segunda-feira, 30 de abril de 2018

BREXIT: ONDE ESTAMOS?

(Ben Jennings, http://www.guardian.co.uk)

(Raquel Marín, http://elpais.com)

(Patrick Blower, http://www.telegraph.co.uk)

Quando já só distam onze meses do prazo definido entre as partes, Theresa May continua a não conseguir livrar-se da carga da pesadíssima cruz negocial, interna e externamente, associada às opções concretas que irão moldar um “Brexit” dado por insuscetível de reversibilidade, tanto mais quanto as probabilidades da sua interrupção já são calculadas em menos de 5%.

No restante, o que mais largamente predomina é a indefinição, desde logo no tocante aos termos da futura relação a ser estabelecida com a União Europeia, estando as alternativas principais divididas entre o radical abandono puro e duro da união aduaneira a que May se encontra de algum modo amarrada pela corrente eurocética do seu partido – “estamos a abandonar a união aduaneira, teremos uma política comercial independente e faremos acordos comerciais em todo o mundo” – ou uma ligação soft mas continuada da Grã-Bretanha à União Europeia por via de um acordo que não interrompa a livre circulação interna dos bens em todo o espaço e a aplicação de uma tarifa externa e de regras técnicas comuns – Bruxelas tem vindo nomeadamente a pressionar com insistência no sentido de obter uma garantia vinculativa de que não venha a resultar o regresso a uma fronteira tensa e difícil entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.

Deste modo, o principal dilema de May e o verdadeiro campo de batalha em curso e a ser definitivamente desenvolvido em Westminster – onde a primeira-ministra parece vulnerável a uma hipótese de derrota parlamentar, com previsíveis consequências desafiantes para a manutenção da sua liderança – é o da escolha a produzir no tocante à complexa questão da fronteira irlandesa.


Entretanto, e visando uma avaliação menos tributária da correlação política de forças em presença, abaixo se juntam dois gráficos objetivos e economicamente elucidativos que foram retirados de um recente ponto de situação efetuado pelo “Financial Times” (“Customs union: the battleground set to decide the fate of Brexit”). E os ditos mostram-se claramente evidenciadores de quanto é ainda amplamente dominante (apesar de em gradual queda) a relação comercial da Grã-Bretanha com a União Europeia por comparação com as outras grandes zonas potencialmente relevantes em termos de preponderância substitutiva (EUA, Commonwealth e China). Ou seja, também aqui a instabilidade parece má conselheira...


TUDO INDICA...

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Um fim de semana futebolístico de sonho coloca as coisas no seu devido colocar, existência de Deus e justiça na Terra incluídas. O título ainda não está ganho, mas tudo indica...



domingo, 29 de abril de 2018

O BOLHÃO



(Finalmente, após anos de avanços e recuos, projetos desencontrados, egos e pruridos, o Bolhão fechou temporariamente para uma renovação esperada, saberemos se apta para recriar novas atmosferas urbanas. Oportunidade para refletir de novo acerca da incessante relação entre fronteira tecnológica e seus sobre a incapacidade de concretização de coisas na Cidade.)

Já não consigo localizar no tempo certo o início das intenções de renovação do Bolhão num espaço decente, cosmopolita, urbano, combinando a ideia sistematicamente reinventada ao longo dos tempos de mercado, das suas vivências e adaptando-a aos tempos urbanos de hoje.

Deixámos passar longo tempo confundindo tipicismo com más condições de funcionamento e alguns abutres imobiliários seguramente que se perfilaram para varrer a ideia de mercado no centro de uma cidade, cavalgando esse pretenso anacronismo para se aproximar de carne do lombo. Como é óbvio, uma intervenção estrutural que vá para além de simples “pinturas” para papalvo ver levantaria sempre o problema da interrupção de atividade, um interregno sempre complicado com o perfil socioeconómico e etários dos comerciantes e vendedores locais. E quanto mais delongas, avanços e recuos mais este problema será difícil de gerir, pois a idade vai avançando, a pressão do comércio alternativo vai fazendo sentir a sua influência e a capacidade residencial no entorno de influência do Bolhão vai diminuindo.

