quarta-feira, 30 de junho de 2021

UMA EXPOSIÇÃO IMPERDÍVEL


Da minha mais recente passagem por Lisboa sublinho a magnífica exposição patente na Galeria do Rei D. Luís do Palácio Nacional da Ajuda: “D. Maria II. De princesa brasileira a rainha de Portugal. 1819-1853”. Anunciada como uma viagem pela vida, o tempo e o legado da “Educadora”, através da reunião de um conjunto de obras de arte, peças, objetos, documentos e joias, a exposição em causa tem por mote o bicentenário do nascimento da primeira rainha constitucional de Portugal e evoca exaustivamente, de facto, toda a sua biografia (nascimento, educação, vida familiar, casamento(s) e relações pessoais) e inúmeros elementos e detalhes internos e externos do seu atribulado reinado de quase duas décadas em que Portugal passou do Absolutismo ao Constitucionalismo num quadro de enormes transformações sociais, económicas e culturais.

 

Detive-me especialmente em alguns tópicos, como sejam o trono aos quinze anos, os três casamentos (que realmente quase se reduziram à íntima ligação com Fernando Augusto Francisco António, duque e príncipe de Saxe-Coburgo-Gotha e ulterior rei-consorte D. Fernando II), o período entre a revolução e a ordem (1836-1842), os primos Vitória e Alberto do Reino Unido, as relações algo contraditórias com António Bernardo da Costa Cabral (1842-1851) ou o fim do reinado (1851-1853).


Apreciei também duas outras coisas: por um lado, perceber como a figura de D. Maria II terá sido bem mais interessante do ponto de vista feminino do que alguns dos retratos que dela dominantemente se exibem (alguns exemplos acima); por outro lado, rever tantas das caras daquele tempo que estão imortalizadas em nomes de ruas por que passamos todos os dias na minha cidade do Porto (alguns exemplos abaixo, do Duque de Palmela a Passos Manuel, do Duque da Terceira ao Marquês de Sá da Bandeira, do Duque de Saldanha a Costa Cabral). Saído de tão desafiante síntese de um tempo, de imediato me decidi a completar a visita com uma releitura de um trabalho de 2007, da autoria de Maria de Fátima Bonifácio, sobre D. Maria II, o qual me permitiu reavivar muitos aspetos do que foram aqueles anos atribulados e decerto também fascinantes. Se puderem, não percam uma exposição que estará patente ao longo do Verão e até 29 de setembro.


A PURGA

 


(Não imagino qual irá ser o desfecho da investigação judicial a Joe Berardo e restantes arguidos, interessando-me mais o apuramento de responsabilidades de gente envolvida dentro da banca do que as revelações em torno de tão estranha mas igualmente tão previsível personalidade. Do ponto de vista do modelo económico e também político que nos conduziu à exaustão do modelo de crescimento subjacente à queda do PEC 4 e precipitação da entrada de Passos Coelho, a metáfora que me vem à cabeça é a de purga de um sistema. É uma espécie de limpeza dos fatores que conduziram a que o modelo ficasse exaurido e muito provavelmente não iremos ficar por aqui, outros fantasmas sairão dos armários.)

A personagem de Joe Berardo era tão estranha e simultaneamente tão previsível que dificilmente um dia uma peça qualquer da engrenagem não iria falhar e por a nu as vulnerabilidades dos esquemas sobre as quais estava construída. E, em coisas do género, basta estar um pouco atento para perceber que a personagem não existiria isolada e apenas com a ajuda por mais brilhante que fosse dos seus principais advogados. Afinal o homem movimentava-se com uma facilidade apesar do seu peso e envergadura que obviamente caminhava por caminhos oleados pela ajuda de outros. É por isso que as averiguações sobre o papel de personagens da própria banca neste processo são cruciais não só para perceber a construção do dano financeiro, mas também a intensidade das movimentações políticas que acolitaram ou instrumentalizaram o processo para desígnios mais altos.

Há já algum tempo que assistimos a uma purga do sistema, crucial para tentar compreender com que saúde de instituições e recursos poderemos equacionar uma recuperação de alcance mais estratégico e que não mais baseie o crescimento nos fatores que exauriram o modelo. Essa purga é desagradável porque evidencia as patologias do sistema e faz ignorar a presença de coisas saudáveis. Mas não vejo outra forma de ir clarificando com quem é que poderemos contar para a tal recuperação. Pena é que a justiça alongue para além do que é compreensível processos desta natureza, adiando a manifestação dos efeitos benéficos de tais purgas. Porque para além de um certo limiar de tempo para a concretização dos efeitos de saneamento de processos e personalidades são evidentes os riscos de que a patologia se sobreponha ao que é ainda saudável e recomendável nestes processos.

