Devagar, devagarinho, a Europa vai-se dando conta de que o mundo está a mudar de forma imparável e irreversível. Uma Europa que não parece capaz de se unir, mesmo que perante ameaças de inquestionável impacto e perigosidade (veja-se a recente advertência de Mark Rutte), mostrando ademais fragilidades embaraçantes (vejam-se a opinião emitida por Wolfgang Münchau sobre Kaja Kallas ou as quase ridículas declarações do presidente do Conselho Europeu para dar prova de vida perante a atuação concentracionária, apesar de ineficaz, da Senhora von der Leyen) perante um ex-aliado que não voltará tão cedo a um posicionamento sensato e tenderá a persistir na sua atuação estratégica, largamente impulsionada (ou dirigida?) pela Rússia de Putin, de explorar e forçar a fragmentação europeia no sentido de provocar o caos na União, quiçá a sua desagregação. Por estes dias, joga-se claramente o futuro com as negociações de paz (ou capitulação?) na Ucrânia a serem um visível palco central de uma impotência das lideranças europeias (afinal quem representa e fala em nome da Europa, Merz, Macron e Meloni ou Ursula, Costa e Metsola?), da indefinição britânica (ademais com Farage a reemergir de modo avassalador, acompanhando o caminho extremista e antieuropeu de uma parte já muito relevante de países europeus), da inconsequência de Rutte na construção de um eixo europeu na NATO e da mais do que certa secundarização do Velho Continente na relação de forças em afirmação. Enquanto isso, Portugal vive numa alienação nunca antes vista: discutem-se as elucubrações delirantes de Ventura em matéria de imigração, de lei da nacionalidade, de corrupção, de castração química de pedófilos ou de outros afrontamentos ao “sistema”, debatem-se sem qualquer nexo as alternativas presidenciais ao chefe do “Chega” em torno das suas motivações e exigências, sofre-se uma greve geral inventada pela intransigência governamental, ouvem-se sem qualquer crença as promessas e juras do grande líder Montenegro, elabora-se sobre a execução dos fundos comunitários e as expectativas quanto aos próximos pacotes (que ninguém assume que não virão na dimensão e nos moldes em que nos viciamos) e aturam-se os arrebatamentos e as ilusões vendidas por um Nuno Melo rendido à tropa e à defesa da Pátria, enquanto uns compram prendas de Natal às carradas e agendam férias na neve ou viagens de longo curso e outros esperam ansiosamente pelo subsídio de Natal ou pela chegada das prestações sociais para adquirir o bacalhau, o bolo-rei e o presente das crianças...
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
NINGUÉM DÁ POR NADA?
OUÇAMOS O SÁBIO HABERMAS
(Começo por definir o contexto em que a leitura da súmula da muito recente conferência proferida por Jurgen Habermas na Fundação Siemens, Alemanha, me levou a outras reflexões. O gráfico que abre este post é elaborado a partir da informação que os World Development Indicators publicados recentemente nos proporcionam, medindo o produto interno bruto em dólares internacionais comparáveis, isto é, à paridade de poder de compra. Se consultarmos a informação publicada pela própria Comissão Europeia, o valor de 15% do produto mundial à PPC assumido pela UE ainda é apresentado como um indicador da força económica do bloco europeu. No entanto, quando olhamos para a evolução dinâmica desse indicador, o panorama é desolador, pois se tudo continuar como o previsto, restará à União algo em torno dos 9% do produto mundial, que, como alertava o Financial Times, anuncia uma significativa perda de influência regulatória europeia. Na sua crueza, bastaria este número para que os membros da União se deixassem de malabarismos mais ou menos nacionalistas e se concentrassem na capitalização do bloco europeu enquanto tal. Essa concentração de esforços deveria suplantar todas as tentativas de ganhos de migalhas em iniciativas de pendor nacional. O contexto internacional e a queda anunciada do peso europeu no mundo bastariam, em meu entender, para anular de vez a infundada tentativa de construir o projeto europeu sem abdicar de uma parte mínima que seja do poder nacional de decisão. Podem dizer-me, e estarão com a razão, que grande parte desse poder já foi cedido, sem grandes consequências favoráveis. Mas essa é outra questão. Ora, é neste contexto que as palavras de Habermas são sábias e avisadas. Afinal, não é ele um dos raros europeístas prestigiados vivos?)
