(Não sou particularmente especializado nas singularidades britânicas, que são muitas e variadas. Mas não deixo de reconhecer que a resiliência britânica ao passar dos tempos é deveras impressionante, adulterada aqui, comprometida acolá, mas recordando-nos sempre que são uma ilha, ainda que profundamente internacionalizada, não toda, mas especialmente a aglomeração londrina que continua a sua sanha de concentração. O Boxing Day é uma dessas singularidades, talvez em Portugal mais conhecida pelo apelo do futebol, em que a liga inglesa nos contempla normalmente neste dia com jogos de arrasar que fazem a delícia dos adeptos. Mas retirando o futebol, este ano com atrativos suplementares, quatro treinadores portugueses captam as atenções, Marco Silva, Nuno Espírito Santo, Ruben Amorim e Vítor Pereira, a queda vertiginosa do City de Guardiola, as agruras de Amorim para estabilizar um United minimamente decente, o Boxing Day é uma espécie de feriado público, sem o ser com a exceção de calhar ao sábado e terá que ver com práticas comerciais e empresariais de outros tempos. O Guardian estima hoje que as compras no Boxing day deste ano possam ascender a 3,7 milhões de milhões de libras, o que diz bem da relevância do fenómeno comercial neste dia. Mais práticos e menos propensos a tradições, para os portugueses o dia 26 de dezembro é um dia de trocas de prendas e para muita gente o início frenético dos saldos, embora as estratégias comerciais sobretudo das grandes marcas e com comércio online pujante tenham determinado que a ideia de saldo já se tenha evaporado, tantas e tão variadas são as campanhas de descontos com que o online enche as nossas caixas de correio eletrónico.)
Neste 26 de dezembro em que os papéis coloridos dos presentes ainda estão por todas as casas, nem toda a gente é suficientemente disciplinada para organizar sustentavelmente a abertura dos presentes, lembrei-me do Boxing Day como alegoria do relacionamento dos europeus com o Reino Unido. Estimo que sem pretensões algumas de reversão do BREXIT, o relacionamento da União Europeia com o Reino Unido vai ser fundamental para enfrentar as novas vicissitudes do contexto internacional, sobretudo com um Trump profundamente errático e refém dos seus capangas mais próximos, mais interessados no desenvolvimento ilimitado dos seus negócios do que propriamente em trazer algo de positivo ao mundo.
A cena política britânica está cada vez mais intrigante. Os Trabalhistas arrasaram nas últimas eleições, devido sobretudo à trágico-cómica queda dos conservadores com manifestações de incompetência para todos os gostos, e tudo parecia que Keir Starmer tinha condições para um relançamento dos equilíbrios internos, económicos e sociais, colocando a economia e a sociedade britânicas numa rota menos vulnerável aos devaneios puramente ideológicos dos conservadores. Mas não é isso que tem acontecido. Vários motivos têm contribuído para este arranque mortiço do governo do Labour.
A saúde sexual dos deputados parece andar pelas ruas da amargura tantos e tão variados têm sido os casos de assédio e outras ofensivas do género. Sabemos como este tipo de casos impacta tradicionalmente a política britânica e o Labour parece não ter escapado à tendência.
Em termos económicos, não é agradável para o governo trabalhista que o crescimento económico esteja a ser revisto para níveis de crescimento zero, a inflação persista resistente e as perspetivas de criação de emprego não sejam propriamente entusiasmantes. Seis meses apenas de governação e o peso de fatores internacionais atenuam a responsabilidade trabalhista na desaceleração do crescimento económico. E sobretudo a recuperação da situação difícil deixada pelos conservadores não pode ser ignorada. A ampla e generalizada descida de impostos decretada pelos conservadores nos últimos meses da sua governação aconteceu num período de insuficiências graves da generalidade dos serviços públicos britânicos, colocando a grande plataforma de proximidade e de interação com os cidadãos britânicos num estado particularmente insustentável. A recuperação desses serviços implicará obviamente um esforço orçamental considerável, o qual não poderá ser sustentado com o alívio fiscal prometido pelos conservadores.
A situação política britânica mostra que não basta uma maioria arrasadora para iniciar uma contraofensiva económica e social sustentada.
E as especificidades britânicas continuam a surpreender-nos. Há dias, li num jornal britânico que Niles Farage era a personalidade política melhor cotada nas sondagens. Sabemos que Farage integra a grande internacional dos populistas xenófobos e trogloditas e, como não podia deixar de ser, Elon Musk já se apresentou como um dos financiadores naturais do partido de Farage.
Por isso, admitir a hipótese de reversão do BREXIT é música celestial e inconsequente.

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