quarta-feira, 31 de outubro de 2018

HISTORIADORES E NACIONALISMOS



(Os nacionalistas independentistas usam frequentemente o valor de reconhecimento da história para, frequentemente, apelarem a uma razão histórica profunda justificativa do seu nacionalismo e direito à secessão de outros estados. Não raras vezes, porém, mais do que história oferecem-nos encenações da mesma, senão mesmo deturpações interpretativas dos factos. Apesar da inequívoca identidade catalã, alguns dos mitos que o independentismo catalão invoca como efemérides apelando à resistência não resistem a um contraditório histórico num painel plural de historiadores.)

A publicação da obra do grande historiador da universidade de Oxford John Elliott, SCOTS & CATALANS –UNION & DESUNION (Yale University Press, 2018) não deve ter agradado ao independentismo catalão. A publicação da tradução espanhola da obra de Elliott aconteceu por estes dias e mais uma vez os independentistas catalães devem mordido os lábios, já que Elliott, um profundo conhecedor da história espanhola compara os independentismos escocês e catalão e não encontra a identificação que a divulgação internacional do projeto catalão tem forçado a todo o custo.

O exercício de história comparativa a quatro níveis, Grã-Bretanha versus Espanha, Escócia versus Catalunha, que Elliott é precioso pois vai do período de 1469—1625 aos tempos do controverso referendo que o governo regional improvisou e que determinou a aplicação do já célebre artigo 155º da Constituição espanhola.

A apresentação da versão espanhola (reparem na nuance da mudança do título) realizou-se em Madrid com a presença de Elliott e do também grande historiador espanhol Álvarez Junco. Como não podia deixar de ser, a imprensa espanhola deu algum realce à iniciativa, não ignorando provavelmente que em 2017 John Elliott escreveu ao Times em Londres uma carta em que denunciava a manipulação da história que o separatismo catalão estava a realizar na sua campanha interna e internacional.

Um resumo das posições de Elliott poderia ser este:

Diferentemente da Escócia, a Catalunha nunca foi independente. A Escócia marcou a sua diferença pela religião. E também por um medievaismo artificial a que a literatura de Walter Scott deu voo. Catalunha apoiou a sua identidade na língua e na criação de um caráter nacional fictício. Um dos aspetos mais característicos do nacionalismo consiste na capacidade de se arrogar a representação de um povo e de uma alma. Trata-se de dotar um e outro de uma pureza e de uma essencialidade têm por hábito vincar a diferença, quando não a superioridade”. (El País)

O seu colega de seminário em Madrid Álvarez Junco trouxe para o debate então realizado uma recordatória que deveríamos manter viva:

A União Europeia é uma ideia extradordinária. É um antídoto ao nacionalismo e à nostalgia do estado-nação. É verdade que a União gerou um aparato burocrático desmedido, mas a ideia de uma fórmula supranacional, superestatal, representa um espaço de convivência muito mais desejável do que o obscurantismo nacionalista nas suas lendas e tentações restritivas”. (El País)

Assino por baixo.

RAEL, NATIRUTS, FIÓTI E O MEU FILHO MAIS VELHO



Uma noite de Terça-Feira num Porto que já desconheço, capaz de encher o Coliseu com um recorde de quatro mil pessoas vibrantes, dominantemente jovens. O programa abria com o rapper Rael – que atua em ligação estreita com a “Laboratório Fantasma” dos irmãos Evandro (Fióti) e Leandro (Emicida) e seguiu para uma tournée europeia de dez concertos em onze dias – e tinha como prato forte o grupo de reggae Natiruts, hoje em dia um dos mais justamente afamados e aclamados do Brasil. No final, oportunidade ainda para conhecer o interessante personagem que é Fióti, alguém cuja juventude não impediu que se tivesse tornado o “sul” do meu filho mais velho em S. Paulo; o reencontro com o Tiago culminou uma noite que teve doses importantes daquilo que me pode ainda encher a alma.



MUITO NEGRO É...