Os processos de regeneração e de purga de processos com elevada carga de especulação, nepotismo, corrupção e alocação ineficiente de recursos estão pouco estudados, sobretudo porque tendem a ser equiparados a processos liquidacionistas de superação das crises, invocados por autores como Hayek e em parte Schumpeter para explicar a recuperação das economias após crises severas como a de 1930. Neste caso, invoco a ideia de purga dos comportamentos e processos que nos conduziram à exaustão do modelo de crescimento e à anemia das taxas de crescimento económico nos anos 2000 e seguintes como algo de diferente do liquidacionismo total e sem olhar a custos em matéria de destruição de emprego, de desemprego e de atividade económica.

Não me admiraria que outros processos e personalidades venham a lume. Manuel Carvalho fala hoje no Público de um duro golpe na impunidade. Assim é, se a entendermos como o produto da cumplicidade de aproveitadores e de potenciadores de condições favoráveis e não apenas como a manifestação apenas de uma personalidade insólita. Espero que a investigação o consiga demonstrar, até porque o tempo da recuperação urge e há gente e processos que têm de ir borda fora para o barco se tornar mais ágil e seguro.

Nota: Correções de gralhas em 01.07.2021

terça-feira, 29 de junho de 2021

PRESOS POR UM FIO

(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com)

O dia foi cheio e variado mas não se tornou suficientemente capaz de evitar fazer-me regressar recorrentemente às suas marcas, algumas boas e a maioria más. Fica o desabafo assim tornado obrigatório e, sobretudo, o registo íntimo das memórias de dias idos mas que não se apagam.

O GOLDMAN DA NOSSA PRAÇA


Pode ser que me engane mas as aproximações cada vez mais rentes que Durão tem vindo a fazer recentemente em relação à Terra Pátria nunca produzirão qualquer resultado significativo em termos da reforma dourada que tanto lhe agradaria gozar em Belém depois de anos de desastrosas inconsequências, entre o abandono da liderança do governo português para ser presidente da Comissão Europeia (no quadro de uma história que ainda tem muito que contar, to say the least) e a passagem como lobista profissional para a prestação de serviços a uma alta finança internacional ainda não recomposta das malandrices que largamente proporcionaram a crise de 2007/08. Embora esteja como aquele outro cidadão que declarou já nada o poder surpreender desde que viu um porco a andar de bicicleta... Em todo e qualquer caso, quanto pagaria eu do meu milionário salário para não ser capa mensal de uma revista em que diariamente aparecesse intitulado, perante os portugueses que vão deitando os olhos às montras dos quiosques, “o goldman português”? Ademais, não sem acrescentar que “as presidências são a sua vocação”! De facto, a ambição cega (mas também embrutece), mesmo os génios mais privilegiados! Na minha provinciana cidade, a isto chama-se um misto de barro à parede a ver se pega e de uma dose incomensurável de espertalhice; ou, se quiserem, simplesmente latosa.

MELÃO OU MELANCIA?

 



(Na noite do passado domingo, deparei-me com duas derrotas de sinal contrário, uma das quais poderá ser descrita pela metáfora do melão, a derrota da seleção, e uma outra que à falta de melhor metáfora uso a da melancia, correspondente à derrota da extrema-direita francesa de Marine Le Pen mas também do movimento de Macron, na segunda volta das eleições regionais francesas. É sobre estas duas metáforas que hoje escrevo, já com a distância de um dia para aclarar espírito e atenuar sensações a quente.)

O melão com a derrota da seleção gerou-me alguma tristeza, não só porque aquela segunda parte talvez justificasse melhor resultado, mas sobretudo porque a história do “nosso fadinho” é recorrente. Empolámos excessivamente os desafios sempre com o fito de sobrevalorizar as vitórias mas quando dá para o torto e os deuses não nos acompanham a deceção instala-se na medida inversa da sobrevalorização do desafio. Sempre foi assim numa espécie de dificuldade de lidar com a nossa dimensão real, muito típico numa nação que já foi colonial e que a história foi atraiçoando e devolvendo às suas entranhas. E é aqui que eu acho que o Fernando Santos corporiza numa luva esta representação. Ele é o exemplo da reatividade quando acossado e praticamente inexistente na proatividade. Ora isto não é a expressão total do nosso comportamento histórico?