O título da conferência reproduzida na íntegra pelo Social Europe é em si ilustrativo da gravidade do contexto a que me refiro: “Pode ainda a Europa escapar à ofensiva autoritária dos EUA?”. Não são palavras meigas as de Habermas. Aliás, quem estivesse atento às suas últimas aparições públicas e aos seus escritos mais recentes, concluiria que o filósofo alemão antecipou com algum tempo este contexto, que o leva a colocar a questão central num dilema claro – união reforçada ou marginalização, dispensando-me aqui de enunciar as vastíssimas consequências desta última para a sobrevivência daquilo que ainda nos orgulha – o modelo social europeu. Nem sequer a necessidade de apoiar a Ucrânia acordou totalmente a indiferença europeia quanto à intensidade com que este dilema se coloca hoje. Uma espécie de adormecimento domina ainda o pensamento e os aparelhos de decisão dos países e nem sequer o aumento dos investimentos em defesa que tanto empolga o nosso ministro da Defesa representa o acordar definitivo dessa longa letargia em que temos vivido. Os tiques nacionalistas continuam a emperrar decisões. Os interesses dos agricultores franceses parecem valer mais do que a conclusão definitiva do acordo com o Mercosur e, oxalá me engane, os países da outra América estão em vias de se fartar de tanta hesitação europeia, com o risco elevado de nos mandarem às urtigas.
Curiosamente, Habermas vai buscar a raiz da alteração de contexto que agora nos atormenta ao 11 de setembro, gerador da onda securitária que começou nos EUA e se alastrou depois a outras partes do mundo.
Assistimos nessa onda a uma clara mudança de estratégias por parte dos países mais avançados , instalados e emergentes, que não incluem apenas a criação da área de influência asiática liderada pela China, mas também países de poder médio como o Brasil, a África do Sul e a Arábia Saudita também interessados em promover uma maior independência de afirmação no poder mundial.
Escreve Habermas: “Estes novos tipos de regimes autoritários aparentemente não podem ser atribuídos às circunstâncias particulares de uma transição falhada a partir das formas de governação pós-soviéticas. Eles são provavelmente precursores de desmantelamentos democraticamente legitimados da mais velha democracia no mundo e da rápida construção e expansão de uma forma de governação capitalista libertária tecnocraticamente administrada.” O que é de espantar é que a Europa teve no seu seio por antecipação a expressão dessas tendências em países como a Hungria, antecipadamente analisadas com grande rigor por gente como Anne Applebaum. A cartilha da deriva autoritária dos EUA é a mesma e Habermas explicita uma por uma todas as manifestações em curso dessa deriva. As palavras de Habermas também não são nada meigas relativamente à Alemanha: “(…) Não há nenhuma evidência séria de que o governo da Alemanha esteja a promover uma Europa capaz de intervir na política mundial. Para ser mais Seguro, sob a onda do populismo de direita em crescendo diário nos nossos países, um passo dessa envergadura para uma maior integração da União Europeia, e consequentemente para uma capacidade global de ação, encontrará um suporte ainda menos espontâneo do que no passado. Em muitos dos membros ocidentais da União, as forças políticas interessadas no descentramento ou no recuo da União – pelo menos enfraquecendo as competências de Bruxelas, estão mais fortes do que nunca”.
Reforçar a União ou mergulhar na mais completa marginalização parece ser o que nos resta em termos do desenho do futuro. E provavelmente não chegará salvar a face no problema ucraniano. É algo de mais profundo do que isso.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
LITERACIA FINANCEIRA E POUPANÇA DE COLCHÃO
(O sistema financeiro e a progressiva e descontrolada sofisticação financeira da vasta família de produtos que os mercados internacionais nos oferecem transformam a literacia financeira num ponto crítico da qualificação da sociedade civil e do seu juízo crítico sobre possíveis desmandos que a euforia dos mercados por vezes nos oferece. A preocupação pelo aumento dos níveis dessa literacia na população portuguesa tenho a sensação que já viveu melhores dias. Creio que Carlos Costa enquanto governador do Banco de Portugal se destacou nessa cruzada e existem ainda algumas iniciativas e projetos que procuram junto dos alunos do ensino básico e secundário manter essa chama, como é o caso da Fundação Cupertino Miranda, preparando desde cedo os cidadãos para um melhor entendimento e, por isso, melhor uso das oportunidades que o sistema financeiro vai oferecendo. O Financial Times, convocado por Adam Tooze, recorre a um inquérito promovido pela OCDE para avaliar qual é o nível de literacia nesse grupo de países, com data de 2022. O principal objetivo dessa convocação de evidência era para mostrar que a Itália ocupa o último lugar do grupo de países sobre o qual foi possível reunir respostas ao referido inquérito. Imaginaria que Portugal pudesse estar num lugar menos positivo, mas segundo o referido inquérito ocupa um lugar ligeiramente acima da OCDE, o que no cenário de inverno demográfico que o país vive não deixa de ser surpreendente.)
