domingo, 28 de fevereiro de 2021

AINDA O PRR

 

(Como é conhecido, o PRR está em discussão pública depois do chamado Documento Costa Silva ter sido transformado em instrumento de programação de investimento e reformas e ter sido finalmente publicado o Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho do Mecanismo Europeu de Recuperação e Resiliência. Como vou intervir amanhã no seminário promovido pelo Governo sobre a Componente 6 “Qualificações e Competências” (14.00-16.00), é tempo de trazer para o espaço do blogue algumas reflexões sobre a matéria.

O arranque do período de programação 2021-2027 ficará seguramente na história do planeamento e da programação dos FEEI (Fundos Europeus Estruturais e de Investimento) em Portugal: (i) iniciando-se ainda em plena pandemia e com o séquito de efeitos de devastação sanitária, económica e social que a acompanha, embora hoje com uma significativa melhoria da situação sanitária que nos colocou em pouco tempo do pior ao melhor em termos de terceira onda; (ii) suscitando a necessidade de articulação e coordenação entre o PRR e a aplicação do quadro financeiro multianual mais conhecido pela programação dos Fundos Estruturais.

Teremos assim, pelo menos, na melhor das hipóteses, três anos de implementação inicial de Fundos com uma profunda exigência de recuperação económica. Sabemos da experiência de períodos de programação anteriores que não é nada fácil assegurar execução de Fundos em condições de crise económica ou de início de recuperação da mesma. Mas o desafio maior consiste no facto da recuperação da economia portuguesa não ser similar à de outras economias europeias mais maduras. Nestas últimas, trata-se de repor o ritmo da atividade económica já sem grandes necessidades de mudança estrutural, a não ser o da liderança ou adaptação à evolução da fronteira tecnológica no mundo e na própria União (como acontece tipicamente em economias como a Alemanha, a Suécia, a França ou os Países Baixos. Ora, em Portugal, essa recuperação terá de acontecer em simultâneo com a consolidação da mudança estrutural da economia portuguesa e do seu modelo de especialização, erradicando de vez a nossa trágica e exaurida incursão pelo mundo dos não transacionáveis e do betão. Esta combinação de regeneração económica com mudança estrutural do perfil de especialização está longe, muito longe, de ter concretização fácil. A razão é bem simples: mudança estrutural significa desaparecimento ou adaptação do “velho” e consolidação da emergência do “novo”. Em contexto de pós-crise a facilidade com que se assiste ao desaparecimento do velho não adaptável tem que se lhe diga.

Em teoria, o PRR (recuperação e resiliência) deveria constituir o grande elo de articulação entre as duas dimensões, facilitando a vida à programação dos FEEI que poderia, assim, focar-se mais decisivamente na mudança estrutural, favorecendo a consolidação da emergência do novo. Mas, ao contrário do que o debate público tem vindo a esclarecer, o mecanismo de recuperação e resiliência à luz do qual o PRR nasce, condiciona a alocação dos fundos não reembolsáveis a um conjunto de regras e princípios que não podem ser ignorados.

Em primeiro lugar, os PRR devem enquadrar-se nos chamados pilares europeus:

  • Transição ecológica (Green Deal);
  • Transição digital;
  • Crescimento inteligente, sustentável e inclusivo (coesão económica, emprego, produtividade, competitividade, investigação e desenvolvimento tecnológico e inovação, mercado interno e PME fortes);
  • Coesão social e territorial;
  • Saúde;
  • Resiliência social, económica e institucional.

Em segundo lugar, o Regulamento Europeu do Parlamento Europeu e do Conselho agora aprovado, para além de produzir referentes acerca do modo como os PRR nacionais devem enquadrar-se nos pilares europeus atrás assinalados, fixa limiares mínimos de alocação de recursos de investimento que os referidos PRR deverão assegurar. É o caso da transição ecológico-climática: “montante equivalente a, pelo menos, 37 % da dotação total do plano de recuperação e resiliência com base na metodologia de acompanhamento da ação climática estabelecida num anexo do presente regulamento”. Para além disso, todos os investimentos deverão respeitar o princípio de «não prejudicar significativamente» (ambientalmente, claro está). A transição digital estabelece, por sua vez, o limiar mínimo de 20% para o contributo dos PRR em termos de investimento. É só fazer contas relativamente ao total esperado de 14.000 milhões de euros de subvenções não reembolsáveis, que confronta com a programação esperada de 24.000 para os FEEI.