Nunca tive uma conceção saudosista das mudanças urbanas, embora algumas doam mais do que outras. As pequenas livrarias, por exemplo e as suas atmosferas irrepetíveis, a conversa informada com os livreiros, tudo isso me faz falta, mas o tempo urbano é inexorável, tanto mais inexorável quanto aquele que se abate sobre nós. As transformações que se conseguem gerir, com maior ou menor inteligência, nunca tenderão a produzir uma ideia estrita de preservação, aliás preservação sem mudança assusta-me. O tipicismo de algumas personagens venerandas do Bolhão, com o seu vernáculo portuense, perder-se-á inevitavelmente com a nova fórmula, pós renovação, mas involucrar esse tipicismo numa espécie de retoma imune ao desgaste do tempo é coisa de pura ilusão, artificial, que não faz parte da vida das cidades. Mas isso não significa que não seja possível recriar uma atmosfera de mercado no centro da Cidade, em função de novas misturas de funções, cuja inovação e sustentação é sempre um mistério. Desconhecendo qual vai ser o racional do novo mix de funções que se prevê para o Bolhão, não podemos deixar de reconhecer que todo este tempo perdido em torno do projeto de renovação reflete em última instância falta de capacidade de liderança e de envolvimento de um núcleo de população. O novo mix vai aparecer num momento muito particular em que a diversidade e o cosmopolitismo dos visitantes e turistas, cada vez mais espalhados pela Cidade, camuflam a agonia de uma certa função residencial, de classe média. O risco de que o espaço se transforme rapidamente apenas em complexo de restauração é grande, mas não inevitável.

Em simultâneo e praticamente paredes meias com o Bolhão agora em renovação, o som das máquinas no quarteirão da antiga Casa Forte, em Sá da Bandeira, anuncia que o imobiliário está aí de novo, com a força do investimento a regressar. Estou com curiosidade sobre o tipo de vivência residencial que vai ali surgir, pela sua dimensão e volume tenderá a marcar uma zona de grande proximidade ao centro histórico, cívico e comercial da Cidade.

A IMPROVÁVEL CIMEIRA COREANA


(Stephane “Stephff” Peray, http://www.nationmultimedia.com)

Mesmo estando longe de me considerar um especialista em política internacional, vejo-me, ainda assim, como alguém informado e que acompanha de perto os grandes dossiês que vão marcando a atualidade. Pois o que é certo é que não consigo que me entre na cabeça uma razão de ser conjunturalmente substantiva – que não a óbvia e simplesmente imputável a questões do foro histórico e afetivo – para o encontro havido esta semana, sessenta e cinco anos depois, entre os dois líderes coreanos. Mas a reunião aconteceu mesmo e todas as evidências que dela saíram foram enternecedoras e de ordem altamente pacífica e até tendencialmente unificadora. Fica o registo histórico, positivo como não pode deixar de ser, a juntar à perplexidade que me invade...

sábado, 28 de abril de 2018

AGITANDO O ESPANTALHO...


Na sua coluna do “Expresso” hoje publicada, Daniel Bessa vem lembra-nos que o capitalismo é feito de crescimento e crises. Mas, e bem mais relevante, vem avisar-nos de que uma nova crise em Portugal poderá estar ao virar da esquina. E, piscando o olho a Centeno, aproveita também para marcar distância em relação aos partidos de esquerda que apoiam parlamentarmente o Governo ao afirmar perentoriamente que “não há folga nenhuma” ou que “a que houver” se tornará necessária “no dia em que a crise chegar”. A quem sabe nunca esquece ou quê?

A VIDA É TUDO MENOS UMA LINHA RETA!


Devo a um artigo do João Carlos Espada (JCE) o facto de me terem sido recordados os cinquenta anos do Maio de 68, movimentações que aliás começaram em finais de abril. Agradecimento assim feito ao autor, tudo o resto no texto de JCE é deslocado – sintetizo a ideia mestra: “Contra os anseios revolucionários de Maio de 68, a França permaneceu “burguesa”, isto é, livre e democrática. Pôde assim absorver ideias de Maio de 68, que teriam sido esmagadas pelos comunistas.” Pessoalmente, e apesar de ainda a meio da adolescência e vivendo numa periferia europeia salazarista, sinto-me parte da geração que protagonizou nas ruas um protesto quase juvenil e que teve muito mais de espontaneísmo (explicado histórica e sociologicamente por muito boa gente conhecedora da matéria e que, a meu ver, JCE não deveria evitar) do que de controlo por parte de forças perigosamente enfeudadas aos maléficos poderes soviéticos e chineses de então. Os acontecimentos de Maio de 68, que nos chegavam filtrados e com atraso, acabaram por ser, para mim, um ténue despertar de consciência política. Consciência esta que fui afinando com o tempo, estimulado pela ameaça de vir a ser parte da guerra colonial e pelo ambiente estudantil portuense do final dos anos 60 e princípio dos 70. E lá chegou o nosso 25 de abril, estava eu nessa manhã a preparar-me para assistir a uma aula de Economia de Empresa na FEP do sótão dos Leões, aula que seria ministrada por um docente a quem chamávamos de Veiguinha e que já não teve lugar porque, logo ali, alguns colegas mais “politizados” nos vieram explicar com a devida ênfase que tal já não fazia sentido perante o peso da mudança de que estávamos a começar a ser testemunhas vivas.

