(Não é de todo minha intenção que este blogue possa vir a ser recordado pelos seus obituários. Mas o número de desaparecimentos ao nível da minha geração e das que a precederam é um triste sinal dos tempos da inevitabilidade da finitude da vida. O meu colega de blogue já prestou à morte de Nuno Portas a homenagem de proximidade que se impunha. No meu caso pessoal, apesar das boas relações que mantinha com o Nuno nunca com ele privei de perto, como era o caso por exemplo do Amigo comum Álvaro Domingues. Recordo apenas uma situação de forte proximidade quando, na sua casa de Vila Nova de Gaia, quase paredes meias com a caso do Álvaro Domingues, discuti com ele um texto que publiquei numa coletânea coordenada por este último e na qual o Nuno assinava também um texto. A coletânea chamava-se Cidade e Democracia – 30 anos de transformação urbana em Portugal, publicada em 2006 pela ARGUMENTUM. O Nuno era especialmente propenso a debater os caminhos da interdisciplinaridade e o meu texto ensaiava uma explicação mais económica da transformação urbana em análise. Intelectualmente, aquela conversa foi estimulante e para sempre recordar, mas impressionou-me na altura a escuridão da casa em que a conversa decorreu. Depois dessa conversa de maior proximidade, poucos momentos de reencontro, sempre cordial, aconteceram, algumas reuniões no âmbito do Plano Regional de Ordenamento do Território, embora estivesse pessoalmente sempre atento às palavras e pensamento dos que me pareciam poder ser na altura os delfins de um legado de grande importância para o planeamento e o urbanismo em Portugal – o Álvaro Domingues quando entrou decididamente no universo do urbanismo e o Nuno Grande, curador da magnífica exposição – O SER URBANO NOS CAMINHOS DE NUNO PORTAS, realizada no âmbito da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, como o tempo passa. Neste contexto, considerando que os obituários são para os que mantiveram conhecimento e relação de proximidade com o Nuno Portas, deixo aqui algumas reflexões sobre o que me parece ser o seu legado, multifacetado obviamente, já que a personalidade de agitador de ideias que o Nuno cultivou durante a sua vida profissional e académica gera um legado que é intrinsecamente multidimensional.)
As duas dimensões essenciais em que projeto o legado de Nuno Portas são o das políticas de habitação e o do planeamento urbanístico.
O primeiro está essencialmente ligado aos períodos iniciais da sua vida profissional como arquiteto, largamente ampliado com a sua intervenção nas operações SAAL. Relembro hoje esta dimensão pois ela marcou decisivamente o pensamento do PS mais vigoroso do que o de hoje e penso que a dimensão crítica que o problema da habitação tem vindo a assumir justifica que, hoje mais do que nunca, estejamos órfãos de uma visão tão revolucionário como era na altura o pensamento de Portas sobre políticas de habitação.
A publicação a que anteriormente aludi, organizada por Nuno Grande, contém textos e materiais de Nuno Portas que ajudam a compreender a minha ideia de “revolução” na maneira como abordar as políticas de habitação. Repartindo-se entre o seu trabalho de crítica na revista Arquitetura, o seu trabalho profissional no gabinete de Nuno Teotónio Pereira, depois no LNEC e também na docência, na experiência de Portas temos um legado inestimável para hoje, no contexto dos diferentes desafios que se cruzam na insolvência da procura de habitação, construir algo de novo, que simultaneamente honre esse legado e que proporcione ao Estado e aos municípios ideias de rotura para começar a construir uma resposta consistente ao problema.
A outra dimensão de legado está na conceção do planeamento urbanístico como processo e não materializável em nada mais do que planos e regulamentos. Estou em crer que a experiência de Nuno Portas no vale do Ave, com o seu peculiar modelo de povoamento, a que eu chamei por vezes de dispersão concentrada, tendeu a influenciar enormemente as suas conceções nesta matéria. A ideia de planeamento como processo gerador de padrões de política não necessariamente rígidos e inflexíveis reconduz-se necessariamente à ideia de planeamento como processo negocial.
Esta conceção marcou inequivocamente uma geração de planeadores e a ideia de planeamento-processo versus planeamento-documento foi glosada até à exaustão, conduzindo-a por vezes a uma vulgata desfiguradora do princípio inicial. O planeamento como processo negocial é de uma exigência brutal para o sistema de atores que participam mais diretamente nos processos de decisão, sobretudo porque em períodos mais longos a procura de um padrão que defina estratégia a partir da matriz de projetos concretos ou de decisões casuísticas exige uma brutal concentração de pensamento e ação essenciais.
Nuno Portas sempre se debateu com a velha questão de saber como fazer essa conceção penetrar a legislação urbanística e sobretudo a regulamentação que orienta as decisões municipais nas suas decisões do dia-a-dia. Fui, por vezes, crítico da operacionalização desta ideia central em processos de planeamento concretos, sobretudo da maneira como deveriam coexistir flexibilidade regulamentar com padrão estratégico de decisões. Ela é crítica do ponto de vista ético, técnico e profissional do sistema de atores que a executam e por vezes órfã de orientações transparentes que orientem o processo negocial. Penso que Nuno Portas enfrentou esses problemas quando foi vereador de urbanismo na Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia em 1990.
Nesta perspetiva, Nuno Portas deixou-nos um legado que é simultaneamente um poderoso campo de investigação, pois o planeamento urbanístico como processo negocial está longe de ter encontrado as fórmulas de operacionalização mais pertinentes. Mas esta exigência tornou-se necessidade, sobretudo nos tempos de indeterminação que vivemos e que condiciona a evolução das nossas Cidades.
Penso que gente como o próprio Álvaro Domingues, Nuno Grande e o Nuno Travassos, para falar apenas dos que conheço melhor, têm aqui um campo fértil para honrar o pensamento de Nuno Portas, sem abandonar a perspetiva crítica da arquitetura, mas fundamentando o planeamento como processo negocial e adaptando-o à indeterminação do nosso tempo.

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