Não lembraria ao diabo começar o jogo com a Hungria com dois homens de contenção no meio-campo, Danilo e William e só a partir daí reagimos e fizemos entrar os fatores dinâmicos Renato Sanches e João Palhinha. Fomos positivamente cilindrados pelo rolo compressor daquele defesa esquerdo alemão Gosens e depois empurramos os franceses para uma espécie de “entente cordiale” de última hora. Repetimos a proeza com a Bélgica, reagimos, mas uma segunda parte plena de dinâmica e movimentação não chegou para a eficácia desejada.

A seleção está perante uma transição delicada, que é etária, tanto mais dificultada quanto mais os mais velhos (Pepe, Ronaldo, João Moutinho) têm feito tudo positivamente para complicar a transição, sobretudo os dois primeiros, com desempenhos físicos notáveis e só ao alcance de alguns eleitos. Mas como já disse aqui o País e a Seleção precisam de começar a fazer o desmame do efeito adictivo Ronaldo no jogo e na nossa projeção internacional. Pena foi que o recorde dos golos na seleção não tivesse sido agora superado, porque isso facilitaria a transição e o desmame.

Há material humano que baste para o rejuvenescimento mesclado da seleção, oxalá os jovens já presentes no radar de Fernando Santos e os que aguardam nas seleções mais jovens e nos seus clubes, seja lá fora ou cá dentro, encontrem espaços e oportunidades de experimentação para estar prontos para o desafio. Talvez falte um companheiro no centro da defesa para Rúben Dias, mas pelos restantes lugares o capital é riquíssimo.

A eterna interrogação será decidir se o timoneiro deve encaixar nas profundas raízes do nosso atavismo (no estilo competente e reativo de Fernando Santos) ou se é tempo para combater esse atavismo e abanar a inércia, e não vou mencionar nenhum nome para essa ambição, já que estou por estes tempos algo suspenso sobre o que valerá Mourinho nos próximos tempos.

Há melões saborosos e também isso pode acontecer com esta seleção.

Quanto à outra derrota ela foi saborosa, Marine Le Pen foi de novo derrotada e parecer dar sinais de exaustão, mas se a projetarmos no futuro acontece como aquelas melancias de um vermelho esplendoroso mas que de saborosas têm muito pouco. Senão vejamos.

Numas eleições em que estava em causa a barragem da extrema-direita ameaçadora em França e em que vários “rassemblements” foram concretizados para proporcionar essa barragem, a taxa de participação eleitoral foi ridícula. O que não deixa de ser um sinal sobre o valor que os franceses atribuem à questão regional. Se tivermos em conta que o movimento de Macron também sofreu uma derrota das antigas, então a conclusão a retirar é que as forças políticas mais tradicionais se aguentaram e contiveram seja a novidade ameaçadora, seja a novidade que apontava para mais e que parece ter Macron enredado nas suas próprias contradições. A velha democracia parece ter funcionado e quer que se queira quer não os dados estão lançados para as Presidenciais com contornos que pareciam inverosímeis há poucos meses.

Vários cenários se colocam para o futuro político da França. Ou esta baixa taxa de participação pode ser fortemente diminuída com o embate mais mediático das Presidenciais que suplantarão obviamente o marasmo regional, que deriva em parte do modelo nem carne nem peixe do regionalismo francês. Ou então a baixa taxa de participação traduz uma anomia das valentes que nem sequer o populismo de Le Pen, nem a contraditória ousadia de Macron conseguem minorar. Tudo parece órfão, particularmente à esquerda, de tempos idos e de personalidades irrepetíveis, parecendo que apenas a direita mais tradicional dá sinais de vida. Mesmo os Verdes que tiveram nas municipais de 2020 um ressurgimento promissor parecem ter essa evolução estancada, seguindo aliás o padrão alemão em que essa formação política, depois de emergir como sendo alternativa à sucessão entre muros de Merkel, parece ter estancado a sua evolução.

Tempos incertos estes, também no reordenamento das forças políticas.

PURO BOM SENSO OU ALGO MAIS?

Sexta-Feira à noite apanhei, por mero acaso, o debate noturno da TVI24. Moderados pela jornalista Carla Moita, opinavam Adalberto Campos Fernandes (ACF), Ricardo Baptista Leite e Joana Amaral Dias; parei por instantes, de início apenas pela curiosidade de visualizar o registo em que nesse dia esta última se colocava em termos da sua habitual postura narcísica e inflamada. Mas acabaram por ser as intervenções de ACF, que nunca tinha ouvido tão lúcido e eloquente (distração minha?), que levaram a que me deixasse ficar por ali. E a que agora me decida a apresentar de seguida algumas das suas mais consequentes afirmações.