DESERTOS DEMOGRÁFICOS


Declínio demográfico, desertificação, envelhecimento populacional e por aí fora... tantas são as expressões e os indicadores que, com as suas particularidades em termos de foco, remetem para o mesmo fenómeno de base nas sociedades desenvolvidas dos nossos dias. Não fui verificar com todo o rigor, mas julgo ser verdade que a Espanha é no Continente Europeu um dos casos mais dramáticos da tendência em causa – numa reportagem recente, o “ABC” chama-lhe mesmo “o deserto demográfico da Europa”, explicita alguns dramáticos elementos demonstrativos (80% dos municípios de 14 províncias possuem menos de 1000 habitantes, o meio rural ocupa 84% do território mas concentra apenas 17,6% da população e a Espanha é o país europeu de maior grau de concentração da população em grandes núcleos urbanos) e enuncia doze medidas sugeridas por especialistas para lhe dar combate (ver abaixo). Por cá, o assunto já mereceu manifestações de interesse político em governos precedentes, com o Joaquim Azevedo a protagonizar uma iniciativa voluntarista em torno do fomento da natalidade, e tem sido também tratado por este no quadro de uma unidade missão para a valorização do Interior, com resultados pouco visíveis por razões que a competente e esforçada Helena Freitas já veio explicar publicamente. Agora que a moção de António Costa ao Congresso do PS inclui esta problemática da demografia entre as quatro matérias mais estrategicamente desafiantes para o País (juntamente com as alterações climáticas, a sociedade digital e as desigualdades), talvez possamos ter esperança de que vamos finalmente olhar para ela com olhos de ver – e o secretário-geral do PS até começa bem ao apontar o dedo para o potencial da imigração...

sexta-feira, 27 de abril de 2018

E COMO ESTAMOS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E ROBÓTICA?


(O suplemento do Financial Times FDI Intelligence publica a lista dos 25 destinos preferenciais em matéria de investimento em atividades de inteligência artificial e robótica. Oportunidade para refletir de novo acerca da incessante relação entre fronteira tecnológica e seus seguidores, moderados ou rápidos.)

A tabela publicada pelo FDI Intelligence (Financial Times) (link aqui) constitui uma boa aproximação à dimensão geográfica (cidades e países) da fronteira tecnológica nos domínios da inteligência artificial e da robótica. Os destinos preferenciais de localização do investimento direto estrangeiro nestas áreas tecnológicas constituem uma medida indireta dos “lugares” que comandam a evolução dessa fronteira. Para um conhecedor dos meandros da geografia do progresso tecnológico não há surpresas nos destinos de eleição selecionados. Talvez Aberdeen (Escócia) seja a única surpresa, que indicia a confiança dos escoceses numa provável independência futura. Não seria difícil encontrar uma correlação forte entre estes destinos preferenciais de IDE e o peso das exportações de alta tecnologia nas exportações totais dos países que acolhem as cidades identificadas. Não seria também difícil encontrar correlações com a dotação de talentos nas áreas das ciências, matemáticas e tecnologias de informação e com os níveis de emprego altamente qualificado nessas áreas. A Ásia surge em peso, como seria de esperar face ao que sabemos.

Alguém mais distraído e seduzido pelo choque digital em Portugal imaginaria bondosa e ingenuamente que Lisboa estivesse neste grupo, Não está e dificilmente poderia estar. Portugal limita-se a ser um seguidor moderado das vias de progresso tecnológico e inovação, poderia ser um seguidor mais rápido, mas os obstáculos e limitações do investimento público e privado impedem essa passagem a um estatuto superior de “follower”. Saibamos nós ser um “follower” rigoroso e capaz, ou seja um país que consegue traçar e sustentar uma trajetória tecnológica por via da difusão e absorção de progresso tecnológico vindo da fronteira através das importações de tecnologia. Outros o fizeram, como outros países como a Coreia do Sul e a Dinamarca, só para falar em exemplos muito diferenciados o fizeram. O domínio da fronteira continuará a pertencer aos países de fronteira, com oscilações de comando e estando preparados para conviver com fronteiras cada vez mais a oriente.

