(Há uma certa controvérsia recorrente, que se repete sobretudo em períodos em que a situação económica do americano médio ou mediano é convocada para tentar compreender a polarização política da sociedade americana e a adesão eleitoral de Trump. Assim, a questão de saber se a classe média americana é ou não pobre, emergindo o limiar dos 140.000 dólares/ano como a grande fonte de controvérsia em torno do que é a linha de pobreza de referência para avaliar esse estado de coisas. Noah Smith dedica-lhe um substack relevante. Não é a controvérsia da linha de pobreza da classe média americana que me interessa aqui destacar. Trata-se de um tema que para ser corretamente discutido exige um conhecimento pormenorizado da sociedade americana que obviamente não me atrevo a reivindicar. O que despertou a minha atenção na reflexão de Noah Smith é o acesso a alguns indicadores cuja análise pode contribuir significativamente para clarificar algumas dimensões da sociedade americana potencialmente mitificadas pela falta de evidência.)
Uma primeira evidência que contrasta com as perceções alimentadas sobre a sociedade americana é a percentagem de população em situação de insegurança alimentar severa. O conceito tem origem na FAO – Nações Unidas e mede a percentagem de pessoas que não têm acesso a alimentação segura e nutritiva necessária a um desenvolvimento normal e a uma vida saudável.
O gráfico tem origem no Our World Data o que é uma fonte indesmentível de credibilidade. Os valores do indicador são surpreendentes e a posição dos EUA desmente muitas das perceções, à luz deste indicador, enviesadas sobre a sociedade americana. Os EUA apresentam uma posição claramente mais favorável do que praticamente todas as economias avançadas do mundo. O baixo índice de 0,8% de população em insegurança alimentar severa é cerca de 1/3 da insegurança alimentar no Reino Unido e, surpreendentemente, os EUA estão em melhor posição do que os países escandinavos.
Além disso, a distribuição das despesas em alimentação por quintis de população corresponde em grande medida ao que a literatura nos fornece. O gráfico acima descreve no eixo da esquerda a despesa média anual em alimentação e no eixo da direita a percentagem de rendimento que essa despesa em alimentação representa. Como a literatura nos ensina, os quintis mais baixos gastam menos em termos absolutos mas em percentagem do rendimento gastam mais, invertendo-se a situação à medida que se caminha para os quintis mais ricos.
Um não menos surpreendente indicador é a percentagem de população que não está segura em termos de saúde. O gráfico construído a partir do inquérito censitário às famílias americanas descreve uma descida assinalável da taxa de não proteção na saúde registada de 2009 a 2022, mais propriamente de cerca de 15,5% para 8%. Ao nível das crianças sem proteção de saúde, essa taxa descia em 2023 para 5,1%. É impossível não associar estes dados à ação desenvolvida pela administração de Barack Obama, o que contrasta fortemente com a sanha desregulatória de Trump. A imagem que este indicador fornece da sociedade americana mostra que as perceções associadas à atrás mencionada polarização da sociedade americana são distorcidas em matéria de proteção na saúde.
E para culminar a coerência de toda esta evidência, o último gráfico mostra que os americanos seguem o padrão típico de uma sociedade que tem vindo a enriquecer: a percentagem de rendimento gasto em bens de luxo ou não essenciais tem vindo a aumentar, apenas com a exceção da Grande Recessão de 2007-2008 que revela alguma estagnação, abandonada após a pandemia como o sugerem as viagens ao estrangeiro e o acesso a restaurantes.
Moral da história: controvérsias sem evidência rigorosa e credível são uma perda de tempo e um desperdício de ideias.
A sociedade americana não foge a esta regra e teremos de o ter em conta para compreender a América do Norte de Trump.




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