(A mais que provável prisão de Lula representa uma rara
oportunidade para que, de uma vez por todas, a esquerda abandone a tese da sua pretensa
superioridade moral nos tempos de hoje. A carne é fraca e há quem seja
exímio em conceber camas mais do que duvidosas para outros se deitarem.)
Não sou
dissimulado a ponto de esconder que a mais que provável prisão de Lula me
entristece, sobretudo do ponto de vista de um certo Brasil que chegou,
timidamente, a emergir. Mas parto para esta deceção com a convicção de que nos tempos
que correm já não faz sentido esgrimir a tese de que a esquerda tem alguma superioridade
moral do ponto de vista dos caminhos de condução da coisa pública.
O Brasil é para
mim um estranho paradoxo. Tanto estudei aquele país no âmbito da economia do
desenvolvimento, tanto apreciei verdadeiros mestres da economia e da ciência
política para a compreensão da periferia e do subdesenvolvimento como Celso
Furtado (Saravá Rosa d’Aguiar Furtado!), Fernando Henriques Cardoso, Maria da
Conceição Tavares e tantos outros e as incongruências e desencontros da vida nunca
me levaram ao Brasil, apesar de lá ter alguma família, não muito próxima. Mas é
também o paradoxo de um país eternamente preso na armadilha das potencialidades
e nas condições de corrução que uma desigualdade de distribuição de rendimento de
manual sempre alimentou e reproduziu ao longo dos tempos. Nos últimos tempos, o
Brasil tornou-se demasiado violento e imune para meu gosto, embora a leitura
do Deus-Dará de Alexandra Lucas Coelho me
tenha impressionado tanto que antevi em sonhos poder ainda um dia, nem que seja
de bengala, visitar o país.
A passagem
de Lula pela governação trouxe esperanças de exploração de novas vias para um
crescimento mais redistributivo, sobretudo a partir da convicção de que um sindicalista
dos sete costados nunca trairia a história, os seus e os ideários do distributivismo,
combatendo ferozmente a violência opressora da ganância. A uma outra escala,
maior, por isso com mais tentações, Lula era para nós uma espécie de Jerónimo
de Sousa e da sua coerência, mesmo que possamos estar em muitas matérias frontalmente
em oposição.
Estou certo
que uma grande parte do business
brasileiro não tinha estaleca suficiente, devido a longos períodos de história em
que a corrupção compensa, para compreender que Lula e a chegada do PT poderiam
representar a melhor forma de combater a explosão inevitável que um dia sucederá,
acaso o fenómeno das para-polícias, das forças paramilitares e outras formas do
crime organizado não cheguem um dia a dominar a sociedade brasileira. Sempre
pensei que esse mundo brasileiro dos negócios carenciado de modernidade e poder
de encaixe para evitar a explosão, com forte representação no sistema político
e na comunicação social estava a minar o sistema político segundo um modelo que
poderia caracterizar como “os pais da corrupção ao poder pois os filhos já lá
estão!”, para glosar transformando um dos mais deliciosos slogans da nossa revolução de abril.
Estas forças
tinham uma de duas vias para afastar a miragem libertadora do “lulismo”: enfiar-lhe
um tiro na cabeça, coisa bem provável nestes dias que correm no Brasil, ou submetê-lo
ao que designarei de armadilha do sistema. O que é que eu entendo pela
armadilha do sistema. O estado das coisas alimentado pela corrupção e pela desigualdade
social entranhada nos hábitos e comportamentos cria um ambiente de sedução em
que a tentação de o partilhar é grande. O modelo económico brasileiro sempre
dispôs de poderosas alavancas públicas para que a corrupção chegasse naturalmente
ao cálculo económico. Foram-me chegando notícias de que o PT impunha uma espécie
de imposto à cabeça em qualquer negócio de investimento, chegaram-me a falar em
7%, desconhecendo os rumos de aplicação do referido imposto informal. E numa
espécie de matriosca de atos ilícitos, dizia-me há dias um investidor muito seguro
com negócios no Brasil de que é necessário muita cautela em não divulgar
publicamente, mesmo em conversa informal de café, nenhuma eventual necessidade
de resolução de algum problema que envolva decisão política. O mais provável é
que, ao menor descuido, nos apareça alguém a exigir o pagamento por uma ação
contributiva que nunca seremos capazes de avaliar se aconteceu ou não.
Lula não terá
resistido à armadilha. E com a corrupção instalada no sistema político, que
garante a imunidade aos mais corruptos, a começar pelo atual Presidente Temer
(uma personagem de temer), até colocar o ratinho na ratoeira foi um ápice, passando
pela limpeza de Dilma e abrindo caminho ao afastamento do mais forte candidato à
Presidência. E assim temos os mais corruptos a fazer a cama aos também presumidamente
corruptos apanhados na armadilha da tentação, com a diferença de que os
primeiros estão a salvo e já politizaram a justiça e os segundos ficam
limitados a um ressurgimento popular cuja forma política não faço a mínima
ideia se é ou não possível.
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