Habituei-me a ter uma certa consideração política por Fernando Negrão, um cidadão com carreira e com toda a aparência de ser alguém dotado em termos de conteúdo. Mas o certo é que não sei o que lhe deu para que se tenha decidido a prestar-se a algumas tristes figuras, que de todo só o desmerecem. Já tinha sido o caso aquando da sua frustrada candidatura à presidência da Assembleia da República, tem sido pontualmente o caso em debates quinzenais e foi hoje o caso no debate sobre o Orçamento de Estado ao comando do grupo parlamentar do PSD. Vejamos algumas das suas mais desclassificadas pérolas: “Um Orçamento assim tem um nome: é um Orçamento fake, é um orçamento falso. Um embuste, um logro ou, em bom português, uma aldrabice.” Ou:“Este modo socialista de fazer as coisas é normalmente acompanhado por uma frase e cito: ‘nunca houve tanta transparência nas contas públicas portuguesas’. Disse-o Sócrates em 2010 e di-lo hoje António Costa.” Ou, ainda: “Neste jogo de sombras, temos sempre o primeiro-ministro, Dr. António Costa, a controlar este seu teatro de marionetas, julgando que, desta forma, consegue igualmente manipular os portugueses.” O debate política tem as suas lógicas, que consabidamente incluem a demagogia e a berraria como algumas das principais ferramentas, mas Negrão exagerou manifesta e desnecessariamente, sobretudo se o seu objetivo era – como devia ser – o de procurar chamar a atenção dos portugueses para algo do que, a seu ver, vai mal na estratégia governativa. É verdade que alguns dos seus adversários também não se fizeram rogados na utilização de uma argumentação desproporcionadamente descentrada e demagógica, como aconteceu com Carlos César – fui particularmente sensível àquela ideia brilhante de que, apesar de a oposição acusar o governo de Portugal de ter um baixo crescimento, “em 2015 a Irlanda cresceu 14 vezes mais que Portugal e no próximo não chegará ao dobro”! – ou com a provocadora intervenção final de Vieira da Silva, mas quem é que ainda não entendeu que a melhor forma de combater a deselegância da palavra fácil e gratuita tende cada vez mais a ser a elegância da palavra medida e fundamentada?

terça-feira, 30 de outubro de 2018

APESAR DE TUDO, BOAS NOTÍCIAS



(O mundo não se recomenda. A impunidade, a plutocracia e a intolerância têm-se instalado e a democracia necessita de uma frente de resistência. Mas apesar disso e de todas as mudanças de rumo que urge imprimir à globalização, a redução da pobreza absoluta é notável nos últimos 30 anos.)

O Banco Mundial acaba de publicar o seu relatório de 2018 sobre a evolução da pobreza no mundo: POVERTY AND SHARED PROSPERITY 2018. Piecing Together -The Poverty Puzzle (link aqui). Confirmando o que relatórios anteriores tinham sugerido, os números da redução da pobreza absoluta (calculada pelo Banco Mundial através de um limiar ou linha abaixo do qual a população é considerada como vivendo em condições de pobreza absoluta, 1.90 dólares dia à Paridade de Poder de Compra. Essa redução tem sido territorialmente desigual pelo mundo e mais lenta do que elementares princípios de justiça aconselhariam. Mas são números que não podem ser ignorados. 


O quadro acima evidencia a redução global observada em termos de massa de população e de peso na população mundial (736 milhões de almas e cerca de 10% da população mundial). A década de 1990 a 2000 registou uma redução pouco expressiva e foi necessário o novo milénio para acelerar a redução da massa de pobreza absoluta. A repartição regional dos progressos observados é manifestamente desigual (ver gráfico abaixo), com alterações significativas observadas de 1990 para 2015. A África sub-sahariana e a Ásia do Sul passam a ser as regiões com maior peso de população em pobreza extrema (em conjunto 85%), o que contrasta fortemente com os valores de 1990 em que as regiões da Ásia Oriental e do Pacífico acolhiam a maior magnitude de pobreza. No mesmo quadro é possível registar a espantosa redução da população em situação de pobreza extrema na Ásia Oriental e Pacífico: de 987,1 milhões de pessoas para 47,2 milhões. Por mais dúvidas que possamos alimentar sobre as condições do trabalho nesses países, a evolução é avassaladora. A África Sub-sahariana contrasta com esse registo: é mesmo a única região em que a pobreza extrema aumentou entre 1990 e 2015.

