Sexta-Feira à noite apanhei, por mero acaso, o debate noturno da TVI24. Moderados pela jornalista Carla Moita, opinavam Adalberto Campos Fernandes (ACF), Ricardo Baptista Leite e Joana Amaral Dias; parei por instantes, de início apenas pela curiosidade de visualizar o registo em que nesse dia esta última se colocava em termos da sua habitual postura narcísica e inflamada. Mas acabaram por ser as intervenções de ACF, que nunca tinha ouvido tão lúcido e eloquente (distração minha?), que levaram a que me deixasse ficar por ali. E a que agora me decida a apresentar de seguida algumas das suas mais consequentes afirmações.
Numa síntese geral: “É necessário encontrar uma nova narrativa e uma nova prática de abordagem do processo que estamos a viver neste momento. Nós hoje temos muito menos internamentos, felizmente, menos severidade dos casos, menos mortalidade e, portanto, não podemos estar a agir hoje como agíamos em fevereiro ou em março quando tínhamos o sistema de saúde à beira do colapso. Outra questão é se esta matriz que estamos a utilizar e que estamos a resistir, do meu ponto de vista erradamente, a mudar está ou não a servir os interesses nacionais. Porque uma coisa é aquilo que são os indicadores internacionais e o que o CDC pede e outra coisa é nós estarmos a fazer a gestão interna da pandemia fixando-nos, com alguma teimosia, numa matriz que várias entidades e vários políticos têm dito que deve incorporar outras variáveis relevantes, como são a mortalidade, a pressão sobre o SNS, o prejuízo da economia, e, pior do que isso, a fazer com que algumas pessoas, não compreendendo essas medidas, se tornem menos cooperativos com essa situação. A realidade hoje é vacinar, testar, respeitar os outros e procurar condições para que o País retome a economia, o emprego, o rendimento e que as pessoas não entrem num ciclo de sofrimento económico e pessoal. Acho que não podemos jogar com os cidadãos um jogo de contradições, acho que a atividade de gestão política da pandemia não é um exercício lúdico, não é um exercício que nos permita graus de liberdade que dispensem, nomeadamente, o exemplo; e o exemplo não é apenas o nosso comportamento, é também o peso da nossa palavra e quem está na vida pública tem uma responsabilidade acrescida porque efetivamente influencia muito mais do que quem não está.”
E, mais adiante: “Eu não estou em condições de dizer que nós estamos a iniciar uma quarta vaga. Mas mesmo que estivéssemos a iniciar uma quarta vaga, nós temos hoje um contexto de morbilidade e de mortalidade que é totalmente diferente. E, portanto, eu acompanho a ideia de que o catastrofismo e esta coação psicológica sobre as pessoas em nome de algo que efetivamente não está a ter tradução concreta sobre o risco de vida e o risco de doença — que devemos monitorizar dia a dia — não deve ser o discurso, como o Presidente da República procurou sinalizar há umas semanas atrás. Um segundo aspeto é o seguinte: a Ciência não é branca nem preta, o que sabemos hoje é muito menos do que saberemos amanhã e um pouco mais do que sabíamos ontem. E a Ciência em si mesma encerra, no seu interior, um poderoso elemento de contradição que resulta da busca pelo conhecimento permanente. Mas o que nós sabemos ao dia de hoje é que a vacina com duas doses mantém um altíssimo nível de eficácia relativamente à chamada variante “Delta Plus”. Portanto, o que seria necessário do meu ponto de vista seria manter um discurso sereno — menos espetáculo na Ciência e mais recato na Ciência.”
Depois, ACF ainda quis adicionar: “Acresce o risco de nós entrarmos aqui num campeonato de comparações com realidades sociais, demográficas e epidemiológicas totalmente diferentes. A única coisa que me parece que nós temos feito menos bem em Portugal — talvez a mais grave — é que nós temos oscilado entre a contemplação e a reação. Nós passamos de uma fase contemplativa em que nos convencemos — eu diria de uma forma ingénua — de que somos tendencialmente os melhores do mundo para de repente nos apercebemos de que não somos e vamos reagir. E isto gera uma espécie de oscilo-batente psicológico, de uma entrada no carril seguida de uma saída do carril, que beneficiaria muito se tivéssemos em conta que os cientistas são essenciais mas, à semelhança de outros países, deveriam estar reservadamente a aconselhar e a escrever, a pôr por escrito, aquilo que propõem e as razões por que o propõem. A Ciência-espetáculo, tal como a política-espetáculo, não é útil para o interesse público. No princípio, o Infarmed foi muito bom porque deu a ideia de unidade nacional — os órgãos de soberania, as entidades empresariais e os trabalhadores — mas, a partir do momento em que nós entramos num domínio da Ciência e da incerteza da Ciência, nós devíamos ter, como tem a Alemanha e têm outros países, um conjunto restrito de cientistas reputados, independentes, com provas dadas e com currículos específicos na matéria; porque eu fico um pouco preocupado que alguns aconselhamentos venham de pessoas que chegaram ontem à Epidemiologia e que chegaram ontem a estas questões da Saúde Pública. A Ciência tem instrumentos e tem dúvidas, tem que escrever, tem que pôr por escrito aquilo que recomendou à política (e esta age em conformidade). O que vimos no Infarmed foi uma sucessão de power-points e nós não sabemos qual a parte do power-point foi, de facto, a que prevaleceu mais. E, finalmente, a ideia de que é perigoso fazer medidas que não têm grande racionalidade, nem técnica nem científica nem democrática, apenas para dar a ideia de que estamos a fazer algo e de que estamos a reagir. Quer dizer, fazer um cerco em três milhões de habitantes, não é preciso ser epidemiologista nem especialista em Astrofísica para perceber que é, de facto, uma medida de baixíssima utilidade.”
