(Jornal Expresso)
(Absorvido e relaxado pelos dias de sol generoso por bandas de Seixas não tenho nenhuma experiência vivida de participação nas manifestações do 25 de abril deste ano. Mas estive atento aos muitos comentários cruzados que elas suscitaram, tanto mais que o Governo, de forma canhestra, entrou pela estranha via de confundir o respeito pela morte do Papa Francisco com a celebração do dia da Liberdade, criando uma crispação desnecessária em torno das celebrações. Entre os diversos comentários que valeram a pena de uns minutos de atenção, a referência de José Pacheco Pereira a dois modos distintos de participação nas manifestações do 25 de Abril, e já o tinha sentido ano passado no Porto, distinguindo entre a participação politizada, animada pelas forças políticas, e a participação que JPP designa de existencial destaca-se e corresponde ao diferente alcance dos acontecimentos de 1974 para os cidadãos. A participação politizada corresponde naturalmente ao reconhecimento da liberdade política como principal conquista de abril. O livre exercício das garantias de constituição de partidos políticos e de outras associações do tipo trouxe da clandestinidade para a luz do dia da democracia as forças políticas que nela desenvolveram a sua importante atividade de luta contra o regime ditatorial. Não espanta por isso que, sobretudo no Porto, a presença do PCP e das organizações que lhe são afetas nos desfiles e nas manifestações seja marcante. Imagino que ninguém como as forças políticas que viveram as agruras da clandestinidade valorizem esse aspeto. É da natureza das coisas. Mas existe um outro tipo de participantes que valoriza sobretudo o fim da guerra colonial e das mortes por ela provocadas, a alteração das condições de vida, a despreocupação de viver a Cidade sem a presença dos bufos da PIDE, a alteração nos modos de vida e da cultura, a liberdade sexual, a vivência do corpo, o pleno usufruto do espaço público, tudo isso o 25 de abril nos trouxe. É natural também por isso que gente menos politizada se associe ao ato cívico de desfilar ou de assistir com cumplicidade à alegria da manifestação, simplesmente porque pressente que essa liberdade pode estar hoje ameaçada no mundo.)
Este registo parece-me compatível com o que está a acontecer na sociedade portuguesa e, repito, já o tinha pressentido nas grandes manifestações do ano passado. Não é de facto por acaso que o PCP parece ressurgir nestes momentos da sua perda de presa sobre as questões sensíveis da vida política nacional, agigantando-se e, principalmente, capitalizando a sua disciplinada organização e mostrar-se com relevo nestas manifestações. Mas é também sensível o incremento da tal perspetiva existencial de valorar as conquistas da organização social e do orgulho de viver na rua e no espaço público a democracia e a liberdade. Isso explica a aparente contradição de se dizer por um lado que a população mais jovem está a desinteressar-se da política e ser visível a sua participação cada vez mais visível nas manifestações do 25 de abril.
Podemos dizer que as gerações mais jovens, principalmente não aquelas que por via familiar conseguem mais facilmente expressar o seu talento e encontrar ocupação e rendimento compatíveis com a sua formação, podem reconhecer que a liberdade não lhes proporcionou todas as expectativas mais favoráveis. Num mundo mais legível e apelando à mobilidade, essa comparação com a situação das gerações mais jovens de outros países gera frustração e pode gerar a categoria social da deceção e da saída de cena. Mas, em contraponto com isto, os jovens de hoje vão começando a perceber que o mundo está negro e que as forças apostadas em destruir a democracia ocupam hoje um espaço político até há bem pouco tempo impensável. Os Cavalos de Troia dentro dos países democráticos sucedem-se de modo alarmante e a sensação de que a liberdade está ameaçada pode conduzir a que a tal via existencial se julgue também com o direito de estar presente no terreno das manifestações, mesmo que rejeitando a versão mais ortodoxa dos politizados.
Esta parece-me ser a grande diferença dos tempos de hoje. Não é apenas a esquerda e os seus valores mais consensuais que estão ameaçados, é a liberdade que está ameaçada. Os riscos que a democracia americana está por estes dias a correr, numa espécie de corredor para a prevalência dos métodos ditatoriais sobre os dos equilíbrios proporcionados pelo sistema democrático, proporcionou a este tema uma legibilidade e uma plausibilidade de observação que, até aqui, os Cavalos de Troia da extrema-direita em algumas democracias europeias não tinham conseguido alcançar. A arrogância de Trump prefigurou essa ameaça e ela é tão evidente e tão consumada que mesmo os jovens mais descrentes do seu futuro não ficam indiferentes.
Por isto tudo, a confusão entre celebrar a liberdade de Abril e a de respeitar a morte de Francisco é algo de canhestro e bizarro que só uma AD desesperada por influenciar a seu favor o próximo ato eleitoral explica.
E estou em crer que José Pacheco Pereira talvez não tenha espantado muita gente quando, no fim do Princípio da Incerteza de ontem à noite, associou a mensagem de Francisco à mais poderosa resistência anti-Trump. Muita gente já talvez o tivesse percebido.

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