Pés na terra, convicções persistentes e arte suficiente para desenhar uma trajetória tecnológica autónoma a partir do acesso a inovações que outros produzem e lideram é o que precisamos. Não é sedução suficiente? Uma trajetória tecnológica coerente não se constrói com fogachos.

ORGANIZAR TERRITORIALMENTE O ESTADO



Já que estou em maré de repetidos, aqui vai mais um. Importo-o de França e devo-o às minhas frequentes leituras – até para matar saudades... – do “Le Monde”. A história conta-se em poucas linhas: quinze presidentes regionais, de esquerda e de direita, assinam uma carta aberta ao Presidente da República em que desenvolvem, entre outros, temas tão judiciosos como os decorrentes da total contradição entre um discurso aberto às liberdades locais e à diferenciação dos territórios e o comportamento centralizador do governo (“política recentralizadora”), concluindo alto e bom som pela necessidade imperiosa de o Presidente, em vez de deixar o Estado decidir sozinho, se apoiar nos territórios para transformar a França. Pois é, ao ler isto alguma luz se acendeu na minha cabeça e não terá sido apenas porque a OCDE também anda por aí a pregar em torno das place-based policies...

O FIM DE CIFUENTES PRENUNCIA O FIM DE MARIANO?


(Agustin Sciammarella, http://elpais.com)

O assunto é de tal modo extravagante que talvez se me ressalve o facto da sua repetição neste espaço. Com efeito, tem contornos perfeitamente inexplicáveis e absolutamente humilhantes a demissão da presidente da Comunidade de Madrid, Cristina Cifuentes. Mas, e para lá do drama pessoal que seguramente encerra, a referida demissão poderá ter marcado simbolicamente o “canto do cisne” para um Partido Popular “desprestigiado e à deriva” (citando o “El País”) e “atolado em desânimo” (segundo o “La Vanguardia”). Tanto mais quanto a liderança (?) de Rajoy já não dá lugar a qualquer tipo de ilusão para a maioria dos espanhóis – o seu imobilismo e falta de visão, tão claramente patentes em dossiês verdadeiramente determinantes (como o da situação na Catalunha), surgem bem retratados pelo cartunista Peridis, quer em termos daquela postura relaxada e preguiçosa quer no tocante às palavras que lhe atribui (“outro problema que se resolve por si só”). Vamos ter, com grande probabilidade, mudanças significativas aqui no nosso vizinho do lado...

(José Maria Pérez González – “Peridis”, http://elpais.com)

quinta-feira, 26 de abril de 2018

DESCENTRALIZAÇÃO E ORGANIZAÇÃO TERRITORIAL DO ESTADO



(Estas reflexões foram-me sugeridas por alguns minutos de conversa com o António Melo, numa manhã de feriado, numa esplanada de café de zona residencial, perto de minha casa. Fala-se de descentralização, dos medos da regionalização e da organização territorial do Estado e da falta de vontade política para dar um novo rumo a estas coisas, apesar de todos os truques comunicacionais.)

Já não via o António Melo há muito tempo. A conversa foi curta mas interessante. Afinal ele é convictamente um pesquisador nato da matéria da organização territorial do Estado e da sua evolução ao longo do tempo. Recordo ainda o seu excelente trabalho de pesquisa sobre a emergência das hoje designadas de Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, realizado no âmbito de um aniversário de criação da CCDRN, que penso não ter sido nunca publicado pela própria instituição, o que é uma pena acaso seja correta esta minha impressão.

Tenho sido nos últimos anos muito contundente sobre o modo como a descentralização, a regionalização e a reforma da organização territorial do Estado têm sido tratadas a nível político. Sou simultaneamente crítico do cada vez maior peso do centralismo político e da ânsia regionalista pacóvia e serôdia que grassa cá por cima, esta última praticamente limitada à barganha dos fundos (com arrebatadas e grandieloquentes tomadas de decisão que não resistem à mínima necessidade de concertação.