Em terceiro lugar, uma dimensão que passou fortemente despercebida no debate público que tem sido travado mais como arma de arremesso político do que um verdadeiro debate de ideias, a questão das empresas e do PRR suscitou um grande alarido. Aqui d’el Rey que estas estariam a passar ao lado das ajudas do PRR. Ora, ninguém se lembrou de antecipar o inevitável nestas coisas. Leia-se a parte final do ponto 8 do preâmbulo do Regulamento Europeu: “O referido mecanismo deverá ser abrangente e beneficiar da experiência adquirida pela Comissão e pelos Estados-Membros com a utilização dos outros instrumentos e programas. O investimento privado poderá também ser incentivado através de modelos de investimento público, nomeadamente instrumentos financeiros, subsídios e outros instrumentos, desde que as regras em matéria de auxílios estatais sejam cumpridas”.

A componente de subvenções globais não reembolsáveis monta a 13.944 milhões de €, correspondendo 61,3% às ações de resiliência, 20,7% diretamente á transição climático-ecológica e 18% à transição digital. Os 20,7% de alocação de recursos aparentemente não cumprindo a regra do limiar mínimo dos 37% atrás referidos respeitam apenas às ações diretamente classificáveis como de transição ecológica, devendo a metodologia de acompanhamento da ação climática demonstrar que as ações indiretas preenchem o critério dos 37%.


Não estou em desacordo com a prioridade atribuída pelo Governo às ações de resiliência, seja em matéria de reformas, seja em termos de investimentos. Essa prioridade está, em meu entender em linha, com o papel que atribuo ao PRR na combinação recuperação-mudança estrutural, podendo, se bem implementada, proporcionar melhores condições aos FEEI no seu contributo para esta última, aliviando a pressão para funcionarem também como instrumento de recuperação conjuntural.


É neste contexto de interpretação do PRR que estou a preparar a minha intervenção na discussão pública de amanhã sobre a componente 6 “Qualificações e Competências”. Gostaria que esta componente tivesse sido apresentada segmentada pelas questões da resiliência, da transição climático-ecológica e da transição digital, já que em todas essas frentes se colocam necessidades e desafios de formação de novas qualificações e competências.

Mas isso é matéria do post de amanhã.

Outra matéria ainda, que fica também para outro post, é o da governação do PRR e a sua coordenação com a programação dos FEEI. Aí estou mais cético e julgo ter boas razões para isso. Já agora, quanto ao alarido que por aí grassa sobre a dimensão do dinheirinho e da sua aplicação, estou fato da hipocrisia das agendas mediáticas em Portugal. À mínima dificuldade de aplicação de Fundos a comunicação social vocifera, os deputados sensíveis incomodam-se, telefonam e questionam o Governo e não há Autoridade de Gestão que resista a um baixo nível de execução, pois terá sempre um Ministro também sensível à perna, isto se não for o próprio Primeiro. Convém lembrar que a dimensão estratégica da programação nem sempre se coaduna com uma execução fluida e não preciso de explicar porquê. Mas a indigência do comentário vem sobretudo da falta de informação fruto da preguiça e da inércia do comentador, um síndrome que fica para próximos posts. Ainda na última Circulatura do Quadrado, alguém culto e informado como o José Pacheco Pereira não encontrou melhor exemplo do que invocar as célebres cabeleireiras do FSE de 1986 a 1989, período que marcou negativamente a perceção dos Portugueses nesta matéria. É verdade. O síndrome da indigência e inércia do comentário em Portugal atinge os melhores. Quem sai aos seus …

PLANEAR NÃO OFENDE(RIA)



Termina amanhã a consulta pública do nosso PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) e, quer para aqueles que quiserem perceber como estas coisas (não) funcionam em Portugal quer para os crentes inveterados nos benefícios da consciência limpa e da participação cidadã, talvez não seja má ideia de todo a de dispensar uns minutos a folhear o documento e, em cima dele, a ponderar sobre o que o Governo está a propor à sociedade portuguesa.

