Descobri-o nos anos 80 e devorei os seus quatro livros
por então publicados – “Cortes”, “Lusitânia”, “Cavaleiro Andante” e “O
Conquistador”. Perdera-lhe entretanto o rasto, ao que parece muito por força
das suas ausências editoriais. Numa das minhas recentes incursões pelas
livrarias, saltou-me à vista a familiaridade do seu nome na capa de uma obra de
viagens da excelente coleção dirigida por Carlos Vaz Marques na “Tinta da
China”: Almeida Faria.
Não era, efetivamente, o novo romance que à primeira
vista desejei fosse. Mas “O Murmúrio do Mundo – a Índia Revisitada” acabou por
ser um reencontro feliz. Trata-se de uma espécie de diário de uma viagem à
Índia (sobretudo Goa e Cochim) organizada pelo Centro Nacional de Cultura em
2006. E, como referiu Gustavo Rubim na Ípsilon, “não se fica com inveja do
viajante, fica-se-lhe grato pela generosa magia de converter vários dias de
viagem em menos de cento e cinquenta páginas de puro prazer para a imaginação e
a inteligência”.
De entre o muito que este ensaio contém, destaco
memórias da expansão portuguesa e restos do império, manifestações de conquista
e indícios de fratura, bocados da Índia colonizada e sinais da sua emergência.
Mas, sobretudo, a espessura de um intelectual e a riqueza do ensaísta assim
afirmado. Como ele próprio explica: “À medida que avançava tacteando, ia
descobrindo o efeito de surpresa causado pelo confronto ou o encontro do meu texto
com o texto de outros autores, antigos e modernos, portugueses e estrangeiros”.
Breves passagens, quase ocasionais:
·
“Uma pessoa distraída ou que tivesse dormido mal e não
soubesse onde estava, diante da igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição,
muito branca no cimo da alta e branca escadaria, à primeira vista pensaria
estar em Portugal. Mas, reparando melhor, veria que o púlpito exterior de
cantaria azul rendilhada como filigrana tem um toque oriental. E, se houvesse
missa, tanto poderia calhar ouvi-la em inglês como em concani ou português.”
·
“Os pretensos prodígios europeus não tornaram o planeta
mais feliz, e deixaram por todo o lado uma herança de dois gumes, de benesse e
pesadelo. Há anos, na Hungria, perguntei ao escritor Péter Esterházy se herdara
ao menos algum pequeno palácio dos príncipes seus antepassados. Não herdei
palácios, herdei ‘nomes’ de palácios, respondeu com uma gargalhada. Algo de
semelhante aconteceu com a herança portuguesa em Cochim e Kerala.”
·
“As latitudes quentes, húmidas, onde tudo floresce
depressa e depressa apodrece, tornam mais visível o que há de fugaz nas nossas
vidas. A irrealidade daquele quase-idílio convidava a não prosseguir viagem, a
ficar na calma senhorial da tarde deixando escorrer as horas, contemplando o
deslizar dos dias, dialogando com aqueles que por aqui passaram e cujas vidas
podem apossar-se de nós a ponto de se recusarem a passar.”
·
“Desejei-lhe boa tarde, muitas tardes do seu tempo
intemporal. Quando íamos separar-nos, achou que devia justificar a vida
contemplativa que levava. Com voz enfraquecida, concluiu num francês arcaico,
peculiar, talvez do tempo de Montaigne, que ele era ‘soy-mesmes la matière de
sa vie’ (ele mesmo a matéria da vida dele). Desejando-me boa estada na ‘sua’
cidade, virou costas, umas costas dobradas, e desapareceu a passo lento sob o
arco de um altar do lado esquerdo.”
·
“O visitante ocidental que pela primeira vez chega a Goa
e Cochim enfrentará provavelmente a vertigem do caos à sua volta e dentro de
si. Quando começa a familiarilizar-se com a estonteante exuberância e com as
contradições coexistentes, quando julga começar a entender a complexidade das
castas, dos cultos e costumes tão diferentes, quando começa a fixar nomes,
imagens, atributos dos deuses, tudo lhe foge de súbito, tudo se torna de novo
confuso, como se o véu de Maia voltasse a cobrir a indecifrável irrealidade da
Índia real.”
Seja bem-vindo, Almeida Faria – e para quando o romance
há tanto tempo em falta?