Para concluir deste modo: “É muito perigoso dar a ideia às pessoas de que a vacina não é eficaz. A vacina permite que possa haver, eventualmente, reinfeção mas num quadro clínico absolutamente minor. O que nós queremos é que as pessoas não morram, o que nós queremos é que as pessoas não sejam internadas em situação dramática, o que nós queremos é que as pessoas não tenham sequelas e complicações. A vacina protege muita gente, como os números e a Ciência evidenciam com toda a clareza, e nos casos em que estamos a identificar infeção ela é uma infeção minor, a pessoa infeta-se mas não tem um quadro clínico devastador.” E mais: “Qual é o contributo que nós todos devíamos dar? Um discurso franco e leal para com as pessoas e, rapidamente, junto da Assembleia da República, tomar a iniciativa da produção de uma lei nova que dê um enquadramento legal e legítimo a este tipo de medidas que vão sendo tomadas e que estão algures entre o Estado de Emergência e a Calamidade Pública mas que em muitos casos ficam, de facto, numa zona de limbo e suscitam alguma confusão. A questão da testagem é fundamental e deve ser de livre acesso. Depois, ainda vamos a tempo de voltar a reforçar a Saúde Pública para trabalhar no nível da proximidade, das autarquias, do controlo das cadeias de transmissão. E alterar a matriz de risco porque nós podemos continuar aqui mais uns meses a dizer que não haver internamentos graves em grande número ou mortalidade em grande número ou população cada vez mais vacinada não conta e, portanto, que temos de reagir hoje com o mesmo alarmismo e atitude com a mesma atitude de fecha e abre ou abre e fecha como fizemos no passado recente. Portanto, simplesmente e para concluir: vacinar em massa o mais rapidamente possível, porta aberta sem complicações e constrangimentos burocráticos, naturalmente oferecer a possibilidade do teste de uma forma geral e gratuita nas farmácias, nos centros de saúde e onde for possível, ter uma atitude de olho de perdiz — uma expressão que nós utilizamos no sentido de focar com tiros certeiros e não disparar em aberto para a atmosfera, porque se perdem as balas e não se atinge nada — e finalmente discutir o que ainda não o foi: se os festejos desportivos tiveram ou não influência no que está a acontecer em Lisboa, e isso em abono da confiança de todos no Sistema de Saúde e até na política tem que ser assumido: ou teve ou não teve. Não é um problema deste Governo mas dos Governos todos: há uma certa dificuldade em explicar às pessoas que nós tínhamos planeado uma determinada ação, tínhamos pensado que a execução e a medida era esta e que essa medida não correu bem; e, portanto, passamos a vida a relativizar as coisas que correm mal — não correu nada mal porque... no Reino Unido também está a correr mal; isso não adianta nada, nós erramos todos os dias e, se erramos todos os dias, só temos de fazer prova de que não erramos nem por incompetência nem por negligência, erramos em cima daquilo que é a incerteza dos dados e a incerteza da Ciência. Mas isso dá confiança às pessoas e as pessoas querem trabalhar, as pessoas querem fazer a sua vida e estão dispostas a continuar a cumprir.”
Ora, até pode ser que tudo isto que foi dito não constitua mais do que puro bom senso — o que seria só por si louvável o bastante — mas confesso que não consigo deixar de ler nas palavras de ACF algo mais, fruto de uma observação atenta e de uma experiência consolidada mescladas por exasperações bem percetíveis. Pela minha parte, escolho destacar, muito especialmente, aquele proverbial “menos espetáculo na Ciência e mais recato na Ciência” — é que já não há qualquer pachorra para tantas luzes em cima de especialistas mais ou menos pintados e as mais das vezes meros vendedores de ideias vulgares e expressas ao sabor das oportunidades conjunturais que se lhes vão deparando através de políticos impreparados e de jornalistas ignorantes (ou vice-versa); sendo que alguns ainda acumulam ao acharem-se em condições de fazer política ou, pior um pouco, marketing político... E mais nada, pois então!