quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A CAPACIDADE DE EMPREENDIMENTO TEM UM NOME




(Não um obituário, que só os consigo escrever com proximidade, mas antes uma reflexão talvez “out of the box” e seguramente teoricamente orientada sobre o Grande Empresário que terminou a sua vida)

Já lá vão mais do que 30 anos (como o tempo passa célere), quando eu e o meu amigo Carlos S. Costa, hoje governador do Banco de Portugal, publicámos na generosa Afrontamento o ainda inacabado “Do Subdesenvolvimento – Vulgatas, Rupturas e Reconsiderações em torno de um Conceito”, dois volumes dos três que o projeto abarcava. Um dos capítulos da investigação que me deu (e creio que também ao meu colega de produção) mais gozo foi o capítulo do Entrepreneurship, que traduzíamos na altura por Função Empresarial. Sem falsa modéstia, antes baseados numa pesquisa bibliométrica, a nossa investigação colocava pioneiramente em Portugal o tema do que mais tarde viria a ser batizado por empreendedorismo, tão banalizado nos últimos tempos. E fazíamo-lo, apresentando a função empresarial como um fator de desenvolvimento (e também de subdesenvolvimento), mostrando que as formas que ela podia revestir deviam ser contextualizadas à luz dos padrões culturais das sociedades, desde os conglomerados empresariais (minuciosamente estudados por Nathaniel Left) até ao mais puro empresário herói-inovador que Schumpeter cunhou para sempre. Mostrávamos na altura que a teoria económica dominante era incapaz de perceber o entrepreneurship e que os modelos de mainstream apagavam o empresário das suas formulações, num dos paradoxos mais intrigantes da economia política. Só os economistas da margem tinham unhas para integrar a função empresarial e, na altura, Schumpeter não tinha sido plenamente redescoberto pela literatura da inovação. Começava na altura a ser claro que os jovens graduados em economia iriam ter um choque brutal quando demandassem os MBA de maior prestígio. Nas suas licenciaturas, o empresário era um fantasma, apagado em equações de otimização e de equilíbrio. Nos MBA eram metralhados com a diferença do que significava a capacidade empresarial. Cheguei a ter ecos de alunos meus que depois de frequentarem esses MBA reconheciam ter ouvido nas nossas aulas algo de isolado no contexto da licenciatura, mas que o MBA lhes tinha mostrado que não tinha sido em vão.

Nesses tempos, era já visível em Portugal, apesar do contravapor que a revolução de Abril tinha determinado, a importância dos chamados capitães da indústria. Maria Filomena Mónica publicará cinco anos mais tarde um artigo na Análise Social, “Capitalistas e Industriais (1870-1914)” - (Análise Social, vol. XXIII (99), 1987, p. 843) em que essa expressão é utilizada. A publicação da sua obra, “Os Grandes Patrões da Indústria Portuguesa” (Dom Quixote) é de 1990.

Nos capitães da indústria eram percetíveis “self-made men”, intuição, liderança, capacidade de identificação e concretização de oportunidades que outros desdenharam ou simplesmente ignoraram, predadores dos incapazes e incompetentes que se passeavam pelos negócios, registos mais ou menos socialmente integradores dos trabalhadores e colaboradores. Todas essas características eram acomodadas pela literatura do entrepreneurship que revelávamos.

Belmiro de Azevedo introduz neste paradigma uma rotura decisiva. Se consultarmos a biografia que Manuel Carvalho publica hoje no Público, percebemos que Belmiro partilha alguns dos traços desses “capitães”, como a indomável determinação gerada a partir de uma situação de desfavorecimento, a vida austera e simples, a intuição das oportunidades, o caráter de predador que tanto tem andado arredado da literatura do entrepreneurship. Mas Belmiro de Azevedo é um dos primeiros a compreender o valor do conhecimento, da educação e da formação, a fortalecer-se através desse reconhecimento e a construir um grupo empresarial que disso tira partido. É por isso um dos primeiros a cavalgar a onda da transferência (ou translação como agora se diz) de conhecimento para o mundo empresarial, sendo por isso impiedoso para a velha Universidade que fugia da proximidade do meio empresarial como gato de água escaldada (seria bom alguém fazer um trabalho de investigação sério sobre a criação da Porto Business School e sobre a influência do empresário nortenho na sua configuração e consolidação).

