(É um tema ainda escassamente debatido e é pena porque esse debate nos ajudaria a compreender melhor a filiação das ideias que subjazem ao desplante económico e político que vem dos EUA. Já por repetidas vezes neste blogue tem sido analisada a contradição fundamental da mensagem com que Trump capturou parte do eleitorado americano, a ponto de lhe proporcionar a vitória popular e também no Congresso e no Senado. O discurso do MAGA está impregnado de um fervor nacionalista e popular que em coerência com o seu horror e desdém das elites deveria proporcionar condições de melhoria de vida às franjas mais desprovidas da população americana. Mas as ideias e a prática de Trump são tudo menos a glorificação de um populismo social. Bastam dois dedos de testa para a partir do orçamento que passará no Congresso compreender que a política desejada é exatamente o contrário desse populismo social. Há quem designou esse orçamento de política Robin dos Bosques ao contrário – não se tira aos ricos para dar aos pobres, mas antes se esmifram os mais desfavorecidos com toda a série de desproteções sociais para favorecer uma política fiscal claramente orientada para os mais ricos. O que me parece interessante refletir passa por ir em busca dos fundamentos ideológicos dessa contradição. Sabemos, por um lado, que seguindo o fio condutor da política comercial externa de Trump, pretensamente destinada a domesticar em seu proveito a por si considerada descontrolada globalização, a política económica de Trump dá uma valente machadada nos princípios do neoliberalismo, que sempre olharam para a globalização como algo de intocável em termos de asfixia dos mecanismos de mercado livre. Mas, devemos perguntar, se a política económica de Trump se afasta assim tão marcadamente das teses neoliberais. Mostraremos, neste post, que existe pelo menos uma dimensão relevante do neoliberalismo que as políticas de Trump assumem sem qualquer problema, antes a conduzindo a um extremo de aplicação. Explico-me.)
Há dias, mais propriamente em 15 de junho, o Público publicou uma notável entrevista com o autor de uma das mais profundas e terríveis críticas do neoliberalismo, sobretudo porque lida com as fontes de pensamento inspirador. Estou a referir-me à entrevista com Quinn Slobodian, autor do incisivo HAYEK’S BASTARDS, que deve ter causado um profundo abalo entre os seguidores.
Não tenho tido o tempo e a disponibilidade mental necessários para ir mais fundo nesta obra, que aguarda em Seixas, as férias de agosto, mas a entrevista do Público é-me suficiente para os objetivos da crónica de hoje.
O ponto de análise de Slobodian é o de tentar mostrar que as origens do pensamento neoliberal de Hayek e Von Mises estavam apontadas à derrota intelectual e política do coletivismo à direita e à esquerda, ao passo que os seus filhos intelectuais bastardos giram em torno de matérias de horror como o são o racismo científico, o louvor da extrema-direita, todas as derivas possíveis de Silicon Valley e o fetichismo em torno do primado do QI como elemento de hierarquização humana. O abastardamento sobretudo do pensamento de Hayek cava-se sobretudo em torno da generalizada ideia que aponta ao desprezo pelos mais fracos e a glorificação dos mais fortes, regra geral, os mais ricos. Levar-nos ia bastante longe discutir se o próprio Hayek foi ou não seduzido pelo darwinismo social e esse não é o objeto principal desta crónica.
Por razões e caminhos diversos, designadamente o chamado racismo científico, o abastardamento do neoliberalismo original sintetiza-se na frase que encima a entrevista de Slobodian ao Público: “O desprezo pelos mais fracos tem-se tornado mais aceitável nos circuitos neoliberais”.
Toda a sociedade portuguesa compreendeu na pele este desprezo com as políticas da Troika, sobretudo com a tentativa assumida dos neoliberais então no poder de ir além da Troika, aliás documentado em testemunhos off-record de alguns técnicos da Comissão Europeia que ficaram algo espantados quando alguns quadros políticos que os receberam deram a entender que os efeitos da austeridade poderiam ir mais longe. “No problema” com tal possibilidade.
Mas o meu ponto é que as políticas de Trump prolongam esta deriva do abastardamento que tão brilhantemente Slobodian analisa. Por isso, só em algumas dimensões, a da globalização sobretudo, Trump se desliga do catecismo neoliberal. Já quanto ao desprezo pelos mais fracos, ele está perfeitamente na linha do abastardamento aqui analisado. A política de Robin dos Bosques ao contrário é essencialmente isso e nada mais do que isso.
Convém, entretanto, recordar que, em contextos marcados pela corrupção em larga escala e pela rede desenfreada de captura do Estado em função de interesses particulares de uns tantos, estas teses de liquidação em massa de estruturas e serviços públicos podem oferecer alguns resultados inesperados. Não sei exatamente se é algo de similar que pode estar a acontecer na Argentina de Milei. O excêntrico e virulento presidente argentino que há dias insultou com estrondo em Madrid o governo espanhol, perante a não disfarçada complacência de Isabel Diáz Ayuso, capitalizou abertamente essa rede de interesses obscuros que se abateram sobre a administração pública argentina nas duas últimas décadas. Milei é um exemplo vivo do abastardamento que Slobodian analisa. Por isso, a corrupção descontrolada abre frequentemente caminho a essas experimentações, em que o desprezo pelos mais fracos é assumido sem o mínimo pudor.
O que se passa por estes dias nos interstícios mais obscuros da entourage mais corrupta que rodeia Sánchez e o PSOE traça caminhos inquietantes para a sociedade espanhola – nem Sánchez tem coragem de apresentar uma moção de confiança capaz de relançar o seu apoio parlamentar, nem Feijoo tem a ousadia de propor uma moção de censura.

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