A literacia financeira é inquestionavelmente um elemento orientador fundamental das decisões que cada um tem de tomar sobre a aplicação das suas poupanças, isto obviamente para quem consegue retirar do seu rendimento anual pós-impostos algum dinheiro para aplicar e gerar algum rendimento suplementar. Os cidadãos colocam-se regra geral entre dois extremos, os que privilegiam a prudência e segurança das suas poupanças, caso evidente deste vosso Amigo, e os que se aventuram no desconhecido da sofisticação financeira não interessa agora com que padrão de assunção de riscos, se minimamente objetivo e baseado em evidência, se entregues à vertigem do aleatório.
Com base em informação proveniente do BCE, logo uma fonte distinta da do inquérito OCDE, é possível confirmar que existe uma relação entre o nível de literacia financeira e a propensão para conservar dinheiro na sua forma líquida. Contrariando em parte a informação proveniente do inquérito OCDE, Portugal aparece nesta correlação com um desempenho relativamente baixo em termos de literacia financeira, associado com base na referida relação, a uma propensão relativamente elevada para conservar dinheiro na sua forma líquida. Talvez a informação proveniente do BCE seja mais fidedigna do que aquela em que se baseia o gráfico que abre este post, no qual Portugal aparece numa posição ligeiramente superior à média OCDE.
O panorama de novo em formação para taxas de juro de depósitos bancários muito baixas atira os aforradores atraídos pelo risco baixo para as conhecidas aplicações em certificados de aforro. Existem aplicações de depósitos bancários de prazo médio ou curto que acabam por revelar-se enganosas, pois à terceira renovação a taxa fixa-se nos 0,25, dececionante para tempos em que a inflação não está ainda estabilizada plenamente em torno dos 2%, o que significa perder alegremente poder de compra como preço da aversão ao risco.
Qualquer incursão por terrenos mais arriscados exige solidez em matéria de literacia financeira. Só a segurança a esse nível permitirá avaliar objetivamente o risco das eventuais aplicações, até porque casos anteriormente observados no sistema financeiro português aconselham a prudência de estar atento às incorreções da informação de divulgação de alguns produtos, agravadas pela febre dos objetivos impostos aos funcionários bancários. Por maioria de razão, para quem utiliza exclusivamente as plataformas digitais para as suas aplicações financeiras só uma literacia financeira à prova de bala e dos ímpetos psicológicos mais fortes permitirá navegar com algum conhecimento do risco envolvido.