Enquanto os “suspeitos do costume” vão enchendo as páginas dos jornais com os seus maravilhosos projetos, o “Expresso” deste fim de semana trazia sobre o dito PRR dois artigos interessantes, tanto pela sua diferença (entre um analista de formação económica e uma colunista assumidamente não especializada na matéria) como pela sua semelhança (bem manifestada no ceticismo com que ambos encaram a vinda de um “dinheirinho” que veem destinado a servir mais como alimentador ou compensador de despesa do que como promotor de investimento e transformação). No decorrer da semana, vários foram também os articulistas que se pronunciaram publicamente sobre a matéria, entre um incompetente espanto perante “tanto dinheiro” e uma despreocupada preocupação sobre quem acederá ao mesmo (ou, até, apenas a míseros quinhões) e o que fará com ele; com o “Expresso da Meia-Noite” a dedicar-lhe o seu tema central (na presença de uma ministra da Coesão Territorial que ficamos sem perceber o que o tem a ver ao certo com um domínio que está entregue ao seu colega do Planeamento, acompanhada pelo crítico porta-voz do PSD Miranda Sarmento, pelo omnipresente mas arguto António Nogueira Leite e por um inconsequente associativista empresarial); mas acabou por ser João Miguel Tavares (no “Público”) quem melhor veio deixar mais um alerta, feito de um genuíno interesse intelectual, quanto a viciações em fundos, a perpetuações de modelos inviáveis e a anestesias políticas úteis no horizonte.

 

E basta por hoje, até porque eu tenho de ir fazer a minha parte de cidadão exemplar. Depois, com mais tempo, cá voltarei ao assunto.



sábado, 27 de fevereiro de 2021

DISCUTINDO OS MODELOS ECONÓMICOS PARA A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA NO CCB (III)

 


(Foi num CCB “digitalizado” que decorreu a Conferência Europeia sobre novos modelos económicos para a emergência climática, um ambiente estranho quando comparado com outras conferências no passado e muito mais com saudades das primeiras edições dos Dias da Música naquele belo espaço. Mas, apesar dessa estranheza, soube bem sair da toca e conversar com algumas pessoas.

O CCB foi transformado numa espécie de um conjunto de estúdios de suporte a uma conferência europeia em ambiente digital, inserida no programa da Presidência portuguesa. Os poucos participantes presenciais partilhavam esse espaço, enquanto que inúmeros participantes por essa Europa e mundo fora, por exemplo o escritor e biólogo Mia Couto a partir de Moçambique, animavam longinquamente o ambiente do webinar. Foi um contexto diferente, numa zona de Belém vazia, nem sequer com filas à porta dos pastéis de Belém e com o imponente espaço em frente aos Jerónimos, suspenso no tempo e indiferente à patética reconstrução com ajustes da História que grassa por aí e com o deputado Ascenso Simões a passar-se dos carretos.

O painel para o qual fui convidado foi o único a desenrolar-se com a presença física de todos os convidados, infelizmente com a Professora Mariana Mazzucato a proferir a sua conferência a partir de Londres, logo sem a oportunidade de a conhecer pessoalmente, nem que não fosse para trocar um simples Hello.

A conferência da Mariana Mazzucato não se afastou muito da sua última “talk” para a London School of Economics a que fiz referência num dos últimos posts e que aliás me serviu de referencial e inspiração para preparar o meu comentário de 10 minutos numa organização de sessão que respeitou tempos e nos colocou perante o desafio de interpretar a abordagem de Mazzucato numa perspetiva simultaneamente europeia e portuguesa. Foram meus colegas de sessão o Ministro do Ambiente e da Ação Climática que apresentou e moderou, a advogada Carmo Afonso e o Dr. Ricardo Mourinho Félix agora no Banco Europeu de Investimentos (Vice-Presidente).

