Os infortúnios de José Sócrates parecem
não ter fim.
No plano interno, há quem persista no
convívio fácil com fantasmas do passado, dá sempre jeito quando a sequência das
coisas não é a que a maioria atual pensara para fazer passar sem custos de
maior as agruras da austeridade. Mas também no PS enquanto não for concretizada
uma avaliação-aprendizagem da experiência de governação anterior, tão fria e
distanciada quanto o permitir a permanência em cena da maioria dos atores então
influentes, o fantasma permanecerá e com ele a intranquilidade do dito.
No plano externo do aparente recato em
Paris, a aula-conferência sobre a dívida agudizou velhos demónios e, talvez
descontextualizado pela imprensa, esse reaparecimento público não foi
claramente o melhor para um período de sossego.
Neste plano, as coisas pareciam entrar
na acalmia natural do esquecimento. Mas há dias a marca SCIENCES PO voltou aos
tablóides, não agora por qualquer aparecimento público de Sócrates, mas pelo
infortúnio atribulado do seu Diretor Richard Descoings. No âmbito de uma
participação em conferência na Universidade de Colúmbia, Nova Iorque, a
personagem apareceu morta em condições algo estranhas num quarto de hotel
nova-iorquino. O cenário tem algumas similaridades, embora mais trágicas, com o
affair americano de Strauss-Kahn, tendo curiosamente tido da imprensa francesa
um tratamento mais contido e dispenso-me de explicar porquê.
Chamo a atenção para este facto, não pelo evento em si,
trágico, mas sobretudo por um artigo que me chegou ao radar: “Sciences-Po -
Plaidoyer pour redresser une institution républicaine en perdition”
(Sciences-Po – Contributo para recuperar uma instituição republicana em
perigo). O artigo é publicado no Newropeans Magazine (http://www.newropeans-magazine.org/content/view/13077/1/lang,fr) e tem como autor Franck
Biancheri. Este personagem tem tido alguma notoriedade na defesa de outros
modelos mais participados no processo de construção europeia e já esteve no
Porto em defesa dessas tomadas de posição, numa reunião algures no tempo
realizada na Reitoria da Universidade do Porto, com organização da associação
APRIL, na altura liderada pelo Engº Luís Tavares. Dirige presentemente um
think-tank europeu de prospetiva, o LEAP – Laboratoire Européen d’AnticipationPolitique, que publica regularmente o “The Global Europe Anticipation Bulletin”.
O artigo é redigido na qualidade de diplomado em 1984 pelo IEP Paris.
O artigo de Biancheri é
particularmente contundente com a evolução da Sciences-Po, que associa à
emergência do poder Sarkozy em França e à qual a personalidade de Descoings
surge associada: (i) “americanização” da instituição; (ii) Desvalorização do
papel do francês – língua; (iii) nivelamento por baixo do nível de estudos;
(iv) transformação do IEP Paris em mera sucursal da World University Inc..
Muito contundente, de facto, quase radical. Mas não fica por aqui. A abordagem
torna-se violenta, citando: “Richard Descoings era apenas um executor, um
simples representante desta “esquerda-caviar”
que se associou imediatamente ao sarkozismo vencedor de 2007, sobretudo porque gostava mais de caviar do que da
esquerda. Por sua interposta figura, manipuladores na sombra ou
“mestres pensadores”, outras figuras de influência não comparável exerciam o
seu poder.”
O artigo prossegue com uma
desenvolvida análise das relações entre o Conselho Diretivo do IEP Paris e da
Fundação Nacional de Ciências Políticas, indo ao ponto de identificar alguns
intelectuais liberais e atlantistas, com raiz no pensamento de Raymond Aron,
que estarão na base da tentativa de “afirmar o primado da finança na sociedade
e na economia francesa, defendendo o multiculturalismo e o comunitarismo ‘à americana’
e promovendo o anglo-americano como a única língua digna das elites”. Vai ao
ponto de denunciar a filtragem de alunos e o controlo por parte da direção de
conferências com personalidades internacionais de relevo (Joshua Fisher, por
exemplo) que terá percebido a filtragem de alunos que encontrou na sua
conferência dada na Sciences-Po. Termina com propostas concretas de
ressurgimento dos princípios republicanos da sua constituição e de incorporação
no projeto dos IEP baseados em outras regiões francesas.
O artigo de Biancheri exige
seguramente o confronto com outras opiniões. Mas a ligação da Sciences-Po à
“esquerda do caviar” e o seu alinhamento com a afirmação de Sarkosy (tão amigos
que nós éramos …) não seriam certamente as condições ideais esperadas por
Sócrates para o seu retiro. Há assim uma espécie de prolongamento dos seus
infortúnios, pouco propício ao repouso do guerreiro. E se a tese de Biancheri
for verdadeira, acusando, entre outras coisas, a Sciences-Po de desvalorização
do francês como língua de expressão e de mensagem, em favor do anglo-americano,
então pior, os infortúnios com o inglês ainda não terão terminado. Já é azar.
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