Do cada vez maior peso do centralismo político tenho falado vezes amiúde. Apesar do abalo que foi a completa destruição das ilusões da PT como empresa global e do BES-GES, baluartes económicos do centralismo lisboeta e, da exaustão do modelo de crescimento dos não transacionáveis, que dava pelo menos ao centralismo algum racional económico, o centralismo persiste. A dupla Pedro Marques (ministro do Planeamento e Infraestruturas) e Nelson de Souza (secretário de Estado do Desenvolvimento e Coesão com z e não com s) é das duplas com um maior pendor de centralização dos últimos anos), o que não deixa de ser um indicador. Mas a marca maior do centralismo é a cada vez maior dificuldade de coordenação entre ministérios, reveladora de uma lógica de centralização, de pendor setorial-vertical, que é uma forma de resistência centralista, eficaz, muito eficaz. E nem os Fundos Estruturais têm ajudado em sentido contrário. Por exemplo, a forma despudorada como os ministérios setoriais tendem a canibalizar os Programas Operacionais Regionais NUTS II, ocupando espaço na atribuição de fundos e compensando os seus parcos orçamentos setoriais para o exercício das respetivas políticas públicas é de bradar aos céus.

Da atomização regional tenho falado, menos frequentemente. Sou por vezes implicitamente acusado de fazer o jogo do centralismo, criticando a falta de consistência regional, mas militar em campanhas regionalistas exclusivamente limitadas à barganha dos fundos não é coisa que me atraia. Estou numa fase em que prezo muito a escolha das companhias e, por isso, alimentar com conhecimento sério guerras de alecrim e manjerona é coisa que não faz parte das minhas prioridades atuais. Não vejo de facto nenhum esforço sério de construção de uma identidade regional que tem de ser alcançada pela lógica da praxis e nunca pelo capital identitário inicial, que não existe, sejamos claros e rigorosos. O Norte é um ponto cardial e nada mais do ponto de vista territorial. Há vários Nortes e protagonistas para todos. Com tanto Norte, temos des(N)orte.

Estas duas realidades tendem a potenciar-se mutuamente. A atomização da identidade regional gera desconfiança no poder central. No fundo, cá por cima, vistos lá de baixo, somos todos uns índios, com hábitos esquisitos e cuja movimentação precisa de tradução junto do poder. Cada governo tem os seus tradutores de serviço e de confiança, que ganham por isso poder. Dispenso-me de os referir. Por sua vez, o alheamento e autismo centrais conduzem à concentração das energias regionais na barganha dos fundos. Levam ainda à perda de tomada de posição sobre as questões nacionais vistas na perspetiva da Região, ou seja acantonamento, coisa que rejeito em absoluto. Poderíamos pensar que esta inércia tenderia a reforçar o modelo “centralismo forte – municípios com capacidade de barganha superior à despesa pública que mobiliza e regiões de planeamento débeis”, sobre o qual tenho abundantemente escrito. O problema é que o estádio de desenvolvimento do país exige racionais de geração de investimento público e de políticas públicas que já não podem ser municipais, sob pena de grave destruição de recursos. Por isso estamos num impasse.

O governo PS de António Costa emergiu com um propósito de avançar definitivamente com o aprofundamento da descentralização. Pela minha parte, acho que a experiência autárquica de António Costa (não é indiferente ter sido em Lisboa e não noutro município ou cidade do país) contribuiu para a sua aparente convicção. Mas a conceção de organização territorial do Estado subjacente a esse pretenso entusiasmo descentralizador não é para mim totalmente legível. Compreendo que o momento político e estrutural do país não é propício a criar mais uma frente política de alguma querela político-institucional como aquela que a regionalização necessariamente abriria. Mas daí a aceitar por exemplo a ideia constitucionalmente controversa das eleições diretas para as presidências das áreas metropolitanas e, pior do que essa, a atribuição de legitimidade política às CCDR com as eleições dos Presidentes através de um colégio eleitoral de autarcas vai um grande passo.

A divulgação do recente acordo político com o PSD não aqueceu nem arrefeceu a minha interrogação sobre o assunto. Dessa divulgação nada de muito relevante transpareceu. Foi, por isso, com curiosidade, que li o artigo de Luís Ramos (link aqui) sobre estes temas, provocatoriamente designado de “descentralização sem regionalização?”. Luís Ramos, deputado e Professor na UTAD e representante influente no Conselho da Europa, é no PSD ativo de hoje talvez a personalidade com mais pensamento sobre a matéria, já que o Professor Valente de Oliveira tem mantido desde a segunda candidatura de Rui Moreira um grande distanciamento face ao partido. Curiosamente, LR cita-me a propósito de um estudo da Associação Comercial do Porto, já que a frase “não existe qualquer documento que sustente uma estratégia mais ampla de descentralização, nem é sequer claro que exista tal estratégia” foi escrita pelo JE. Com estas citações, corro o risco de que o atual Governo não morra de amores pela minha prosa.