Alguém com a minha limitada projeção estaria condenado a não se cruzar com a força irradiada por Belmiro de Azevedo. Houve uma tentativa gorada, creio que se a memória não me atraiçoa proporcionada pelo Joaquim Azevedo, de intervir na conceção e organização do Instituto Educativo que a SONAE haveria de instalar na antiga EFANOR à Senhora da Hora. Quis o destino, ou mais propriamente o Professor Rui Guimarães da Faculdade de Engenharia, que me cruzasse com Belmiro de Azevedo, a pedido dele, para participar num grupo de trabalho que o ajudaria a preparar uma intervenção sobre urbanismo e habitação, no âmbito de um convite que a Elisa Ferreira lhe fez para participar numa sessão de discussão pública do tema. E ainda bem. Nessa altura, o Grande Empresário já não estaria, é certo, no apogeu das suas capacidades. Mas ainda estavam lá o pensar diferente e fora da caixa, a independência face ao poder político, qualquer que ele fosse, a procura incessante do conhecimento e do seu valor, a parametrização constante do cálculo económico e do retorno do investimento. Três ou quatro reuniões de trabalho, uma a sós na Fundação, as restantes com o seu corpo de colaboradores mais próximos, foram suficientes para justificar o cruzamento.

O Público talvez represente de forma mais expressiva a tal rotura que Belmiro de Azevedo introduziu face ao paradigma anterior dos Capitães da Indústria, cujo modelo inicial está em linha com a sua tradição de independência face ao poder político. Um projeto destes consolida-se mantendo a pureza das suas origens em função do estilo de direção do jornal, alguém que entenda o sentido da independência e do rigor que lhe vem associado. Tenho sinceras dúvidas que o espírito da atual Direção do jornal esteja à altura dessa exigência. Isto pressupondo que Paulo Azevedo honrará os pergaminhos da herança do Pai.

BELMIRO DE AZEVEDO


A morte de Belmiro de Azevedo corresponde à notícia triste de uma perda para o País, ponto. Tudo quanto se queira acrescentar ao que acima deixo expresso são irrelevâncias essencialmente circunstanciais e mesquinhas. Claro que o Engenheiro Belmiro não era um homem de trato fácil. Claro que o Engenheiro Belmiro não fez tudo bem em vários planos e momentos da sua vida. Claro que o Engenheiro Belmiro não evitava preconcebimentos e enviesamentos. Claro que o Engenheiro Belmiro era teimoso e autoritário. Claro que o Engenheiro Belmiro não era um pensador estruturado e fez frequentemente afirmações infundadas ou acusações injustas, às vezes quase ridículas. Claro.

Mas, tudo visto e ponderado sem necessidade de grandes delongas, Belmiro de Azevedo passou por aí, acertou muito mais do que falhou, fez e deixou obra, foi exemplo a muitos e variados títulos e saiu de cabeça inquestionavelmente levantada. Não me irei estender pelas imensas esferas possíveis de fazer ressaltar, das suas origens humildes do Marco de Canaveses às suas assumidas ligações ao Porto, da Sonae à grande distribuição, da formação como preocupação crescente à fundação do Público, das incursões remuneradoras pela bolsa de valores às tentativas falhadas na área financeira, das telecomunicações ao caso PT, do Colégio Efanor ao mecenato da sua Fundação. Porque talvez a melhor síntese factível num momento destes seja a de apenas observar com critério a sua continuidade filial (vejam-se as similaridades e os antagonismos presentes nos perfis de Paulo, Cláudia e Nuno) e as suas sucessivas levas de continuidades empresariais e gestionárias (os nomes são tão por demais conhecidos quanto insuscetíveis de referenciações e ordenações justas, rigorosas ou até desejáveis).

Acrescento uma curta nota de ordem pessoal: a primeira vez que vi Belmiro de Azevedo foi no velho Campo da Constituição, equipado de azul-e-branco e praticando andebol de onze (culpa do meu pai, que era um ferrinho e que gostava de companhia e de juntar pequenas histórias pessoais ao jogo que se desenrolava à nossa frente). Depois, as vezes e as razões foram diversas, quase sempre marcadas por questões profissionais, políticas ou cívicas. Acho que a última vez que dialogamos foi no Infante de Sagres, quando aceitou participar discreta mas ativamente num debate enquadrado na candidatura à Câmara do Porto que foi protagonizada por Elisa Ferreira contra Rui Rio em 2009.

Termino com um sentimento de incómodo e uma consequente manifestação de protesto. Hoje não era o dia para que um PCP e um BE em fase de objetiva integração no sistema viessem ajustar contas com o capital. Nem para que os jovens turcos do PS se viessem arrogar o direito à crítica, tão alegadamente inteligente quão imaturamente improcedente, ao mais marcante empresário português das últimas décadas. Distinguindo o essencial do acessório, aqui deixo, pois, a minha homenagem a Belmiro de Azevedo...

