(Pausa nos temas “wonkish” da economia americana e nas perturbações disruptivas deste mundo que nos atormenta e deprime para me concentrar numa das raras aparições mediáticas da minha diva do piano, Martha Argerich. Com uma longevidade que se destaca na história do piano, aos 83 anos ainda com destreza e força de mão e de dedos para atacar peças de tirar o fôlego, a juba frondosa e branca de Argerich emerge do New York Times com toda a força da sua personalidade, não enjeitando fumar um Gauloises, que me faz mergulhar na abundantíssima massa de CD’s que me acompanham em Gaia ou em Seixas. Em matéria de aparições públicas, imagino que terei de viver das memórias de um memorável concerto na Gulbenkian com o seu ex-marido Stephen Kovacevich, pois a oportunidade de a rever seja em Lugano, with friends, seja por essa Europa fora, seja numa esporádica passagem por Portugal, é cada vez mais remota. Falhei a última passagem pela Póvoa de Varzim, tamanha foi a procura que, num ápice, se manifestou. Fiquemos por isso com a preciosidade desta entrevista/reportagem de Javier C. Hernández no NYT e gozemos o prazer da sua música e desempenhos nostálgicos ou vibrantes, contemplativos ou eletrizantes, não importa. Interessa-me sobretudo compreender a filosofia existencial de alguém que aos 83 anos continua a ter os auditórios dependentes da sua arte e inspiração, mas que tem de lidar com a agitação das viagens, tal e qual saltimbanco dos aeroportos e que persiste na sua modéstia e nos seus medos. Na entrevista, Martha Argerich faz eco de um aviso de um maestro argentino que a dirigiu no Teatro Colón em Buenos Aires, Washington Castro, que a alertou – “Acontecem coisas estranhas aos pianistas que tocam o concerto de Schumann”.)
É conhecida a sua decisão nos anos 80 de não mais realizar concertos a solo, sozinha no palco, explicou ela porque esse contexto lhe provocava uma incómoda sensação de solidão – a expressão utilizada é a de como se fosse um inseto sob uma luz intensa. Talvez as memórias da depressão por solidão que viveu em Nova Iorque no início dos anos 60, quando para aí se mudou na esperança então de se encontrar com Horowitz, a referência dos seus primeiros anos. A vitória no concurso Chopin de Varsóvia em 1965 iniciou uma carreira imparável, que se alimenta até hoje de uma presença quase mística no palco, agora tocando a quatro mãos sempre com alguém com quem mantém uma forte relação de amizade e proximidade (percebe-se que a morte de Nélson Freire foi para ela devastadora ou que a doença de Parkinson de Daniel Barenboim deixará também marcas), ora tocando com outros instrumentistas dos quais Mischa Maisky no violoncelo é uma referência de retorno constante, ora ainda em concertos para piano e orquestra.
A sua afirmação ao jornalista do NYT de que por vezes sente vontade de se esconder, não querendo ser pianista, mas uma outra coisa, são digressões episódicas de estados de alma que rapidamente dão lugar a desempenhos ainda mais marcantes, enquanto as mãos e os dedos aguentarem. Para mim é suficiente ler o que pensam as grandes pianistas da nova geração quando se referem a Argerich, como é o caso da prodigiosa chinesa Yuja Wang no último número da revista BBC Music, para compreender que o legado de Martha e a sua presença ainda marcante em palco vão perdurar por muito tempo.
Não sou capaz de antecipar quanto tempo os concertos de Lugano com os seus amigos mais próximos irão perdurar.
O artigo termina com um reencontro: “já não pergunto, apenas toco”.
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