(Devo confessar que, embora admirador convicto do Eixo do Mal e da sua diversidade de opinião, nos últimos tempos é notório o meu enfado com o programa, a ponto de muitas vezes o sono e o cansaço vencerem e mandar às urtigas o debate. A dissonância notória que existe entre a qualidade da escrita dos painelistas (sobretudo de Clara Ferreira Alves e Luís Pedro Nunes) e a reduzida fluência e consistência do seu discurso expositivo transforma alguns dos programas em algo de penoso, criando mesmo a ideia, ilusória talvez, de participações pouco ou mal preparadas, o que, a existir, considero um verdadeiro desrespeito pelos que assistem regularmente ao programa. Por vezes, porém, o debate anima, o sono e o cansaço são vencidos e a riqueza do confronto parece fazer regressar o programa aos seus melhores tempos. Foi esse o caso do debate de ontem, em grande medida determinado pelos dois assuntos principais do debate, o aproveitamento do Debate da Nação pelo Chega para a sua fábrica de criação permanente de conteúdos enganosos, largamente favorecido pela cobardia e medo de Aguiar Branco e, obviamente, o tema das barracas de Loures. É sobre este último tema que gostaria de refletir neste post, principalmente por entender que o virulento confronto de ideias entre Clara Ferreira Alves e Daniel Oliveira é em si próprio um excelente indicador do modo como as façanhas do intrépido Leão em Loures estão a ser interpretadas. O confronto que está a desenhar-se acontece entre os que pensam que a demolição de barracas desinserida de programas de combate à escassez de habitação e sem alternativas criadas de alojamento às famílias a desalojar é uma forma de barbárie, casos de Daniel Oliveira e Susana Peralta, com um artigo contundente hoje no Público, aos quais me associo, e os que abrigados num niilismo de pura elite entendem com normalidade que o autarca de Loures está simplesmente a erradicar uma imagem de pobreza com a qual não quer ver o seu concelho identificado. Clara Ferreira Alves interpreta bem esse niilismo, não hesitando mesmo entre fazer a comparação entre a “invisibilidade” do fenómeno dos sem abrigo na capital e o mediatismo das famílias desalojadas com a demolição das barracas na periferia para não verberar as ações musculadas do intrépido Leão. )
Uma preparação mínima da participação no debate sobre a demolição das barracas exigiria que se tivesse em conta toda a engenharia de preparação do então famoso PER (Programa de Erradicação de Barracas) criado pelo Decreto-Lei nº 163/93 de 7 de maio, programa que visava erradicar as barracas existentes nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, com destaque para a primeira. Os números atingidos pelo Programa são impressionantes, embora com possíveis inexatidões de registo de informação: erradicação de 986 núcleos de barracas com a construção de 34 759 habitações em 290 bairros de realojamento, abrangendo cerca de 32 333 agregados familiares, num total de 132 181 pessoas. Com a implementação do PER, a política de habitação em Portugal nunca a partir daí foi a mesma, sobretudo pelo tipo de integração de medidas (de política social, de políticas ativas de emprego, de apoio orientado à autoconstrução e de ordenamento territorial e urbano) que a engenharia de preparação do programa acabou por possibilitar. Quer isto significar que o PER criou um lastro de política de habitação, que corre o risco de perder-se, sobretudo se as políticas de habitação do presente continuarem a laborar no erro de admitir que o mercado é capaz por si só de resolver o problema, como é manifestamente o caso do ministro Pinto Luz.
A emergência de barracas é fruto de uma situação de declarada insolvência de procura de habitação e da inventiva de famílias que, no desespero de encontrar um teto por mais precário que seja, opta pelo provisório de uma situação de barraca que tende a perpetuar-se. É óbvio que o controlo da formação de núcleos de barracas é tremendamente difícil, já que as redes de entreajuda que tendem a verificar-se entre a população necessitada fazem com que os núcleos alastrem de forma vertiginosa, até porque a situação de insolvência de procura de habitação tem vindo a agravar-se de forma acelerada. O tal apego ao mercado como solução só está a afastar do acesso a uma habitação digna um número cada vez mais elevado de indivíduos e famílias.
O intrépido Leão, porque não tem nada para oferecer em alternativa, ou seja, poucas casas ou ausência de soluções para este problema, opta por atuar para a fotografia e tentar ganhar alguns votos ao Chega.
O problema está estudo e sabemos que o fenómeno dos sem-abrigo (alvo de uma Estratégia Nacional cuja primeira fase implementação foi avaliada por uma equipa da Quaternaire Portugal em que participei) implica sobretudo uma tipologia de situações de abandono e marginalização individuais, de gente que corta os laços com o trabalho e com a família e que são atiradas, pelo alcoolismo e droga, para a rua como última manifestação de uma trajetória de exclusão e, por vezes, de desistência. Para este fenómeno, a existência de soluções de alojamento como manifestação inicial de uma solução para a integração é vital, dando depois origem a uma integração de medidas de acompanhamento que a referida Estratégia Nacional tem alimentado.
No caso das barracas, o fenómeno é marcadamente de âmbito familiar, regra geral não há cortes com o trabalho, embora precário e de baixa remuneração, mas sim uma situação de insolvência de procura de habitação. Esta forma de insolvência de procura junta-se obviamente a outras formas de carência de habitação que devem estar globalmente referenciadas na estratégia de abordagem global ao problema, na qual a cooperação município-poder central é determinante. As famílias alojadas em barracas integram obviamente o conjunto de pessoas a residir em situações de habitação indigna, objeto por exemplo da intervenção do Programa 1º Direito (com cofinanciamento a 100% por parte do PRR) e cuja baixa execução tem sido amplamente referenciada, sobretudo por problemas inerentes ao estado da arte atual do setor da construção civil.
A principal dificuldade de tratamento deste grupo-alvo da política de habitação municipal é a necessidade nem sempre cumprida de estabilizar a magnitude do problema nos núcleos de alojamento em barracas objeto de uma intervenção. A dinâmica de extensão desses núcleos é muito rápida, fugindo por vezes ao controlo municipal ou dos serviços públicos (nesse o caso o IHRU) acaso esteja, colaborativamente envolvidos. Mas não é um problema insolúvel, sobretudo se existirem processos de acompanhamento regulares e estruturados dos diferentes núcleos.
As desculpas demagógicas de Ricardo Leão, acenando e colocando em oposição os residentes em barracas e os outros residentes concelhios à procura de habitação, designadamente pelo estado de indignidade das suas habitações (a legislação do programa 1º Direito define com rigor essas condições de indignidade), são o resultado de uma não-política de habitação. Demolir primeiro, condenar as famílias envolvidas ao desespero e assobiar para o lado face a esta dimensão do problema vai ao arrepio de tudo que é orientação internacional.
Com a aceleração que o fenómeno está a assumir, parece-me que o país vai ter de gerar nos próximos tempos um outro desígnio nacional de erradicação de barracas. A orientação pró-mercado que ressalta das posições do governo de Montenegro antecipa o pior nesta matéria. Que haja autarcas com o nome do PS atrás que ajam como o autarca de Loures é mais uma via para a irrelevância política que o PS pode estar a trilhar, embrenhado nas boas intenções de José Luís Carneiro. Por isso, a indignação de Helena Roseta é genuína e tanto a enobrece. Sabe do que fala e tem autoridade moral para o fazer, coisa que vai escasseando para os lados do Rato.

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