segunda-feira, 21 de julho de 2025

A MAMÃ NÃO TOMOU A PÍLULA

 

                    (Nº de crianças nascidas por idade e coorte de nascimento da mãe)

                (% de mulheres sem filhos por idade e coorte de nascimento da mãe)
 

(Num contexto em que na questão demográfica a nível mundial, com continentes a nela participar perante a nossa perplexidade, como é o caso do continente asiático, com a China à cabeça dessas preocupações, e com incidência particular nos países ocidentais mais avançados, as questões migratórias e da fertilidade tendem a dominar o debate sobre o chamado inverno demográfico. Por isso, neste blogue, tenho oscilado entre dar atenção a um ou outro problema, já que me parece que, apesar do tema estar generalizado, o nível de aprofundamento do debate tem sido incipiente, com reflexos sérios na qualidade das políticas públicas acionadas para combater o fenómeno. Hoje, é tempo de me dedicar de novo a mais algumas considerações sobre o tema da queda da fertilidade, não esquecendo obviamente que a questão migratória, sobretudo quando envolve famílias, vem baralhar a questão, pois da origem para o destino dessas migrações é também o comportamento da taxa de fertilidade das mulheres em idade de procriação que se observa com o movimento migratório. Isto acontece apesar de também nesses países de origem estar a assistir-se a uma descida irreversível do número de filhos por mulher em idade ativa de procriação, tanto mais saliente quanto mais os progressos educativos são mais salientes. Sem querer substituir-se ao âmbito das revistas científicas sobre demografia, o post incide sobre o domínio da economia do desenvolvimento, afinal a minha matriz disciplinar de sempre, que se ocupa dos assuntos da fertilidade e da demografia em geral. Em tempos em que reconhecidamente a questão das qualificações e das competências e do conhecimento se impõem como fatores de crescimento cada vez mais relevantes, o comportamento da demografia representado pela chamada variável n dos modelos de crescimento não pode ser erradicado dessas preocupações analíticas. Por razões óbvias. A melhoria das qualificações e das competências tem sempre um suporte em pessoas de carne e osso e, por isso, se a demografia compromete, a substituição da força física por qualificação tem obviamente limites. Mas também a variável conhecimento, medida por exemplo, pela variável I&D, enfrenta sempre também o limite demográfico. Recordo com alguma saudade o alerta que deixava aos meus alunos quando lhes fazia recordar que 1% de engenheiros em atividades de investigação na China tinha um significado incomparavelmente mais amplo do que percentagem similar numa economia europeia demograficamente debilitada.)

(Probabilidade de ter um segundo filho em mães já com um filho por idade e coorte de nascimento)
 

O não entendimento dos fatores estruturais que subjazem à queda da fertilidade nas economias mais avançadas tem conduzido a políticas públicas que oscilam entre o mais puro “wishful thinking” e as modalidades mais estrambólicas de instrumentos e incentivos. Ainda há algumas semanas lendo a edição internacional do New York Times passei por um artigo que dissertava sobre as mais estranhas formas de tentar combater o problema da queda da fertilidade. O último caso a aparecer na fila é, por razões compreensíveis, a Rússia de Putin, cujo declínio demográfico já vem de muito longe e que por razões óbvias tem enfrentado uma descida considerável da sua população jovem masculina, morta impiedosamente e alguma sem preparação militar convincente na invasão da Ucrânia, pagando caro a arrogância imperial do seu líder. O mais dramático nesta ofensiva da Rússia de Putin para tentar compensar o inverno demográfico que está a alimentar é a invasão clara dos princípios da liberdade individual das mulheres russas, sobretudo em termos de saúde reprodutiva.

Uma primeira nota que gostaria de aqui deixar versa sobre os indicadores mais correntemente utilizados para acompanhar a evolução da fertilidade. São duas as taxas mais correntemente utilizadas, similares na sua designação, mas com conteúdo que importa distinguir. A taxa de fertilidade geral (TFG) mede num dado momento do tempo o número de nascimentos por mil mulheres em idade procriação, regra geral período compreendido entre os 15 e os 44 anos. É uma taxa que pode ser facilmente desagregada por grupo de população, permitindo seguir a evolução da fertilidade segundo muitos critérios, como por exemplo o da educação ou do nível socioeconómico de rendimento. Uma outra taxa muito utilizada é a taxa de fertilidade total (TFT) que já é um algoritmo, como o da esperança de vida à nascença, e que mede o número médio de filhos que uma mulher tenderá a ter ao longo da sua vida fértil se revelar o mesmo comportamento futuro de fertilidade que as mulheres de outros escalões etários têm hoje. A TFT tem uma existência mais generalizada entre os sistemas estatísticos, é, por exemplo, a variável usada nas bases de dados do Banco Mundial, sendo o comportamento desta taxa que é comparado com o chamado nível de reprodução demográfica simples que está estimado em 2,1 filhos por mulher. A descida generalizada da TFT por todo o mundo multiplicou nos tempos mais recentes o número de países com TFT abaixo do nível de reprodução simples, como acontece em Portugal.

