(Adam Roberts e Nick Pelham são dois jornalistas prestigiados que trabalham para a revista The Economist. Roberts é o editor digital da revista e Pelham o seu correspondente no Médio Oriente. O seu olhar de uma semana, cinco meses após os ataques da administração americana ao Irão, focado localmente numa avaliação de situação sobre o pulsar da sociedade iraniana após o ataque de Trump e na realização de uma entrevista ao Ministro dos Negócios Estrangeiros Abbas Araghchi é motivo suficiente para lhe dedicarmos a devida atenção. De todas as sociedades submetidas a um regime tirano e teocrático, o Irão nunca será devidamente compreendido pela visão distorcida que se vai construindo a ocidente. As civilizações milenárias, ainda que submetidas a regimes teocráticos, tendem a gerar sociedades vibrantes que existem, subjugadas é certo, por detrás de todo o aparato repressivo e da tentativa desesperada do regime controlar a evolução social e cultural. As raras evidências que nos chegam de visitantes não submetidos a visões distorcidas impostas pela geopolítica sugerem a existência de uma sociedade pronta a explodir de criatividade. A oscilação que tem existido entre lideranças mais teocráticas e mais abertas a pequenas mudanças no Irão situa-se neste âmbito – como regular à luz dos imperativos do regime teocrático essa sociedade herdada dos valores milenários que construíram aquela civilização.)
O registo de uma semana vivida pelos dois jornalistas da Economist no Irão confirma essa dualidade de perspetivas que atravessam a sociedade iraniana – a regulação repressiva e apertada perpetrada pelo regime teocrático e a sociedade mais vibrante, ainda que sofredora, que pode despertar a todo o momento.
O registo de que a vigilância sobre visitantes estrangeiros é pesada está suficiente demonstrado no testemunho dos dois jornalistas. O pormenor dos seus passaportes terem ficado nas mãos das autoridades iranianas durante a visita mostra a mensagem do controlo apertado que é conhecido. Aliás, o jornalista Nick Pelham tinha a amarga experiência de alguns anos atrás ter ficado retido durante semanas, tendo sido com extrema dificuldade que foi retirado do país.
Segundo Roberts e Pelham há sinais de que a política de controlo dos costumes, incluindo do vestuário feminino, tem sido ligeiramente flexibilizada. Essa polícia é praticamente não vista nas ruas nos últimos tempos e observa-se nas ruas de Teerão um número crescente de mulheres com maior liberdade de uso do hijab. Embora os dois jornalistas tenham sido permanentemente acompanhados por representantes do governo para controlar contactos com a população em geral. A repressão do regime existe e não dá sinais de estar em vias de ser atenuada. Sucedem-se os testemunhos de que as execuções se mantêm a um nível elevado e que a censura aos jornais continua implacável. Os grandes cineastas iranianos, alguns deles premiados no ocidente, continuam a não poder filmar livremente no país.
Parece, entretanto, existir algum ressurgimento nacional identitário provocado pelo ataque americano, não no sentido religioso de um regime teocrático, mas de valores nacionais profundos, claramente um efeito que os americanos não pretenderiam reforçar, isto sem falar na falta de clareza da informação sobre os resultados dos referidos ataques, seja do lado americano, seja do lado iraniano,
Segundo os dois jornalistas, a vitalidade urbana pelo menos de Teerão não condiz com a negrura do regime teocrático e a presença de mulás é quase impercetível no tecido urbano. Esse é um indicador importante de que, oculta e desejosa de liberdade de costumes, existe uma sociedade iraniana que não se conquista seguramente para uma libertação tranquila com agressões exteriores, sejam militares, sejam de sanções económicas.
A entrevista com o ministro dos Negócios Estrangeiros (síntese e reprodução aqui) descreve o que seria de antecipar. O Irão pretende regressar à mesa das negociações com os EUA sobre o nuclear, insistindo na tese de que poderá oferecer condições fidedignas de que não utilizará a capacidade nuclear para fins militares, algo que exigiria vigilância rigorosa e consentida por agências internacionais. O problema é que Trump abandonou essa perspetiva das agendas internacionais independentes e está num modelo diferente, mas claramente mais aleatório e menos confiável.
O problema do beco sem saída a que a relação do ocidente, sobretudo dos EUA, com o Irão chegou não é de agora. Se a chegada do regime teocrático ao poder, num contexto muito particular é certo, impressionou o mundo e a comunidade académica em particular pela força negra das manifestações massivas que apoiaram essa transição política, a sociedade iraniana está hoje muito longe de assemelhar-se a uma sociedade retrógrada subjugada pela repressão teocrática.
Esse é um capital que deve ser valorizado na luta contra o regime teocrático. O país não pode ser agredido como se fosse um todo. A sociedade milenária irá sempre constituir uma base indestrutível de reforço nacional identitário. Mas temos de convir que os ventos da geopolítica de hoje não são nada favoráveis a essas perspetivas mais “culturais” e subtis da transformação social induzida com alguma influência externa.
Trump é claramente mais impressionável pelo luxo das Arábias do que pela força milenária de uma civilização.

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