(Já há bastante tempo que não recorria à ironia contundente do traço de El Roto, cujas vinhetas no El País são uma fonte inesgotável de mordacidade no comentário gráfico. Quando me debatia na angústia, gostosa, de procurar um tema para mais uma entrada neste blogue e sem grande pachorra para seguir os debates presidenciais e a frenética deriva do comentário político em torno dessas prestações, esta vinheta que abre como imagem este post tem uma grande atualidade para refletir sobre a contradição que parece comum a muitos países e que consiste na dissonância que existe frequentemente entre o desempenho macroeconómico dos países e a perceção das condições de vida por parte de largas franjas da população. Isso acontece em Portugal e, por maioria de razão, em Espanha, que tem apresentado como sabemos um dos melhores desempenhos macroeconómicos da União Europeia, apesar de não ter um orçamento de Estado aprovado, a governação estar muito periclitante e os sinais de corrupção continuarem a emergir à esquerda e à direita. Muita da dissonância na maneira como um dado desempenho macroeconómico é percecionado por diferentes grupos de população, grupos sociais entenda-se, concentram-se em duas dimensões, as limitações de um número índice como aqueles que medem a inflação e o modo como o referido desempenho macroeconómico se materializa em concreto nas condições de geração de rendimento mercê da desigualdade com que ele pode ser distribuído.)
A medida da taxa de inflação é como sabemos fonte esforçada de procura de soluções estatísticas para o fazer. A variação de preços é suscetível de ser captada por uma infinidade de índices em função dos cabazes de bens e serviços que venham a ser escolhidos, não sendo esses cabazes indiferentes para os grupos de população formarem as suas perceções quando se confrontam com a aquisição em concreto de bens e serviços. Além disso, a taxa de inflação é uma taxa de variação. Sabemos que os países têm níveis gerais de preços muito diferentes a partir das quais a taxa de variação de preços é calculada. E sabemos ainda que esse nível geral de preços é fortemente determinado pelo nível de preços dos serviços (não transacionáveis), já que os bens e serviços transacionáveis tendem a flutuar em torno de um valor que a transacionalidade impõe. Pode acontecer que, por força de preços anómalos e especulativos dos serviços, haja países que enfrentam um nível geral de preços desproporcionado ao seu nível de desenvolvimento económico. Portugal é seguramente um desses países, pelo menos em algumas tipologias de serviços, como, por exemplo, a habitação.
Quer isto significar que a mesma taxa global de variação de preços provoca efeitos muito diferenciados em diferentes grupos de população. Como qualquer número índice, a taxa de inflação é uma abstração e só no cabaz concreto de cada família pode ser corretamente percebida a inflação e daí a perceção do mesmo desempenho macroeconómico ser muito diferenciada. A máxima do “Is the economy, stupid” tem que se lhe diga, pois, um desempenho macroeconómico bom ou mediano pode acontecer com muita fúria acumulada, leia-se ressentimento.
O custo desmesurado da habitação, especulativo, alimentado por uma procura desigual e desconfigurada face ao desempenho macroeconómico do país e refletindo um poder de mercado anómalo do imobiliário em Portugal, é um excelente exemplo do modo como a questão dos cabazes de bens e serviços de suporte à medida da inflação e a desigualdade na distribuição do rendimento se combinam perversamente para gerar um ambiente de insatisfação generalizada apesar do desempenho macroeconómico se recomendar.
Por estas razões, a invocação do estado da economia como fator explicativo de resultados eleitorais depende de algo que pode não estar assegurado – o alinhamento do desempenho macroeconómico e as perceções dos principais grupos de eleitores. Há preços de outros serviços que podem ser trazidos para a equação. Mas a habitação tem um papel central na avaliação dessas desconformidades.
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