(O título é irónico e joga com o título de uma das mais sistemáticas recolhas de música popular portuguesa, que podemos ouvir na Antena 2 desde 2011, de autoria do musicólogo Tiago Pereira. É irónico porque a justiça deveria sim estar a lamentar-se dela própria, mas esse não é regularmente o tom com que ouvimos os protagonistas, a começar pelo inenarrável Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e não foi pela saída de Lucília Gago e entrada de Amadeu Guerra que a situação melhorou. O tema de reflexão surgiu-me com a leitura de uma importante revisão do estado da arte da justiça portuguesa em matéria de violência contra as mulheres e violência doméstica recentemente publicado pelo Conselho da Europa, na sequência de uma primeira avaliação de situação realizada em 2019, ao abrigo da Convenção de Istambul e dos compromissos assumidos pelos países signatários. O relatório é curioso pois poderia resumir-se simplesmente nesta apreciação: progressos sensíveis em matéria legislativa, mas uma situação algo dececionante em termos de condições de aplicação dessa mesma legislação. Ou seja, sem desenho para melhor explicar, da parte do que os políticos conseguiram em matéria legislativa o Conselho da Europa saúda os progressos alcançados, mas do ponto de vista da ação da justiça propriamente dita, a situação não seria para “gostar dela própria”. O que mostra bem como a sanha persecutória contra os agentes políticos é contraditória. Seria bem melhor que olhasse para ela própria e melhorasse a sua intervenção.)
O ciclo de avaliação temático realizado pelo Conselho da Europa teve por motivo central o “estabelecimento de um clima de confiança através do fornecimento de apoio, proteção e justiça”, tendo por base a concretização do princípio fundamental da Convenção de Istambul.
O relatório regista com agrado as alterações legislativas introduzidas no Código Penal e no Código de Processo Penal, destacando a revisão da definição do que deve entender-se por violação sem ou com consentimento, que juntamente com as alterações sucessivas que em 2020 e 20221 foram concretizadas na Lei da Violência Doméstica evidenciam um empenho concreto na concretização de reformas estruturais relativamente à violência contra as mulheres, adaptando o quadro legislativo português aos compromissos de Istambul. O relatório destaca ainda as ações empreendidas no sentido de integrar os cuidados de saúde num quadro mais geral de proteção das mulheres vítimas de violência.
Mas quando se passa à aplicação em concreto destas alterações, o relatório coloca a justiça portuguesa numa situação de pouco prestígio:
“Para lá dos progressos realizados em Portugal para aplicar a convenção, o GREVIO (Grupo de Peritos sobre a luta contra a violência contra as mulheres e a violência doméstica) identificou um conjunto de domínios em que as autoridades deverão tomar medidas urgentes para se adaptar plenamente às disposições da convenção. O GREVIO concluiu que será necessário propor com prioridade uma formação inicial e contínua obrigatória e sistemática para os membros do poder judicial, que abranja todas as formas de violência contra as mulheres previstas na Convenção de Istambul. Isso é necessário para atacar a questão das sanções indulgentes e desproporcionadas ditadas pelo poder judicial, designadamente em matéria de violência doméstica e sexual. É igualmente necessário lutar contra as atitudes patriarcais (sublinhado meu) que privilegiam a proteção da célula familiar em detrimento dos direitos das vítimas, que se encontram em alguns membros do poder judicial e sublinhar que o dito síndrome da alienação parental não tem qualquer fundamento científico e que não deveria por isso ser utilizado nos procedimentos familiares caracterizados por circunstâncias de violência doméstica”.
O relatório acrescenta ainda que “apesar dos esforços consideráveis realizados para aumentar a disponibilidade de serviços de apoio especializados às vítimas mulheres, não existe ainda uma linha telefónica de apoio reservada às mulheres vítimas de formas de violência e que funcione em pleno durante 24 horas. São ainda necessários esforços adicionais para que o número de lugares familiares em casas refúgio ao longo de todo o país em linha com as exigências da convenção e para aumentar a disponibilidade global dos serviços de apoio especializado a médio e a longo prazo às mulheres vítimas. O GREVIO identificou ainda a necessidade de suprimir uma exigência legal atualmente em vigor que condiciona o acesso a um refúgio para as vítimas de violência doméstica à sinalização da violência.”
Em trabalho profissional por mim coordenado sobre a avaliação do Programa PESSOAS 2030 que financia com o FSE + entre outras políticas a política pública de proteção da violência doméstica e violência contra as mulheres, o contacto com a APAV (Associação de Apoio à Vítima) permitiu-me concluir que este relatório do Conselho da Europa compreendeu muito bem o nosso estado da arte nesta matéria.
Gostei muito do precioso pormenor de que muitos membros do poder judicial (juízes homens ou mulheres que ditam sentenças) desenvolvem “atitudes patriarcais” em proteção da célula familiar em detrimento da proteção da vítima e dos seus filhos. Pois é assim. Como sempre digo, imaginar que existem corpos sociais puros que não reflitam o estado global da sociedade já não é ingenuidade, é uma visão distorcida e instrumental para atingir outros fins.

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