terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A REFORMA DOS FRANCESES

(Corinne Rey, “Coco”, https://www.liberation.fr) 

(Nicolas Vadot, http://www.levif.be

A situação política em França está verdadeiramente ao rubro e foi ao perceber a força das manifestações de hoje que realizei não ter ainda feito uma referência ao fenómeno em causa, a saber, um presidente que prometeu reformas marcantes (e necessárias) no seu país ― reconhecidamente um dos mais bloqueados pela força dos sindicatos e da rua ―, que se defrontou com protestos inesperadamente violentos no final do seu primeiro mandato (os famosos gilets jaunes) e que acabou por decidir adiar a mudança para um segundo mandato em que, afinal, acabou por perder a maioria absoluta e ficar refém de acordos parlamentares à direita. Teimosamente, Macron voltou à carga forçando um dossiê reformador associado à complexa problemática das aposentações, entregando-o à execução direta da primeira-ministra Elisabeth Borne e enfrentando um crescente volume de oposições ferozes por parte dos cidadãos e suas forças organizadas (ou nem tanto) nas ruas das grandes cidades. Ao que acrescem, com o aproximar da votação parlamentar, as ameaças de voto contra provenientes de alguns deputados “macronistas” ou representando partidos à direita.



De referir por fim que, ao que sei ou do que tenho lido, existem várias especificidades muito franco-francesas em todo este processo. Uma delas é o facto de estarmos perante uma alteração da idade da reforma que compara de modo estranho com a larga maioria dos outros países europeus: de facto, a lei em discussão passa aquela idade de 62 para 64 anos (vejam-se acima os principais passos legais, sempre altamente restritivos, a que tem estado sujeito o dossiê desde os anos 60) e só pretende concretizar a sua aplicação lá mais para a frente no tempo. A outra resulta do facto de os aposentados franceses constituírem, paradoxalmente e ao contrário do que é habitual noutras paragens, um grupo social “rico”, ou seja, detentor de um nível médio de vida superior e de uma taxa de pobreza quase duas vezes menor em relação à média da restante população (vejam-se as duas sugestivas infografias abaixo). Existem também considerações críticas em torno de questões como alegados prejuízos da nova lei para as mulheres e para as carreiras longas.



 

Está assim criada uma situação de impasse social que representa uma autêntica dificuldade para um Macron que esperava deixar um legado histórico de passagem pelo Eliseu e não vê-la ferida por uma avaliação a tender para a insignificância ou a nulidade.

TRANSIÇÕES

 


(Há dias, no Twitter, Branko Milanovic afirmava o seguinte: “A teoria da natureza democrática das revoluções de 1989 não pode explicar o facto de todos os conflitos e guerras que tiveram lugar nas federações comunistas dissolvidas e porque 11 entre 12, incluindo a corrente guerra na Ucrânia, serem conflitos étnicos acerca das fronteiras”(link aqui). Esta afirmação e a necessidade de a compreender conduziu-me ao refrescamento de algumas ideias sobre tais revoluções, ou para seguir a moda da terminologia corrente, compreender melhor as complexas transições em curso nestas sociedades. Em tempos já idos, bem lá longe, o termo transição era sobretudo aplicado para seguir a história dos processos de evolução para o socialismo. Hoje, além da utilização um pouco abusiva que o futebol mobiliza, transições ofensivas e defensivas, o termo é aplicável a toda a transformação estrutural implícita numa estratégia de desenvolvimento. De facto, a transformação dos contextos de partida para atingir um dado objetivo implica que consideremos a questão da transição. O tema é, aliás, fascinante e diferencia hoje com clareza a vulgata das estratégias e a sua utilização mais cuidada.

 

Para refrescar memória e pensamento sobre as revoluções de 1989 existe uma vasta e variada literatura que não é possível aqui reproduzir em toda a linha. Para os objetivos deste post, basta compreendermos que se trata dos movimentos de dissolução das repúblicas comunistas na sequência da queda do muro de Berlim ou com ela concomitantes. Um simples artigo da Wikipédia (link aqui) resolve o problema, embora haja nuances que o estudioso mais rigoroso tem de explorar com literatura mais profunda.

Temos de convir que o ocidente despachou demasiado apressadamente e sem qualquer rigor a explicação das referidas revoluções. Essa precipitação tomou a forma dominante de as apresentar como verdadeiras revoluções democráticas. À medida que se mergulha na investigação sobre tais movimentos, compreende-se que a própria ideia de revolução é totalmente discutível. O ocidente reforçou a tecla da revolução democrática porque obviamente uma libertação dessa natureza. Um erro similar foi praticado na interpretação das “primaveras árabes”, também elas apresentadas como a vitória da democracia sobre as trevas da opressão.

Há autores como, por exemplo, Gerard Roland num artigo publicado em 2018 na revista Economics of Transition and Institutional Change (link aqui), revista que tem o apoio do European Bank for Reconstruction and Development e que dedicou um número especial a esse tema, que desvaloriza a natureza de revolução para destacar sobretudo o aspeto do colapso das sociedades comunistas na época, sendo curioso que o faz comparando os movimentos do Centro e democraciado Leste europeu com o registado na China.

A análise do próprio Milanovic (link aqui) aponta para outras interpretações, destacando a relevância dos processos de autodeterminação nacional (nacionalismo) que aparece misturado com a ideia de democracia. Obviamente que o derrubar das instituições comunistas, uma após outra, teria de “parecer” democrático, dado o autoritarismo do regime que é derrubado. A ideia da fusão do nacionalismo e da democracia é mais legível em países como a Polónia ou a Hungria em que existe alguma homogeneidade étnica. Como se torna evidente nos dias de hoje, nacionalismo e democracia já não aparecem tão fundidos, sobrepondo-se claramente o primeiro à segunda, para mal dos pecados da União Europeia que já não sabe para se virar.

A falta de rigor da atribuição da designação de revoluções democráticas aos movimentos de 1989 torna-se mais legível em repúblicas comunistas dissolvidas que apresentavam uma forte heterogeneidade étnica. É aqui que as minhas leituras do passado sobre a revolução de 1917 e a criação da União Soviética são úteis, valendo a pena desenterrar dos arquivos algumas notas de leitura. A questão da heterogeneidade étnica do leste europeu tem sido escamoteada e falsa ignorada. Os revolucionários de 1917 compreendiam melhor do que ninguém essa realidade e foi por isso que ensaiaram o modelo de atribuir uma República autónoma e independente em princípio a uma etnia dominante, tentando por essa via resolver o problema terrível dessa heterogeneidade. A União Soviética é de facto uma federação de estados baseados numa etnia que se pressupunha poder ser dominante. O nacionalismo tem assim uma origem étnica e a promessa de que a erradicação do capitalismo e a segurança nacional aos seus membros iriam fazer eclodir um longo processo de crescimento económico. O que falhou em toda a linha. Tudo se passa como se os revolucionários de 1917 acreditassem que as etnias se iriam distribuir pelo território para encontrar a sua localização certa. Como sabemos, os atritos a essa circulação espacial fluida e pura foram muitos e uma grande parte dos conflitos que se observam nas ex-Repúblicas soviéticas têm hoje uma origem étnica, a pior das causas para uma guerra, já não falando da promessa incumprida do crescimento económico.

 

Esta situação explica o incómodo manifestado por Putin quanto à excessiva autonomia atribuída pelos revolucionários de 1917 às Repúblicas da União Soviética. Putin, através da sua orientação imperial e autoritária, pensa obviamente que só um regime profundamente autoritário pode submeter a referida heterogeneidade étnica a um comando comum. Já o manifestou em inúmeras oportunidades, dos discursos à ação violenta concreta.

History matters. Já o sabíamos. Mas foi preciso que a guerra regressasse à Europa para o compreender melhor. É que nacionalismo com relativa homogeneidade étnica é uma coisa. Nacionalismo com heterogeneidade e conflitualidade étnicas é uma coisa totalmente diferente, conduzindo regra geral à guerra.

 

COSTA A QUERER RECOMEÇAR

 

Entrevista de António Costa à RTP, conduzida por um António José Teixeira bem mais afrontativo do que lhe é habitual (será que também já se fartou de uma certa forma de fazer política?). Uma entrevista em que o primeiro-ministro só aparentemente foi humilde quando reconheceu que o Governo se pôs a jeito e cometeu erros (“o acessório”), visto que o fez dentro de um quadro discursivo artificialmente construído para procurar mostrar insistentemente a sua confiança em si próprio e na sua governação, que foi louvando quanto pôde (“o principal”), e desvalorizativo em relação aos famosos “casos e casinhos” de que foi cúmplice e padrinho por contraponto a um uso demagógico da realidade dos grandes problemas dos portugueses. Uma entrevista em que Costa poderá até ter conseguido atingir o seu objetivo de voltar à tona e assim tentar recomeçar um ano depois de eleito, designadamente ao apresentar-se curado da arrogância que ostentou há pouco mais de um mês (“habituem-se!”) e capaz de cumprir alguns mínimos para os devidos efeitos. Além do mais, o entrevistador também não perguntou o óbvio a quem tanto enchia os ouvidos do auditório com o seu inquestionável estatuto de democrata, a saber, as razões pelas quais definiu uma vergonhosa tática partidária assente em fazer do “Chega” de André Ventura um aliado enquanto seu escudo protetor relativamente ao PSD (para o que mandou Ana Catarina Mendes sentar-se na primeira fila do congresso daquele partido indigno, após ter objetivamente tolerado que o mesmo vá presidir à Comissão de Inquérito da TAP com a contrapartida de a mesma não ir investigar os atribulados tempos em que na mesma imperavam as duvidosas decisões de um seu amigo dileto). Já quanto a pensamento e estratégia para o País, como de costume nada disse.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A IMOLAÇÃO DE ANA CATARINA MENDES

 


(Tenho de vos confessar que, na qualidade de apoiante socialista, não militante, que sempre votou PS a não ser numas autárquicas em que me recusei a apoiar os desmandos urbanísticos de um tal Heitor Carvalheiras, me senti ontem bastante incomodado por ver nas televisões um membro do Governo e elemento destacado do PS, a Ana Catarina Mendes, a assistir institucionalmente ao congresso do Chega e, simultaneamente, à entronização foleira e doentia de André Ventura. Para mim não cola o argumento da mera representação institucional, pois haveria muitas maneiras de despachar essa muito discutível representação institucional, não comprometendo um membro do Governo. Não havia necessidade de condenar à imolação alguém que em meu entender já prometeu mais do que hoje representa. E mais incomodado fiquei com a incorporação de alguns elementos adicionais de informação surgidos poucos minutos depois, através do corajoso e contundente comentário de Ana Gomes na SIC Notícias.

 

Por mais apoiante crítico, por vezes muito crítico, que seja da governação socialista, há coisas que vão para lá da racionalização do pensamento crítico e que geram um insuportável incómodo. Já bastava aguentar as imagens das televisões com a entronização bafienta e retrógrada do André Ventura, inseridas em noticiários que trazem outras coisas e que não podem ser evitadas pela mudança de canal, pois alinham todos pelos mesmos critérios editoriais.

Mas deparar na primeira fila dos convidados com a presença de um membro do Governo, ainda por cima responsável por uma pasta que trata de assuntos em que o fel venenoso do Chega corrói tudo que o cerca, Ana Catarina Mendes, que assistia com cara de pau aquele espetáculo indecoroso, ultrapassa tudo o que as minhas delicadas vísceras podem aguentar. O que terá levado os responsáveis socialistas a imolar uma das suas dirigentes mais destacadas, com um argumento de representação institucional que não convence o mais circunspeto dos apoiantes? Há limites para a diplomacia parlamentar um desses limites é oferecer ao Chega a aceitação de um convite institucional. O incómodo foi bastante, sobretudo por ter ficado com a sensação de que ali havia esturro.

Uns minutos depois de ter assistido às diatribes do Ricardo Araújo Pereira dei comigo a assistir ao comentário político semanal da Ana Gomes, cada vez mais de pelo na benta. Não sou propriamente um adepto fervoroso do verbo da Ana Gomes, mas tenho de reconhecer que a ausência da sua VOZ faria falta ao ambiente político em Portugal.

Ora a intervenção da Ana Gomes de ontem veio adensar o meu incómodo com a despropositada imolação de Ana Catarina Mendes. Ela invocou e bem a estranha decisão do PS de abdicar de presidir à Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP, o que terá como consequência a possível atribuição a um representante do Chega dessa responsabilidade.

O cheiro a esturro tornou-se insuportável. Um membro do Governo a assistir à entronização de Ventura e uma decisão que pode representar uma tática política tenebrosa é uma coincidência demasiado gravosa para meu gosto. Até porque a cada cavadela no dossier da TAP se compreende que, embora limitando o inquérito a um período demasiado próximo (outra interrogação que fica misteriosamente no ar), a nacionalização instável da TAP vai transformar-se num assunto ruinoso para o Governo e PS e não interessa que protagonistas serão chamuscados. Se não houvesse mais rastilhos, este último relacionado com o bónus/prémio de gestão à Madame responsável pela condução do processo de reestruturação vai ainda mais incendiar o ambiente em que a Comissão de Inquérito irá funcionar.

Este tempo não está de facto para velhos com sentido crítico das coisas.

 

QUEBRADO O ENGUIÇO!

A Taça da Liga, durante anos conhecida por Taça Lucílio Baptista ou Taça Benfica e preferencialmente abordada por alguns como uma competição para rodar jogadores, tem vindo a assentar arraiais no seio das provas futebolísticas nacionais. A exemplo, aliás, das suas congéneres em países com maior relevância no desporto-rei. O mérito cabe por inteiro aos mais recentes responsáveis da Liga de Futebol e ao modo como souberam ir adaptando o seu formato, forçando a “verdade desportiva” e valorizando o troféu em disputa junto dos clubes e seus adeptos e da comunicação social. Uma demonstração cabal do facto está no facto de o quase eterno vencedor dos primeiros anos (sete taças em nove disputas desde 2008), o Benfica, já não vencer a prova desde 2016 e assim ter sido dado lugar a um maior equilíbrio de titulados (Sporting por quatro vezes, Braga, Moreirense e FC Porto, uma vez cada).

 

Pois foi neste Sábado que o FC Porto conquistou a dita em Leiria, após quinze anos a seco (entre opções desvalorizativas e derrotas azarentas em finais, como ocorreu em Braga por grandes penalidades em 2019). Uma vitória que se tinha tornado imperiosa, após a credibilização do troféu, e que coloca os portistas como conjuntural e historicamente hegemónicos no conjunto das provas futebolísticas internas, seja porque passaram a ficar na posse da totalidade dos quatro grandes troféus em presença (Campeonato, Taça de Portugal, Supertaça e Taça da Liga) seja porque atingem 83 títulos e igualam (ou ultrapassam?) o Benfica na globalidade das conquistas oficialmente obtidas pelos vários clubes desde que há registos.

 

Dito isto, uma palavra sobre o jogo jogado. Fraquinho, bastante fraquinho, nada comparável com tempos não muito longínquos em que as equipas do FC Porto passeavam supremacia e classe pelos campos portugueses (e não só). As razões são conhecidas e têm sido aqui abordadas a espaços: passam sobretudo pela dimensão financeira (ou falta dela) e pelas restrições que a mesma impõe a entidades desportivas de países periféricos como o nosso, sem prejuízo da presença de outras de ordem organizativa, de gestão e de liderança. A meu ver, e em termos estritamente desportivos, o FC Porto de hoje conta com um bom treinador, especialmente bem-adaptado à sua circunstância possível, mas ainda assim marcado por manias e atitudes não consentâneas com uma leitura indiscutível em termos de afirmação internacional; e com alguns excelentes ou bons/prometedores jogadores (Diogo Costa, Pepe, Otávio e Taremi, no primeiro caso e minimizando alguns aspetos limitadores como a idade ou a irregularidade, e Uribe, Eustáquio, Evanilson, Galeno e Pepê, no segundo caso) que são forçados a conviver com outros de menor qualidade (Wendell é a melhor ilustração, mas também André Franco, Rodrigo Conceição, Fábio Cardoso e até Marcano e Zaidu) ou personalidade (João Mário, David Carmo, Grujić, Toni Martinez, Namaso e Veron) num puzzle certamente complexo de gerir por manifesta falta de compatibilidade entre classe intrínseca e picos de forma física e psicológica ― uma equipa espremida ao tutano que vai sendo miraculosamente capaz de resistir e ganhar com bastante frequência por engenho e arte do treinador. E, cá volto à final de Leiria, o FC Porto venceu mas não esmagou como correntemente acontecia no passado, quase apetecendo até desabafar como o fez um amigo: “a jogar assim, só ganhávamos ao Sporting!”.

 

Foram-se os anéis, às vezes a preços de saldo, outros irão pela certa (Diogo Costa já está na fila), os jovens não aparecem na qualidade desejada (acontece-me com frequência pensar na estrutura organizativa das nossas “escolas” e do nosso scouting) e as aquisições estão proibidas, uma situação em que nos resta levantar a cabeça e sofrer para continuar a vencer e segurar a hegemonia tão dificilmente conseguida. Sem ilusões demasiadas, todavia, de que alguma coisa de estrutural não tenha de acabar por acontecer.