Numa síntese geral: “É necessário encontrar uma nova narrativa e uma nova prática de abordagem do processo que estamos a viver neste momento. Nós hoje temos muito menos internamentos, felizmente, menos severidade dos casos, menos mortalidade e, portanto, não podemos estar a agir hoje como agíamos em fevereiro ou em março quando tínhamos o sistema de saúde à beira do colapso. Outra questão é se esta matriz que estamos a utilizar e que estamos a resistir, do meu ponto de vista erradamente, a mudar está ou não a servir os interesses nacionais. Porque uma coisa é aquilo que são os indicadores internacionais e o que o CDC pede e outra coisa é nós estarmos a fazer a gestão interna da pandemia fixando-nos, com alguma teimosia, numa matriz que várias entidades e vários políticos têm dito que deve incorporar outras variáveis relevantes, como são a mortalidade, a pressão sobre o SNS, o prejuízo da economia, e, pior do que isso, a fazer com que algumas pessoas, não compreendendo essas medidas, se tornem menos cooperativos com essa situação. A realidade hoje é vacinar, testar, respeitar os outros e procurar condições para que o País retome a economia, o emprego, o rendimento e que as pessoas não entrem num ciclo de sofrimento económico e pessoal. Acho que não podemos jogar com os cidadãos um jogo de contradições, acho que a atividade de gestão política da pandemia não é um exercício lúdico, não é um exercício que nos permita graus de liberdade que dispensem, nomeadamente, o exemplo; e o exemplo não é apenas o nosso comportamento, é também o peso da nossa palavra e quem está na vida pública tem uma responsabilidade acrescida porque efetivamente influencia muito mais do que quem não está.”

 

E, mais adiante: “Eu não estou em condições de dizer que nós estamos a iniciar uma quarta vaga. Mas mesmo que estivéssemos a iniciar uma quarta vaga, nós temos hoje um contexto de morbilidade e de mortalidade que é totalmente diferente. E, portanto, eu acompanho a ideia de que o catastrofismo e esta coação psicológica sobre as pessoas em nome de algo que efetivamente não está a ter tradução concreta sobre o risco de vida e o risco de doença — que devemos monitorizar dia a dia — não deve ser o discurso, como o Presidente da República procurou sinalizar há umas semanas atrás. Um segundo aspeto é o seguinte: a Ciência não é branca nem preta, o que sabemos hoje é muito menos do que saberemos amanhã e um pouco mais do que sabíamos ontem. E a Ciência em si mesma encerra, no seu interior, um poderoso elemento de contradição que resulta da busca pelo conhecimento permanente. Mas o que nós sabemos ao dia de hoje é que a vacina com duas doses mantém um altíssimo nível de eficácia relativamente à chamada variante “Delta Plus”. Portanto, o que seria necessário do meu ponto de vista seria manter um discurso sereno — menos espetáculo na Ciência e mais recato na Ciência.”

Depois, ACF ainda quis adicionar: “Acresce o risco de nós entrarmos aqui num campeonato de comparações com realidades sociais, demográficas e epidemiológicas totalmente diferentes. A única coisa que me parece que nós temos feito menos bem em Portugal — talvez a mais grave — é que nós temos oscilado entre a contemplação e a reação. Nós passamos de uma fase contemplativa em que nos convencemos — eu diria de uma forma ingénua — de que somos tendencialmente os melhores do mundo para de repente nos apercebemos de que não somos e vamos reagir. E isto gera uma espécie de oscilo-batente psicológico, de uma entrada no carril seguida de uma saída do carril, que beneficiaria muito se tivéssemos em conta que os cientistas são essenciais mas, à semelhança de outros países, deveriam estar reservadamente a aconselhar e a escrever, a pôr por escrito, aquilo que propõem e as razões por que o propõem. A Ciência-espetáculo, tal como a política-espetáculo, não é útil para o interesse público. No princípio, o Infarmed foi muito bom porque deu a ideia de unidade nacional — os órgãos de soberania, as entidades empresariais e os trabalhadores — mas, a partir do momento em que nós entramos num domínio da Ciência e da incerteza da Ciência, nós devíamos ter, como tem a Alemanha e têm outros países, um conjunto restrito de cientistas reputados, independentes, com provas dadas e com currículos específicos na matéria; porque eu fico um pouco preocupado que alguns aconselhamentos venham de pessoas que chegaram ontem à Epidemiologia e que chegaram ontem a estas questões da Saúde Pública. A Ciência tem instrumentos e tem dúvidas, tem que escrever, tem que pôr por escrito aquilo que recomendou à política (e esta age em conformidade). O que vimos no Infarmed foi uma sucessão de power-points e nós não sabemos qual a parte do power-point foi, de facto, a que prevaleceu mais. E, finalmente, a ideia de que é perigoso fazer medidas que não têm grande racionalidade, nem técnica nem científica nem democrática, apenas para dar a ideia de que estamos a fazer algo e de que estamos a reagir. Quer dizer, fazer um cerco em três milhões de habitantes, não é preciso ser epidemiologista nem especialista em Astrofísica para perceber que é, de facto, uma medida de baixíssima utilidade.”

