferência reproduzida na íntegra pelo Social Europe é em si ilustrativo da gravidade do contexto a que me refiro: “Pode ainda a Europa escapar à ofensiva autoritária dos EUA?”. Não são palavras meigas as de Habermas. Aliás, quem estivesse atento às suas últimas aparições públicas e aos seus escritos mais recentes, concluiria que o filósofo alemão antecipou com algum tempo este contexto, que o leva a colocar a questão central num dilema claro – união reforçada ou marginalização, dispensando-me aqui de enunciar as vastíssimas consequências desta última para a sobrevivência daquilo que ainda nos orgulha – o modelo social europeu. Nem sequer a necessidade de apoiar a Ucrânia acordou totalmente a indiferença europeia quanto à intensidade com que este dilema se coloca hoje. Uma espécie de adormecimento domina ainda o pensamento e os aparelhos de decisão dos países e nem sequer o aumento dos investimentos em defesa que tanto empolga o nosso ministro da Defesa representa o acordar definitivo dessa longa letargia em que temos vivido. Os tiques nacionalistas continuam a emperrar decisões. Os interesses dos agricultores franceses parecem valer mais do que a conclusão definitiva do acordo com o Mercosur e, oxalá me engane, os países da outra América estão em vias de se fartar de tanta hesitação europeia, com o risco elevado de nos mandarem às urtigas.

Curiosamente, Habermas vai buscar a raiz da alteração de contexto que agora nos atormenta ao 11 de setembro, gerador da onda securitária que começou nos EUA e se alastrou depois a outras partes do mundo.

Assistimos nessa onda a uma clara mudança de estratégias por parte dos países mais avançados , instalados e emergentes, que não incluem apenas a criação da área de influência asiática liderada pela China, mas também países de poder médio como o Brasil, a África do Sul e a Arábia Saudita também interessados em promover uma maior independência de afirmação no poder mundial.

Escreve Habermas: “Estes novos tipos de regimes autoritários aparentemente não podem ser atribuídos às circunstâncias particulares de uma transição falhada a partir das formas de governação pós-soviéticas. Eles são provavelmente precursores de desmantelamentos democraticamente legitimados da mais velha democracia no mundo e da rápida construção e expansão de uma forma de governação capitalista libertária tecnocraticamente administrada.” O que é de espantar é que a Europa teve no seu seio por antecipação a expressão dessas tendências em países como a Hungria, antecipadamente analisadas com grande rigor por gente como Anne Applebaum. A cartilha da deriva autoritária dos EUA é a mesma e Habermas explicita uma por uma todas as manifestações em curso dessa deriva. As palavras de Habermas também não são nada meigas relativamente à Alemanha: “(…) Não há nenhuma evidência séria de que o governo da Alemanha esteja a promover uma Europa capaz de intervir na política mundial. Para ser mais Seguro, sob a onda do populismo de direita em crescendo diário nos nossos países, um passo dessa envergadura para uma maior integração da União Europeia, e consequentemente para uma capacidade global de ação, encontrará um suporte ainda menos espontâneo do que no passado. Em muitos dos membros ocidentais da União, as forças políticas interessadas no descentramento ou no recuo da União – pelo menos enfraquecendo as competências de Bruxelas, estão mais fortes do que nunca”.

Reforçar a União ou mergulhar na mais completa marginalização parece ser o que nos resta em termos do desenho do futuro. E provavelmente não chegará salvar a face no problema ucraniano. É algo de mais profundo do que isso.

 

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