Em resumo e tal como o relatório nos refere, temos progressos, desigualmente observados e concretizados a um ritmo abaixo do necessário. Os dados publicados reportam a um período em que o chamado “backlash” da globalização não tinha ainda a expressão dos tempos mais recentes. Apesar das alterações de rumo de que o processo de globalização carece, seguramente que se as tendências para a imposição do protecionismo selvagem e conduzido em função de instrumentos de guerra económica persistirem o próximo relatório do Banco Mundial irá trazer-nos más notícias. 


Para memória futura, o Banco Mundial reporta que em 2015 a massa de pobres no Brasil era de 6,9 milhões e a taxa de pobreza de 3,4%.
 


 (Pinto e Chinto, Voz de Galicia)

MERKEL: CONTAGEM DECRESCENTE

(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)


(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)


Falando de coisas mais sérias, a Baviera já enchera o copo mas foi Hessen a fazê-lo transbordar (com os Verdes e a extrema-direita a captarem boas fatias do eleitorado do SPD e da CDU). E, em face de tal quadro, o dia de ontem foi marcado pelo anúncio de Angela Merkel de que estará em irreversível phasing out da política ativa. Para já, não à recandidatura ao Congresso de dezembro da CDU; depois, não à recandidatura ao Parlamento e, portanto, a um novo mandato enquanto chanceler; por acréscimo, não a qualquer pretensão de vir a ocupar um outro lugar político (o que parece, assim, excluir a Europa, como em algumas esquinas se vinha ouvindo poder acontecer a nível do Conselho ou até da Comissão). Sobe em mim o convencimento de que o maior e verdadeiro problema europeu irá acabar por irromper em plena Alemanha...

PINTA, PINTA...

(foto de Rafael Marchante, https://sicnoticias.sapo.pt)

Claro que é uma minudência falar de uma deputada que pinta as unhas em pleno hemiciclo, durante o debate do Orçamento de Estado. Mas é uma minudência reveladora de um laxismo e de uma falta de sentido ético e político que aflige. Um péssimo serviço à democracia, sobretudo com a agravante de vir de alguém que proclama aos quatro ventos a defesa da exigência dos valores. Assim não, Isabel Moreira!

RENDIDO À ALEGRIA DO POVO...


Ainda não tinha tido tempo para aqui deixei o registo de um fim de semana quase perfeito em matéria futebolística. Vários resultados concorreram para tal, por cá e por várias outras paragens, mas os contributos mais relevantes terão sido os que vieram do Estádio Nacional (onde o Belenenses bateu surpreendentemente os encarnados da Segunda Circular), de Barcelona (onde o clube local despachou os madrilistas de Lopetegui com uma manita e assim pregou o último prego no caixão deste péssimo treinador de futebol) e de Itália (onde Cristiano Ronaldo parece dar mostras claras de querer voltar à ribalta e de assim pôr de nu a má gestão desportiva de Florentino Pérez). Além do mais, ainda pude ver um grande jogo do United de Mourinho (na boa companhia do fã Sam Legg), um jogo razoavelmente conseguido do FC Porto (com Óliver Torres a renascer das cinzas) e bocados bons do Liverpool e do City, que aliás lideram o campeonato inglês. Nem tudo foi mau...

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A TENSÃO DA HISPANIDADE



(Se ilusões existissem sobre o modo como a Espanha das Autonomias estava politica e sociologicamente assimilada, o aventureirismo do independentismo catalão encarregou-se de acordar todos os demónios da hispanidade. A leitura de uma entrevista com uma alta personalidade do já perdido na memória governo de Adolfo Suaréz, anterior à Constituição de 1978, permite concluir que o culto da hispanidade está vivo.)

A Constituição espanhola que emergiu da transição democrática conseguiu, não sem dificuldades notórias, acomodar a realidade das autonomias, distinguindo designadamente entre as autonomias históricas (País Basco, Catalunha e Galiza) e as não históricas (todas as outras comunidades autónomas). Pretendiam os pais desse esforço constitucional que a unidade espanhola não ficasse comprometida e que no respeito pelas particularidades de um território tão vasto se encontrasse uma outra forma, mais rica e diversa, da hispanidade. Até certo ponto, o modelo foi funcionando sobretudo no plano económico, pois as autonomias contribuíram para uma alocação de recursos ao potencial de competitividade de um território muito diverso que teve reflexos no crescimento económico espanhol. A evolução que refletiu em Espanha os efeitos da crise de 2007-2008 e sobretudo a derrocada do sistema financeiro e bancário espanhol, em que muitas das Comunidades Autónomas estavam alicerçadas (veja-se, por exemplo, a Galiza) precipitou alguma instabilidade e sérias dúvidas sobre o modelo de financiamento autonómico. O agravamento da questão catalã acabou por precipitar todo o resto. E. neste momento, a Espanha das autonomias está, senão comprometida, seriamente abalada.