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

EM NOME DA CAIXA


De tão explorada na desgarrada palavra de tantos, a ideia de um “banco público” vai sendo recorrentemente desgastada pela prática e pelas práticas dos seus sucessivos responsáveis. No caso vertente, e mesmo reconhecendo que estas “Conferências na Caixa” de Paulo Macedo mais não representarão do que um detalhe no oceano da atividade e dos problemas da CGD, aflige e chega quase a incomodar o ínfimo grau de abertura e pluralismo que marcam as escolhas dos organizadores para a discussão (?) de amanhã em torno do tema “Poupança, Investimento e Financiamento da Economia”.

Embora talvez a iniciativa corresponda somente a um pequeno fingimento para enganar alguns tolos e encher o olho a outros, não haveria mesmo ninguém em Portugal que pudesse ser convidado para colocar a debate outras perspetivas que não as dos alinhados participantes que irão desfilar pela Culturgest? Nem haveria alguém que pudesse ser considerado admissível e fosse dotado de uma maior efetividade de conhecimento real, exceção feita nesta dimensão aos experientes Carlos da ex-CMVM? Nem haveria algum académico perdido numa qualquer esquina deste País e a quem se concedesse a função de ser portador de posições de menor ortodoxia? Nem haveria algum político ou parlamentar com algo a dizer de audível na matéria, apesar da sua proximidade à área da chamada “geringonça”?

Confesso que nunca antevira em Paulo Macedo os traços de fechamento e dogmatismo que agora parecem despontar por via do seu patrocínio a um programa como este. Distração não será certamente e os acasos não acontecem assim...

OS DESAFIOS INSONDÁVEIS DA GOVERNAÇÃO




(Numa semana em que a discussão do Orçamento Geral do Estado para 2018 petrificou a ação política, o conflito entre o PS e o Bloco de Esquerda sobre a (não) taxa sobre as energias renováveis acabou por se sobrepor a toda a discussão. Vejo aqui matéria muito relevante para compreendermos os verdadeiros limites da governação no Portugal concreto de hoje)

Se não fora a severidade da seca e a necessidade de intervenção coerente e rigorosa para mitigar os seus efeitos e os ecos que ainda perduram da tragédia dos incêndios, a discussão do OGE para 2018 teria concentrado, aliás como sempre, toda a energia da ação política. Interrogo-me sempre se teria de ser assim. Não tenho a ideia de que o seja noutros países, pelo menos nos que não esgotam a “accountability” da ação pública no orçamento. Sou dos que sustentam que a ausência de uma lógica plurianual na definição das opções de alocação de recursos públicos gera um efeito perverso, favorecendo a lógica utilitarista do ciclo eleitoral e penalizando visões estratégicas a mais largo prazo. Os documentos de enquadramento de médio prazo já se perderam na memória dos portugueses. Assim também se perderam os tímidos ensaios para estabelecer uma lógica de programação plurianual dos investimentos públicos. Os próprios mecanismos de controlo orçamental estrutural vindos das bandas de Bruxelas contribuem para esse afunilamento. O que eu quero essencialmente dizer é que o desproporcionado impacto da discussão do orçamento em Portugal é um sinal do atrofiamento da governação, não me parecendo saudável que as energias (palavra perigosa por estes dias) se esgotem neste instrumento. Até porque ninguém liga pevide à homónima Conta Pública (os valores ex-post, efetivamente gastos). Confesso, ainda, que não tenho grandes esperanças que isto mude.

Considero, por isso, surpreendente que o eco orçamental tenha sido na parte final esmagado pelo conflito das renováveis entre o PS e o BE. Confirma-se que a governação tem sido uma permanente caixinha de surpresas. E a comunicação social, tal como está, agradece reconhecida.

Para situar bem a questão devo realçar que a questão energética em Portugal constitui em meu entender um indicador relevante do estado debilitado da nossa democracia. Como cidadão com formação económica bastante para compreender o problema, tenho de reconhecer que não foi ainda devidamente explicado aos portugueses o racional e a coerência da aposta nas renováveis e principalmente o seu financiamento. Não tenho qualquer problema em reconhecer que não consigo incorporar toda a informação relevante para um juízo esclarecido e rigoroso sobre o sentido da aposta e a culpa não é minha. Os portugueses não têm à sua disposição informação criteriosa que lhes permita fazer o trabalho de casa. Não será certamente por acaso.