Embora o governo de António Costa se orgulhe do seu pioneirismo no modelo como assumiu o compromisso da neutralidade carbónica para 2050, e com toda a razão na minha perspetiva, a sociedade portuguesa está ainda muito longe de ter interiorizado a urgência da mudança climática. Ainda esta semana que está a terminar, a SIC Notícias organizou um debate sobre o que me parece cheirar a esturro negócio de vendas da concessão de barragens pela EDP a uma empresa francesa, com um planeamento fiscal que também me suscita bastantes dúvidas, moderado pelo para mim execrável José Gomes Ferreira e com a participação de Mariana Mortágua, Óscar Afonso da FEP, mas em representação do movimento Terras de Miranda e um Professor Catedrático do Técnico cujo nome se me varreu da memória. Sem embargo do aspeto menos claro de tal venda em termos de uma possível evasão fiscal, espantou-me que o debate se tenha travado sem que ninguém descesse à terra e que compreendesse que Portugal está em trajetória para a neutralidade carbónica. O que demonstra o meu ponto de que a emergência climática não foi ainda interiorizada pela sociedade portuguesa. Curiosamente, esta semana Bill Gates volta à carga comparando a emergência climática aos desafios da crise pandémica.

A abordagem de Mariana Mazzucato, hoje bastante divulgada no universo de ideias e de pensamento que gira em torno da Comissão Europeia, pode ser considerada como uma proposta fundamentada para um “BIG Push” de inovação tecnológica, económica e institucional capaz de transformar a emergência climática em desafio de transformação do modelo de crescimento económico europeu. Esse desafio tem a envergadura similar ao que o advento do chamado Estado (Modelo) Social Europeu representou para a formação da Europa e assume-se, assim, em meu entender, como a procura de um novo modo fundador. A abordagem da emergência climática pelo prisma da inovação em larga escala (a Mission Economy) é uma alternativa, entre outras, às teses do decrescimento e do crescimento zero que a pandemia e os confinamentos associados vieram reforçar como via de conseguir a visada redução das emissões de gases com efeito de estufa. Este é um debate central que tem de continuar a ser prosseguido ao serviço da procura de novos modelos de crescimento e de modelos de negócio menos predatórios dos recursos naturais, com vistas mais largas e menos vidrados pelo lucro de curto prazo, com maior capacidade de absorção de jovens qualificados devidamente remunerados e mais capazes de contribuir para uma redução das desigualdades nas sociedades contemporâneas.

Na abordagem de Mazzucato agrada-me sobretudo a sua reiterada insistência na valorização do setor público, combatendo o que ela chama de “infantilização” do setor público, essencialmente trazida pela onda descontrolada do outsourcing, pela descapitalização das equipas da administração pública em termos de inteligência, de aprendizagem organizacional e de fortalecimento de capabilities dinâmicas e pela captura de que foi alvo pelo desvirtuamento da cooperação público-privado.

Nos dez minutos que me foram proporcionados (a conferência pode ser totalmente visualizada neste link) insisti sobretudo nessa questão das capabilities públicas para coordenar o impulso que o domínio da economia circular, transição energética e descarbonização pode assumir na especialização produtiva portuguesa como opção abrangente da resposta em Portugal à emergência climática. A Agência Nacional de Inovação, por exemplo, não pode deixar de ser capacitada para fazer face a esse desafio de coordenação e clareza de opções a privilegiar, até porque o conjunto da economia circular, da transição energética e da descarbonização está fortemente articulado com outros domínios de aposta da especialização inteligente em Portugal, como o são por exemplo as tecnologias digitais e a economia 4.0, os materiais e as tecnologias de produção avançadas e as tecnologias espaciais e de observação da terra.

A distinção operada por Mazzucato entre bens públicos (a emergência climática vista como um bem público que produz externalidades negativas) e valor público exige um grande debate e uma enorme abertura dos economistas para as consequências revolucionárias de abordagem que podem daí resultar. Do Entrepreneurial State (2013) à Mission Economy (2021), passando pelo Rethinking Capitalism (2016), o pensamento de Mazzucato maturou e de que maneira, tirando partido da sua colaboração com Carlota Perez, que prolongou a memória e o legado incontornável do Grande Christopher Freeman, com quem Francisco Louçã também trabalhou.