Mas não é para esse efeito que o texto de LR me interessa. O texto seria relevante para clarificar se o acordo PS-PSD reflete de facto alguma negociação. Ora, pressupondo que LR está perto ou pelo menos sintonizado com a direção política atual do PSD (ou não estará?), a interrogação que o texto coloca ao referir que a “descentralização socialista parece confundir-se com um mero processo de ‘municipalização’ sugere que o impasse continua, mesmo após e apesar do acordo.

Sou dos que penso que um processo consequente em termos de coerência de atribuições e de transferência de recursos para os municípios pode constituir uma vantagem e gerar algum valor acrescentado num Estado tão centralizado. Há inúmeros domínios de política pública de proximidade aos cidadãos, por exemplo na área social e cultural, que podem perfeitamente ser “entregues” por via municipal, contribuindo por essa via para um novo estádio de capacitação de municípios. Mas essa conclusão não pode deixar de ser ponderada pela forte heterogeneidade dos municípios em Portugal, em termos de capacidade de “delivery” de políticas públicas. E, em estreita consonância com esta heterogeneidade, não podemos esquecer que o estádio de mudança estrutural do país exige uma nova lógica de formação de investimento público que não seja apenas central e municipal. Existe, temos de o reconhecer, o que tem sido difícil, um gap de organização territorial intermédia do Estado, que faça emergir novas lógicas e racionais de alocação de recursos. Sem regionalização, é difícil às CCDR cumprirem o duplo estatuto de agentes de concertação intermunicipal no quadro de uma NUTS II e de garante da coerência do Estado nas regiões. O primeiro por falta de legitimidade de representação e o segundo por manifesta falta de poder para vincular ministérios e serviços desconcentrados a uma lógica consistente de territorialização de políticas públicas. Estamos por isso perante um impasse.

Os impasses institucionais ultrapassam-se seja por via disruptiva ou por via incremental de inovação institucional. Posso dar por adquirido que não há energia e recursos políticos para uma via disruptiva. Posso estar enganado e estou aberto a que me apresentem argumentação alternativa. Provisoriamente, a pergunta que deve colocar-se é a de saber se a via incremental é possível. Face aos dois estatutos que as CCDR não conseguem responder simultaneamente, podemos perguntar qual deles tem margem de progresso, avaliada a partir das dinâmicas recentes?

No que respeita ao segundo estatuto, o de garante da coerência do Estado nas regiões não vislumbro nada de recente que me demonstre que há dinâmicas institucionais emergentes que me provem o contrário. O meu colega de blogue tem provavelmente uma visão diferente construída a partir de uma experiência de “mãos na matéria”, mais fundamentada que a minha mais distante da praxis. Mas o que eu vejo é o contrário, é por exemplo a canibalização nem sempre coerente dos programas regionais pelos ministérios setoriais, o que é a antítese de uma coerência?

E quanto ao primeiro estatuto? Aí, não propriamente nas CCDR, mas antes ao nível do relacionamento dos municípios com as instituições intermédias das CIM, vejo mudanças. Embora em termos difusos e diferenciados por regiões do país, em vinte anos mudou a perceção dos municípios quanto ao significado da cooperação intermunicipal. Não estou a ignorar que a praxis de algumas CIM corresponda em muitos casos a casamentos de conveniência, para no plano formal do intermunicipal melhor defender o investimento municipal. Mas estou em crer que, do ponto de vista da aprendizagem organizacional e salvaguardando as mudanças de ciclo de lideranças municipais, existe hoje uma perceção mais aberta da gestão de responsabilidades (e de serviços) partilhadas entre municípios e espaços de representação intermunicipal. Pode ser algo de embrionário e não sustentado, que exija uma política de seletividade e continuidade e sobretudo coerência de instrumentos de política pública a territorializar com as CIM. Mas aqui há alguma mudança. No outro estatuto, o da coerência do Estado nas regiões, não existe essa mudança. Logo, um potencial de intervenção, haja vontade política para tal e para proceder aos ajustamentos constitucionais necessários.

Toda esta reflexão pressupõe que se abandone definitivamente o limbo de saber se a regionalização é ou não para cumprir. Em meu entender, qualquer decisão, ou seja manter ou não o compromisso constitucional é clarificadora. O limbo em que estamos é que não o é. Sem essa clarificação, não haverá opção entre a via disruptiva e as vias incrementais possíveis. Quem é que perde? Seguramente, a racionalidade e a territorialização do investimento público e das políticas públicas em geral.

A bem do debate.