domingo, 16 de novembro de 2025

É A PRÁTICA LEGISLATIVA E NÃO O DISCURSO QUE DEFINE A GOVERNAÇÃO

(A governação da AD e do primeiro-ministro Luís Montenegro vive um momento muito particular. Mas não é no plano do discurso político que a orientação política da governação pode ser aferida com rigor. O discurso político está hoje dominado por truques comunicacionais, fáceis de gerar num universo jornalístico de baixo espírito crítico e toldado pela precariedade e submissão às agendas que grassam pelas redes sociais. Basta ter assessores de comunicação medianamente competentes para a governação parecer o que não é. Onde o embate se dá sem apelo nem agravo e onde a fuga para a interpretação da lei já não cola é na produção legislativa. Estamos num desses momentos, sobretudo num contexto que a legislação a que me vou referir não corresponde a nenhuma visível necessidade política, ditada por eventuais circunstâncias de sobressalto social ou de vazio legislativo perturbador da estabilidade política e social. A chamada Lei da Nacionalidade e o pacote laboral que tanto impacto está a provocar nos meios sindicais, sim eles existem e recomendam-se, são exemplos dessa prática legislativa que separa águas e coloca a governação onde ela pode querer mostrar que não está, mas que efetivamente está. De facto, é generalizadamente aceite pela esmagadora maioria do comentário político que nem a sociedade portuguesa vive problemas lancinantes de atribuição da nacionalidade portuguesa, nem a economia portuguesa apresenta perturbações fora do comum com o estado da arte da legislação laboral em Portugal. Assim sendo, o governo AD não pode invocar a excecionalidade da situação para justificar as mudanças legislativas que propõe nas duas matérias. É vontade deliberada de aproveitar a virtuosidade do momento político – vitórias nas legislativas e nas autárquicas, para legislar sobre matérias que não integrou no seu programa eleitoral, estando por isso a apresentar-se aos portugueses sem qualquer fundamento de escrutínio democrático prévio. O combate político a estas matérias adquire assim uma relevância distinta da que pode ser suscitada por práticas legislativas que constem do programa de governo submetido a escrutínio eleitoral).

As relações sociais e de barganha natural entre empregadores e trabalhadores que se movimentam no mercado de trabalho requerem algum balanceamento que, regra geral, está materializada na legislação laboral. Claro que existem períodos históricos em que esse balanceamento se quebra, com penalização à direita em períodos mais revolucionários e penalização para os trabalhadores em ambientes políticos mais repressivos. Ora, politicamente, a sociedade portuguesa não apresenta razões determinantes para esse balanceamento ser artificialmente quebrado como a legislação proposta para o pacote laboral da ministra Ramalho o veicula. Todos sabemos que a segmentação do mercado de trabalho português é o seu principal constrangimento. Mas o combate a essa segmentação exige um amplo debate social e político no país, que não existiu e que a governação AD parece não estar disposta a promover. O pacote laboral apresentado opta, pelo contrário, por deliberadamente inclinar a barganha social para o lado dos empregadores, alargando potencialmente a precariedade que constitui a pior maneira de abordar a já referida segmentação.

A ministra Ramalho é uma ministra que não pode invocar ignorância ou distração numa matéria desta natureza. É alguém que conhece profundamente a legislação do trabalho e as condições concretas em que pode ser aplicada. Por isso, a viragem que patrocina, inclinando a barganha social além dos limites toleráveis de equidade social e introduzindo um clima de suspeição sobre o mundo do trabalho.

O espanto de Montenegro com o cenário de uma greve geral com participação da UGT é simplesmente patético. Esse espanto e a inequívoca discricionariedade da legislação proposta podem gerar o efeito positivo de um acordar do movimento sindical, que seria benéfico para a dinâmica política nacional. Rui Tavares é feliz quando intitula a sua última crónica no Expresso de “Ir além da Troika, sem a desculpa da Troika”. Tudo isto sem qualquer alarme social proveniente do mercado de trabalho.

Pode então perguntar-se o que é que move a governação AD a dar este passo, na antecâmara de profundas mudanças no mercado de trabalho impostas pela digitalização e avanço da inteligência artificial? Não há outra interpretação credível que não seja a de querer marcar a orientação político-ideológica dessa governação. E lá surge a tramoia do costume: acusar de radicalismo os outros, que lutam meramente pelo balanceamento das relações de barganha no mercado de trabalho, quando os radicais implacáveis são os promotores desta legislação. Acusar falsamente os outros de radicalismo, ocultando o seu próprio, parece estar a transformar-se numa agenda de governação mais vasta.

Há dúvidas em combater essa agenda?

 

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