domingo, 14 de dezembro de 2025
A ECONOMIA MUNDIAL ESTÁ EM PROFUNDA MUDANÇA, AS INSTITUIÇÕES QUE A MOLDAM NEM POR ISSO
(McKinsey)
(Existe hoje um consenso alargado sobre as grandes tendências de evolução da economia mundial, analisadas sobretudo na perspetiva da evolução do produto interno bruto das economias de maior dimensão económica. O indicador que melhor ilustra essa mudança é a evolução em termos comparáveis, isto é, à paridade de poder de compra, do produto interno dos EUA e da China. A utilização dos dados dos World Development Indicators, trabalhados na base dos valores atualizados de outubro de 2025 publicados pela base de dados do Banco Mundial, confirma que há praticamente 10 anos que, à paridade de poder de compra, a economia chinesa tem uma maior dimensão económica do que os EUA (ver gráfico abaixo elaborado a partir da informação dos World Development Indicators). Em termos percentuais, a China responde hoje por 20% do produto mundial, ao passo que os EUA se quedam pelos 15%. Branko Milanovic estende essas comparações a outros pares, como por exemplo o confronto entre a Índia e o Reino Unido (respetivamente 8 e 2% do produto mundial e entre a Indonésia e os Países Baixos (com uma relação de 3 para 1). Estes números valem o que valem, sabendo nós que o PIB tem as suas limitações, mas para comparações válidas entre países o PIB medido em dólares comparáveis, isto é, à paridade de poder de compra, ainda é a variável mais utilizada. Este bloco da China, Índia e Indonésia representa cerca de 40% da população mundial, sendo a sua quota de produto ainda de 30%, mas tudo indica que os previsíveis aumentos de produtividade tendam a fazer alinhar no futuro as duas quotas. Economicamente falando, não existe dúvida alguma que a mudança da economia mundial está aí para nos fornecer essa evidência. Resta saber se do ponto de vista do poder que essa dimensão económica representa existe também alguma mudança visível. Aparentemente, o discurso mais divulgado menciona o deslocamento para oriente e para a Ásia como o resultado dessa evolução da produção mundial. Mas é necessário saber se do ponto de vista dos fluxos que relacionam estes colossos económicos existe também evolução sensível e mais importante ainda se as instituições de perfil mundial refletem hoje essa profunda mudança. Veremos neste post que a esse nível há mais dúvidas em responder afirmativamente a essa questão.)
Curva azul - China; Curva encarnada - EUA
Socorro-me, em primeiro lugar, de um dos gráficos do ano de 2025 que a McKinsey publica com regularidade, conhecidos pela sua elevada qualidade e densidade informativa. O gráfico que abre este post versa sobre a matéria sensível dos semicondutores, algo de nuclear na transição digital em curso, nela incluindo já o boom da inteligência artificial. Os EUA continuam a funcionar como o grande recetáculo do investimento neste setor, com origem marcadamente asiática desse investimento direto estrangeiro (IDE). No sentido contrário, o IDE proveniente dos EUA tem os seus destinos principais em Singapura e na Irlanda (pour cause, dada a implantação neste último país dos gigantes tecnológicos americanos mais conhecidos. É possível também verificar que a Europa é destinatária de menos de 15% do investimento, com a China, Taiwan e a Coreia do Sul a assumirem a grande quota dos investimentos recebidos pelos EUA.
Moral da história, ainda que os EUA representem uma quota do produto mundial mais baixa do que a da China, para setores nevrálgicos como os semicondutores é enganosa a ideia de que os EUA estejam a ser marginalizados dos grandes fluxos in e out observados no setor. Ou seja, por detrás do realinhamento do produto mundial, observam-se comportamento setoriais que podem fornecer uma imagem mais matizada do realinhamento observado. Mas se, por exemplo, olhássemos para o domínio das indústrias elétricas, incluindo veículos, já o panorama seria diferente, com a superioridade da China a afirmar-se cada vez mais.
Branko Milanovic tem razão quando traz para o debate a certeza de que existe hoje um desvio sério, e quando estes desvios existem e são sérios, a conflitualidade está no ar. A estrutura de poder nas grandes instituições mundiais como o Banco Mundial ou o FMI está hoje profundamente desequilibrada – a importância económica dos principais países asiáticos, China, Índia e Indonésia aos quais poderíamos juntar o Paquistão, o Bangladesh e o Vietname não está nem de perto refletida na representação de voto que esse bloco de países tem naquelas duas instituições. O poder de bloqueio de voto que os EUA hoje possuem devido a serem o único país que detém 15% das ações constitutivas está hoje profundamente em contradição com a importância económica do bloco asiático. Por isso ou por razões próximas, o multilateralismo anda pelas ruas da amargura e se ergue na cena internacional a lógica das macrorregiões de influência com o poder dos mais fortes a sobrepor-se ao dos mais fracos.
O que parece poder concluir-se é que a persistência e até agravamento desse desvio entre poder económico e equivalência institucional do mesmo nunca proporcionará uma boa saúde à economia mundial. A sua fragilidade institucional condena-a a uma permanente instabilidade e a toda a série de tentações de impor pela força o que um multilateralismo inteligente tenderia a resolver pela negociação.