Uma outra distinção conceptual com interesse para tornar o debate mais rigoroso é proporcionada por medidas de fertilidade que reportam a um dado período de análise, como é o caso da utilização mais generalizada das TFG e da TFT, e por medidas que respeitam a coortes (grupos específicos) que analisam a evolução da fertilidade ao longo do tempo para coortes específicas. A grande vantagem deste tipo de indicadores é a possibilidade de distinguir entre o fenómeno quantitativo da queda da fertilidade e o fenómeno da sua extensão no tempo, quando se assiste, por exemplo, aos casos de mulheres que têm filhos em idades cada vez mais avançadas, por exemplo, entre os 40 e os 45 anos de idade. Como é compreensível, a utilização deste outro tipo de dados é tanto mais consistente quanto mais envolverem coortes de mulheres que tenham já completado a sua vida reprodutiva.

A importância destes preciosismos estatísticos e conceptuais prende-se com a evidência da existência de investigação relativamente recente que tem permitido reconsiderar teorias já estabelecidas da queda da fertilidade, como o era por exemplo a chamada teoria económica da fertilidade que vem dos anos 60 quando o Nobel de Economia (escola de Chicago) Gary Becker publicou o seu artigo seminal sobre o tema. Nesses modelos, a queda da fertilidade é essencialmente explicada pelo aumento dos custos associados à decisão de criar mais um filho, seja porque os custos diretos dessa criação aumentam (investimentos em educação, tempos livres e atividades de lazer, custos de baby sitting e de infantários e creches), seja porque os custos de oportunidade enfrentados por mulheres cada vez mais qualificadas e inseridas em carreiras profissionalmente exigentes determinam também experimentam aumentos significativos.

Um excelente exemplo desta investigação mais recente e esclarecida é um artigo fresquinho publicado como Working Paper no incontornável NBER americano (a principal pool de investigação económica no mundo, apesar de Trump): Melissa Kearney e Philippe Levine (2025) – Why is fertility so low in high-incomecountries?”, julho. Este artigo é muito compreensivo do ponto de vista das grandes tendências de investigação a que me referi e tem a feliz curiosidade de integrar Portugal (pasme-se, sim é verdade!) no grupo de países investigados (EUA, Canadá, Japão, Países Baixos e Noruega). Mas que honra!

O artigo além de documentar de modo excelente o alcance reduzido de diferentes políticas de incentivo sobre a taxa de fertilidade, vem trazer novas perspetivas de análise colocando no centro da investigação a tensão que existe entre o trabalho na economia de mercado e a possibilidade de ter filhos à nossa responsabilidade.

Entre os fatores explicativos que mais atraíram a minha atenção é o que os autores designam de “mudanças de prioridades”, que envolvem a evolução de padrões societais complexos, que abrangem questões como normas e expectativas quanto ao trabalho, evolução dos critérios de qualidade e exigência do exercício da paternidade, questões de género e outros fatores sociais e culturais, onde destacaria as políticas efetivas de compatibilização da vida familiar e profissional. Interessou-me sobretudo a ideia da subida dos custos efetivos do exercício da paternidade. Ou seja, paternidade/maternidade mais consistente traduz-se numa maior intensidade de tempo alocado ao acompanhamento dos filhos que se repercute obviamente nos tais custos de oportunidade atrás referidos. Esta questão é curiosa, pois uma evolução civilizacional positiva, paternidade/maternidade mais conscientes e de melhor qualidade acabam por pesar no declínio da taxa de fertilidade.

Independentemente de voltarmos às dimensões mais promissoras desta investigação, o importante a destacar aponta para tendências estruturais gerais e dificilmente para questões muito específicas de países concretos. O que é um gigantesco para as políticas públicas baseadas na evidência estatística e científica. Por isso, a imaginação prodigiosa a que temos assistido corre o risco de fazer apenas cócegas sobre um problema que curiosamente emerge como uma consequência do progresso civilizacional e com o qual temos de aprender a lidar e não a pensar que é resolúvel no curto prazo.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário