(Há dias, no Twitter, Branko Milanovic afirmava o seguinte:
“A teoria da natureza democrática das revoluções de 1989 não pode explicar o
facto de todos os conflitos e guerras que tiveram lugar nas federações
comunistas dissolvidas e porque 11 entre 12, incluindo a corrente guerra na
Ucrânia, serem conflitos étnicos acerca das fronteiras”(link aqui). Esta afirmação e a necessidade de a compreender conduziu-me ao
refrescamento de algumas ideias sobre tais revoluções, ou para seguir a moda da
terminologia corrente, compreender melhor as complexas transições em curso
nestas sociedades. Em tempos já idos, bem lá longe, o termo transição era
sobretudo aplicado para seguir a história dos processos de evolução para o socialismo.
Hoje, além da utilização um pouco abusiva que o futebol mobiliza, transições ofensivas
e defensivas, o termo é aplicável a toda a transformação estrutural implícita
numa estratégia de desenvolvimento. De facto, a transformação dos contextos de
partida para atingir um dado objetivo implica que consideremos a questão da
transição. O tema é, aliás, fascinante e diferencia hoje com clareza a vulgata
das estratégias e a sua utilização mais cuidada.
Para refrescar memória e pensamento sobre as revoluções
de 1989 existe uma vasta e variada literatura que não é possível aqui
reproduzir em toda a linha. Para os objetivos deste post, basta
compreendermos que se trata dos movimentos de dissolução das repúblicas
comunistas na sequência da queda do muro de Berlim ou com ela concomitantes. Um
simples artigo da Wikipédia (link aqui) resolve o problema, embora haja
nuances que o estudioso mais rigoroso tem de explorar com literatura mais profunda.
Temos de convir que o ocidente despachou demasiado
apressadamente e sem qualquer rigor a explicação das referidas revoluções. Essa
precipitação tomou a forma dominante de as apresentar como verdadeiras
revoluções democráticas. À medida que se mergulha na investigação sobre tais
movimentos, compreende-se que a própria ideia de revolução é totalmente
discutível. O ocidente reforçou a tecla da revolução democrática porque
obviamente uma libertação dessa natureza. Um erro similar foi praticado na interpretação
das “primaveras árabes”, também elas apresentadas como a vitória da democracia
sobre as trevas da opressão.
Há autores como, por exemplo, Gerard Roland num artigo
publicado em 2018 na revista Economics of Transition and Institutional
Change (link aqui), revista que tem o apoio do European Bank for Reconstruction and
Development e que dedicou um número especial a esse tema, que desvaloriza a
natureza de revolução para destacar sobretudo o aspeto do colapso das
sociedades comunistas na época, sendo curioso que o faz comparando os movimentos
do Centro e democraciado Leste europeu com o registado na China.
A análise do próprio Milanovic (link aqui) aponta para outras interpretações,
destacando a relevância dos processos de autodeterminação nacional (nacionalismo)
que aparece misturado com a ideia de democracia. Obviamente que o derrubar das
instituições comunistas, uma após outra, teria de “parecer” democrático, dado o
autoritarismo do regime que é derrubado. A ideia da fusão do nacionalismo e da democracia
é mais legível em países como a Polónia ou a Hungria em que existe alguma
homogeneidade étnica. Como se torna evidente nos dias de hoje, nacionalismo e
democracia já não aparecem tão fundidos, sobrepondo-se claramente o primeiro à
segunda, para mal dos pecados da União Europeia que já não sabe para se virar.
A falta de rigor da atribuição da designação de revoluções
democráticas aos movimentos de 1989 torna-se mais legível em repúblicas comunistas
dissolvidas que apresentavam uma forte heterogeneidade étnica. É aqui que as
minhas leituras do passado sobre a revolução de 1917 e a criação da União
Soviética são úteis, valendo a pena desenterrar dos arquivos algumas notas de
leitura. A questão da heterogeneidade étnica do leste europeu tem sido escamoteada
e falsa ignorada. Os revolucionários de 1917 compreendiam melhor do que ninguém
essa realidade e foi por isso que ensaiaram o modelo de atribuir uma República
autónoma e independente em princípio a uma etnia dominante, tentando por essa
via resolver o problema terrível dessa heterogeneidade. A União Soviética é de
facto uma federação de estados baseados numa etnia que se pressupunha poder ser
dominante. O nacionalismo tem assim uma origem étnica e a promessa de que a
erradicação do capitalismo e a segurança nacional aos seus membros iriam fazer
eclodir um longo processo de crescimento económico. O que falhou em toda a
linha. Tudo se passa como se os revolucionários de 1917 acreditassem que as
etnias se iriam distribuir pelo território para encontrar a sua localização
certa. Como sabemos, os atritos a essa circulação espacial fluida e pura foram
muitos e uma grande parte dos conflitos que se observam nas ex-Repúblicas
soviéticas têm hoje uma origem étnica, a pior das causas para uma guerra, já
não falando da promessa incumprida do crescimento económico.
Esta situação explica o incómodo manifestado por Putin
quanto à excessiva autonomia atribuída pelos revolucionários de 1917 às Repúblicas
da União Soviética. Putin, através da sua orientação imperial e autoritária,
pensa obviamente que só um regime profundamente autoritário pode submeter a
referida heterogeneidade étnica a um comando comum. Já o manifestou em inúmeras
oportunidades, dos discursos à ação violenta concreta.
History matters. Já o
sabíamos. Mas foi preciso que a guerra regressasse à Europa para o compreender
melhor. É que nacionalismo com relativa homogeneidade étnica é uma coisa.
Nacionalismo com heterogeneidade e conflitualidade étnicas é uma coisa
totalmente diferente, conduzindo regra geral à guerra.