quinta-feira, 10 de julho de 2025

SÁNCHEZ OU A ARTE DA SOBREVIVÊNCIA

 


(O que se passou no Congresso dos Deputados em Madrid é uma verdadeira peça de antologia para compreendermos a polarização política que se vai arrastando aqui ao lado. Drama, violência verbal, engenharia desenfreada de ataques pessoais, mulheres e família ao barulho, invocações mórbidas do passado, houve de tudo para dar ao Parlamento um tom que já não é apenas pícaro e tão espanhol, é algo para o qual talvez não existam ainda categorias analíticas ajustadas para o descrever. O contexto é conhecido. Os casos de corrupção que tinham assombrado o passado recente, envolvendo o ex-ministro Ábalos e outras personagens menores, numa certa perspetiva, do partido, mudaram totalmente de figura quando implicaram Santos Cerdán, terceira figura política do PSOE e com grande proximidade ao próprio Sánchez. A trama que foi sendo revelada é aquilo que se chama em linguagem de batalha naval de grande rombo no porta-aviões do partido. A sucessão acumulada de caos de corrupção relacionados que vinha emergindo desde há algum tempo tinha tudo para levar Sánchez à demissão e marcação de eleições antecipadas, sobretudo no contexto da frágil e contraditória maioria parlamentar que apoia o Governo. Com um caso tão evidente de corrupção a revelar-se à luz do dia, a probabilidade dos partidos nacionalistas e regionalistas que se agrupam nessa maioria estranha quererem furtar-se à imagem de cumplicidade apoiando o governo dava esperanças ao PP de Feijoo que a maioria pudesse dissolver-se e precipitar eleições. Foi nesse contexto de sobrevivência em risco, engrossando um rol imenso de outras situações em que Sánchez esteve nas cordas e prostrado no ringue, que Sánchez se apresentou no Congresso dos Deputados para tentar justificar mais um caso de quebra de lealdade, neste caso com um conjunto de medidas contra a corrupção, incluindo a criação de uma nova Agência específica para esse efeito. O que a sessão do Congresso mostrou à evidência foi que, em contexto de polarização política descontrolada, com um partido de extrema-direita truculenta como o Vox a morder os calcanhares à formação política que se perfila para a alternância democrática, o PP de Feijoo, o descontrolo dos discursos gera interações inesperadas que alteram por completo o rumo lógico dos acontecimentos. Por estranho que possa parecer, o que Sánchez conseguiu ontem é ver “aprovada” uma moção de confiança que não apresentou. Estranho? Sim, muito estranho, mas compreensível face ao descontrolo da polarização política em que a Espanha está mergulhada. Neste aspeto, a história não engana. A Espanha continua a servir de lição avançada por tudo que é representativo de situações extremas.)

Como é óbvio, para não se demitir, Sánchez teria de apresentar-se ao Congresso para pedir perdão pela falta de escrúpulos de um dos seus colaboradores mais próximos, com alguma coisa nas mãos. A proposta de criação de uma Agência Independente de Integridade Pública acompanha as restantes medidas que vão de duplicação de penas e de prazos de prescrição para os agentes corruptos a outras medidas dirigidas a empresas corruptoras com agravamento de penas e publicação de listas negras de empresas condenadas por delitos dessa natureza. Mas quando se analisa a gravação da sessão fica-se com a sensação de que Sánchez poderia ter apresentado outra coisa qualquer que o resultado teria sido o mesmo.

A razão principal foi dada pela dureza e descontrolo dos discursos de Feijoo e Abascal (Vox), não em termos de dureza política, que a situação e a gravidade da trama justificariam, mas do ponto de vista da virulência dos ataques pessoais e à família de Sánchez (que, convenhamos, não tem andado propriamente a fazer retiros em conventos ou mosteiros longínquos) nos quais Feijoo afinou o tom, para Abascal compreensivelmente ter de ir mais além na agressividade.

Esta virulência e a grande aversão que os partidos nacionalistas e regionalistas apoiantes de Sánchez no Congresso nutrem pela direita em Espanha (que identificam com o espanholismo centralizador e opressor) produziram o inesperado, mas que é uma consequência da polarização política descontrolada. Esses grupos representados no Congresso uniram-se contra essa violência verbal em torno de Sánchez, obviamente com avisos à navegação de que o PSOE não poderia abusar dos pedidos de perdão. Até a morte de um prestigiado sindicalista espanhol, Suzo Díaz, pai de Yolanda Díaz líder do SUMAR, ajudou à união.

Por isso, a sessão de ontem do Congresso espanhol é uma peça de antologia para compreender os meandros da polarização política mais descontrolada. Não é apenas a arte da sobrevivência política em águas descontroladas que esteve ontem em ação, é também o efeito da complexa interação de discursos que essa polarização traz consigo.

Bem pode o cronista virulento de estimação da Voz de Galicia, Xosé Luís Barreiro Rivas, afirmar, invocando César, que as ruínas também colapsam. E, de facto, a governação do PSOE tem-se assemelhado perigosamente a uma ruína. Mas, muito provavelmente, a alternância democrática terá de esperar pelo fim da legislatura para apear Sánchez e o PSOE. Essa, porém, é uma extrapolação que tem de ser revista em permanência, pois o PP de Feijoo tarda em estabilizar um estilo de oposição que o possa levar a reivindicar a governação. Não acredito que a arte da sobrevivência de Sánchez dê para ganhar umas novas legislativas, mas talvez possa aspirar a condicionar a viabilidade de uma maioria absoluta para o PP. O elefante na sala que é o Vox estará aí para complicar essa extrapolação.

 

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