Neste longo período desde a entrada em vigor da Constituição democrática, o culto da hispanidade apareceu muitas vezes confundida com o “madridismo”, tal é a identificação da hispanidade com a presença e afirmação da capital Madrid. Esta questão teve extensões para o domínio futebolístico (o confronto Real Madrid-Barcelona pode ser lido de muitas maneiras), mas ultimamente o inenarrável Lopetegui encarregou-se de fazer explodir essa conotação do confronto, pois o Real anda pelas ruas da amargura em busca de uma identidade, futebolística entenda-se. Mas como sentimento com expressão na política espanhola, essa hispanidade profunda nunca desapareceu e admitir essa hipótese é um primeiro passo para o erro e para o descalabro.

O diário digital El Español (o mais lido em Espanha) publicou nos últimos dias uma relevante entrevista (link aqui) com um exemplo dessa hispanidade profunda. Vale a pena ler e meditar sobre o que significa a expressão daquela opinião vincada. Trata-se de uma entrevista com Ignacio Camuñas, ministro com 37 anos do governo de Adolfo Suaréz, é hoje com 78 anos um dos representantes mais icónicos do que é designada por Plataforma Espanha Sempre, a qual luta por um Parlamento único, um só Tribunal Supremo e um governo global para toda a Espanha. Há uma fotografia na entrevista do El Español que é reproduzida na abertura deste post. Creio que ela é obtida num dos salões do Hotel Wellington em Madrid onde a entrevista foi realizada. A decoração da fotografia vale por mil fotografias da hispanidade mais profunda. O estilo da poltrona, o enquadramento e até a pose de Camuñas são eloquentes.

O título da entrevista é claramente para fazer estragos: “ A Espanha está doente, o seu cancro é o Estado das Autonomias”.

O que Camuñas nos diz é que ele faz parte dos que não ficaram convencidos com a solução constitucional de 1976: “Nunca me fui embora. Os políticos são como os atores de teatro. Mantêm sempre a sua condição, umas vezes com obra em cartaz e outras não”. Camuñas compara os 5% de peso político do independentismo em 1978 com os atuais 40% e insinua que tal progressão é fruto do próprio modelo territorial e da progressão das autonomias. O que pode ser uma falácia, pois o avanço do independentismo pode ser atribuído à insensibilidade do centralismo da hispanidade mais profunda. O objetivo da Plataforma Espanha Sempre é tão o de obrigar as forças regionalistas e independentistas a procurar a sua expressão num parlamento único, que reduzia brutalmente o seu peso político e de limitar a descentralização á autonomia dos municípios.

Camuñas é muito titubeante quando lhe perguntam como proceder na democracia espanhola à substituição da Espanha das autonomias por uma Espanha unitária. Como concretizar essa transição? E no meio de tantas outras afirmações que o consagram como uma personalidade da direita profunda (curiosa a afirmação de que Suaréz seria hoje um apoiante do CIUDADANOS) Camuñas não consegue esconder que a única força parlamentar existente em Espanha que adotaria essa substituição seriam os representantes do VOX, que estão como se sabe numa deriva de extrema-direita. E ainda mais ficamos convencidos da sua herança de pensamento quanto coloca alguns panos quentes e apaziguadores na deriva do VOX, cujo programa inicial o próprio ajudou a elaborar.

Tenho para mim que um dos piores efeitos do conflito catalão e do aventureirismo sobretudo do Pd de Cat de Puigdemont, que ameaça constituir outra força política para escacar o seu antigo partido, foi de fazer acordar demónios da hispanidade que estavam letárgicos e sem força eleitoral. Não se sabe hoje a real dimensão eleitoral dessa hispanidade anti Espanha das Autonomias. Esse desconhecimento favorece o acordar da letargia. A imagem e pose da fotografia que acompanha a entrevista dizem-nos apenas que ela está lá.