(OECD)
(Noah Smith publicou recentemente uma excelente e explicativa crónica sobre a narrativa sem fundamento que Trump desenvolve sobre o seu protecionismo de que a errática política de impostos aduaneiros sobre as importações provenientes de um “novo Eixo do Mal” constitui a manifestação mais representativa. Embora o artigo seja elaborado para demonstrar a falta de fundamento da ideia de que a globalização apagou a chamada classe média americana, ele é mais vasto do que isso, pois mostra que a onda protecionista de Trump não obedece a qualquer racional macroeconómico. Um dos grandes esteios da narrativa protecionista de Trump é o de que o protecionismo aduaneiro irá permitir a reindustrialização da América e o retorno aos velhos tempos da indústria transformadora americana, como se não houvesse leis estruturais na economia e uma delas, a que alguns chamam de facto estilizado, corresponde precisamente à descida do peso da indústria transformadora no PIB à medida que o desenvolvimento económico se observa. A crónica de Smith desmonta com perícia, agilidade e sobretudo muita evidência os principais mitos sobre os quais assenta a narrativa trumpiana e do MAGA em geral. Trump mente como respira e alguns destes mitos agora desmontados por Smith são constantemente matraqueados como verdades irrefutáveis, mas a verdade nua e crua é que não resistem a uma simples rotina de procura de evidência.)
O absurdo de toda essa narrativa falseada é que esboço de política industrial e ambição de reindustrialização teve-a a administração de Biden que, precisamente, foi objeto de imediata destruição e abandono logo que assentou arraiais na Casa Branca. Essa política industrial de Biden que exigiria obviamente tempo de maturação foi rapidamente substituída por uma narrativa que invocou a reindustrialização mas que é falsa porque assenta em mitos não observados empiricamente.
Em primeiro lugar, uma das falácias em que assenta a narrativa de Trump é a de associar défice comercial externo a destruição da indústria transformadora. Hoje em dia, a economia americana é tudo menos uma economia extrovertida, ou seja, o mercado externo influencia muito menos a afetação de recursos na economia americana do que o mercado interno. Em termos comparativos, o peso das importações no PIB americano é muito mais baixo do que o registado noutras economias avançadas do mundo. E mesmo os défices externos não ultrapassam 4% do PIB, cabendo ao défice com a China apenas 1% do PIB. E o que me parece mais importante é que o maior peso das importações americanas se observa em produtos intermédios e não em bens de consumo finais. Não sei se os americanos andaram distraídos com as cadeias de valor globais, mas a verdade é que quem é mais tributário de importações é a produção americana e não o consumo interno. É isto que explica a balbúrdia que o chamado dia da Libertação de Trump provocou, pois uma grande parte da produção americana viu as suas condições de custos penalizadas pela necessidade de adquirir produtos intermédios mais caros, porque passaram a ser taxados.
É claro que os mais atentos se recordam que em 2016 um artigo de David Autor, David Dorn e Gordon Hanson causaram algum alarido com a explicação pormenorizada do chamado choque chinês e da associada perda de emprego na indústria transformadora, estimada em cerca de 3 milhões de empregos nos anos 2000. Os cálculos de Autor, Dorn e Hanson apontavam um efeito concentrado em algumas regiões apenas, pois globalmente não representavam mais do que 1,5% a 2% da força de trabalho americana. Nas condições da economia americana em que a influência do mercado externo na afetação de recursos é inferior à de outras economias avançadas, uma grande parte do choque chinês acontece paredes meias com a evolução tecnológica. Existem estimativas que mostram que, mesmo no cenário limite de substituir importações por bens de produção nacional americana na proporção de 1 para 1, a subida do peso da indústria transformadora no PIB subiria de 10% para apenas 12,5% e isso não pode deixar de estar também associado ao peso dos serviços na própria indústria transformadora. E não será certamente por acaso que praticamente em todas as economias mais avançadas do mundo o peso da indústria transformadora no PIB tem descido regularmente à medida que o desenvolvimento económico faz aumentar os níveis de rendimento.
O artigo de Smith traz duas outras evidências que vale a pena aqui registar.
Em primeiro lugar, o rendimento disponível mediano dos EUA destaca-se entre as economias avançadas, o que contraria o discurso negativista da globalização para a mediana dos americanos. O que não deixa de ser surpreendente (ver gráfico que abre o post).
Uma segunda evidência é a evolução comparada do crescimento do salário real hora entre os períodos de 1976 a 2000 e de 2000 a 2024. A comparação é flagrante e, ainda que haja nos percentis 50 e 60 um aumento menor do que nos extremos, o crescimento do salário real no período do chamado choque chinês foi incomparavelmente superior.
E, por fim, uma evidência que me surpreendeu foi o comportamento do emprego por níveis de qualificação da população no período de 2016 a 2022. São os empregos de elevadas qualificações que crescem com significado, com descidas salientes do emprego de baixas e médias qualificações.
Com toda esta evidência, é de perguntar, e isso é perturbador, como é que neste contexto a narrativa de Trump passa incólume. Apetece perguntar se efeitos localizados conseguem validar uma narrativa global que é falsa e desprovida de evidência.



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