 

Para concluir deste modo: “É muito perigoso dar a ideia às pessoas de que a vacina não é eficaz. A vacina permite que possa haver, eventualmente, reinfeção mas num quadro clínico absolutamente minor. O que nós queremos é que as pessoas não morram, o que nós queremos é que as pessoas não sejam internadas em situação dramática, o que nós queremos é que as pessoas não tenham sequelas e complicações. A vacina protege muita gente, como os números e a Ciência evidenciam com toda a clareza, e nos casos em que estamos a identificar infeção ela é uma infeção minor, a pessoa infeta-se mas não tem um quadro clínico devastador.” E mais: “Qual é o contributo que nós todos devíamos dar? Um discurso franco e leal para com as pessoas e, rapidamente, junto da Assembleia da República, tomar a iniciativa da produção de uma lei nova que dê um enquadramento legal e legítimo a este tipo de medidas que vão sendo tomadas e que estão algures entre o Estado de Emergência e a Calamidade Pública mas que em muitos casos ficam, de facto, numa zona de limbo e suscitam alguma confusão. A questão da testagem é fundamental e deve ser de livre acesso. Depois, ainda vamos a tempo de voltar a reforçar a Saúde Pública para trabalhar no nível da proximidade, das autarquias, do controlo das cadeias de transmissão. E alterar a matriz de risco porque nós podemos continuar aqui mais uns meses a dizer que não haver internamentos graves em grande número ou mortalidade em grande número ou população cada vez mais vacinada não conta e, portanto, que temos de reagir hoje com o mesmo alarmismo e atitude com a mesma atitude de fecha e abre ou abre e fecha como fizemos no passado recente. Portanto, simplesmente e para concluir: vacinar em massa o mais rapidamente possível, porta aberta sem complicações e constrangimentos burocráticos, naturalmente oferecer a possibilidade do teste de uma forma geral e gratuita nas farmácias, nos centros de saúde e onde for possível, ter uma atitude de olho de perdiz — uma expressão que nós utilizamos no sentido de focar com tiros certeiros e não disparar em aberto para a atmosfera, porque se perdem as balas e não se atinge nada — e finalmente discutir o que ainda não o foi: se os festejos desportivos tiveram ou não influência no que está a acontecer em Lisboa, e isso em abono da confiança de todos no Sistema de Saúde e até na política tem que ser assumido: ou teve ou não teve. Não é um problema deste Governo mas dos Governos todos: há uma certa dificuldade em explicar às pessoas que nós tínhamos planeado uma determinada ação, tínhamos pensado que a execução e a medida era esta e que essa medida não correu bem; e, portanto, passamos a vida a relativizar as coisas que correm mal — não correu nada mal porque... no Reino Unido também está a correr mal; isso não adianta nada, nós erramos todos os dias e, se erramos todos os dias, só temos de fazer prova de que não erramos nem por incompetência nem por negligência, erramos em cima daquilo que é a incerteza dos dados e a incerteza da Ciência. Mas isso dá confiança às pessoas e as pessoas querem trabalhar, as pessoas querem fazer a sua vida e estão dispostas a continuar a cumprir.”

 

Ora, até pode ser que tudo isto que foi dito não constitua mais do que puro bom senso — o que seria só por si louvável o bastante — mas confesso que não consigo deixar de ler nas palavras de ACF algo mais, fruto de uma observação atenta e de uma experiência consolidada mescladas por exasperações bem percetíveis. Pela minha parte, escolho destacar, muito especialmente, aquele proverbial “menos espetáculo na Ciência e mais recato na Ciência” — é que já não há qualquer pachorra para tantas luzes em cima de especialistas mais ou menos pintados e as mais das vezes meros vendedores de ideias vulgares e expressas ao sabor das oportunidades conjunturais que se lhes vão deparando através de políticos impreparados e de jornalistas ignorantes (ou vice-versa); sendo que alguns ainda acumulam ao acharem-se em condições de fazer política ou, pior um pouco, marketing político... E mais nada, pois então!