E o que é mais estranho é que, nas condições atuais em que a descarbonização das economias entra pelos nossos olhos dentro como uma imperiosa necessidade, apesar do estado de negação climática que por aí campeia, a opção pelas renováveis aparenta ser algo de inevitável. Mas quando começamos a esgravatar para aprofundar o juízo, percebemos que as eólicas, a energia solar e outras mais sofisticadas como a energia das ondas, representam casos diversos. Intui-se que os custos são diferenciados. E quando se entra na questão da subsidiação para compreender as políticas praticadas, as sombras começam a pairar e emerge a falta de clareza das apostas em termos de custos de financiamento. E sabemos ainda que, à paridade de poder de compra, os portugueses pagam relativamente caro a energia. Para complicar, as privatizações foram tudo menos o que deviam ser, claras e por essa via o país tornou-se mais dependente, pasme-se, do capitalismo de estado chinês.

Um grande imbróglio e caros senhores das renováveis vejam se escolhem um personagem mais estimulante para representar a Associação das Empresas Produtoras de Energias Renováveis, pois com prestações como aquela, moderada pela Ana Lourenço, em disputa com Jorge Costa do BE na RTP 3, abandonem a ideia de que vão ser algum dia compreendidos.

Mas para além do incidente político tão a gosto do nosso voyeurismo jornalístico, vejo neste episódio matéria de grande alcance para compreender as limitações da governação no Portugal concreto de hoje. Limitações que deveriam ter uma clara explicitação a bem do escrutínio político e do posicionamento político futuro dos eleitores.

Pelas notícias que vieram a público, António Costa terá em última instância feito o papel de governador pragmático (sabe-se lá que telefonemas ou mensagens terá recebido), mostrando aos seus colegas de governo que a taxa proposta pelo BE iria ter profundas implicações nos investidores internacionais e no seu padrão de opções para Portugal. Implicações que certamente extravasariam o campo das renováveis, dada a abrangência de alguns dos conglomerados empresariais envolvidos. Gostaria de conhecer mais em pormenor tais implicações e as consequências também apregoadas em termos de litigância internacional, que também foram afloradas. Até aqui nada de muito relevante, quem está na governação é para isso mesmo, é para tomar decisões ponderando a abrangência dos seus efeitos. O que parece mais questionável é o facto de na composição do governo essa questão parecer não estar clara, pois terá havido, sujeito a confirmação, representantes que concordavam com a proposta do BE.

Do lado do BE, dir-se-á que as empresas energéticas não são intocáveis e que a subsidiação implícita na não taxa é relevante e penaliza o consumidor. Vital Moreira ficou abespinhado e aproveitou para zurzir no BE repisando a sua velha tese do “radicalismo anti-negócios” e até mereceu honras de citação por parte do tal personagem da Associação das Renováveis. E lá entramos na velha questão das rendas das elétricas que os senhores da Troika tanta dificuldade tiveram em comprometer o governo PAF na sua redução.

Compreendo António Costa e o seu realismo pragmático nesta matéria. Mas conviria que o eleitor português fosse informado das limitações da governação nestas matérias para tomar posição consciente sobre as mesmas. Até porque quem ouvisse o excelente discurso de Pedro Nuno Santos que fechou na Assembleia o debate orçamental, talvez o documento mais elaborado alguma vez apresentado por alguém do PS sobre a governação com apoio parlamentar à esquerda, e o confrontasse com o realismo pragmático do 1º Ministro ficaria algo zonzo, com tendência para a bipolaridade.

Mas alguém disse que a governação em ambiente de geringonça era fácil? Eu não.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

A VIDA A CORRER...


A primeira vez que ouvi falar do Miguel Araújo foi pela boca do Rui Veloso, num elogio rasgado. Mas nunca o tinha visto ao vivo. E foi uma sensação boa a de o ouvir em Lisboa, assumindo-se integralmente tripeiro (já com outros referenciais em relação aos do Carlos Tê: “Brasília, Bazar Paris / Parque Itália, Salão Londres / E Dallas logo ali”, mas também: “O mundo é por aqui, eu vi / É passe do Juary / Quase que podia jurar / Que foi golo de calcanhar / O mundo é por aqui”) no magnífico espaço do Convento do Beato, e numa ocasião tão improvável quanto a do festejo dos 171 anos do Banco de Portugal. E foi o próprio governador que me confidenciou que o talentoso Miguel era um nosso colega economista da Católica e – pasme-se! – sobrinho por afinidade do Armando Morais e Castro (e direto da sua mulher Ana Maria) com quem ambos trabalhamos no velho Gabinete de Estudos do Banco Português do Atlântico. Teias que a vida tece...