quarta-feira, 29 de novembro de 2017

OS DESAFIOS INSONDÁVEIS DA GOVERNAÇÃO




(Numa semana em que a discussão do Orçamento Geral do Estado para 2018 petrificou a ação política, o conflito entre o PS e o Bloco de Esquerda sobre a (não) taxa sobre as energias renováveis acabou por se sobrepor a toda a discussão. Vejo aqui matéria muito relevante para compreendermos os verdadeiros limites da governação no Portugal concreto de hoje)

Se não fora a severidade da seca e a necessidade de intervenção coerente e rigorosa para mitigar os seus efeitos e os ecos que ainda perduram da tragédia dos incêndios, a discussão do OGE para 2018 teria concentrado, aliás como sempre, toda a energia da ação política. Interrogo-me sempre se teria de ser assim. Não tenho a ideia de que o seja noutros países, pelo menos nos que não esgotam a “accountability” da ação pública no orçamento. Sou dos que sustentam que a ausência de uma lógica plurianual na definição das opções de alocação de recursos públicos gera um efeito perverso, favorecendo a lógica utilitarista do ciclo eleitoral e penalizando visões estratégicas a mais largo prazo. Os documentos de enquadramento de médio prazo já se perderam na memória dos portugueses. Assim também se perderam os tímidos ensaios para estabelecer uma lógica de programação plurianual dos investimentos públicos. Os próprios mecanismos de controlo orçamental estrutural vindos das bandas de Bruxelas contribuem para esse afunilamento. O que eu quero essencialmente dizer é que o desproporcionado impacto da discussão do orçamento em Portugal é um sinal do atrofiamento da governação, não me parecendo saudável que as energias (palavra perigosa por estes dias) se esgotem neste instrumento. Até porque ninguém liga pevide à homónima Conta Pública (os valores ex-post, efetivamente gastos). Confesso, ainda, que não tenho grandes esperanças que isto mude.

Considero, por isso, surpreendente que o eco orçamental tenha sido na parte final esmagado pelo conflito das renováveis entre o PS e o BE. Confirma-se que a governação tem sido uma permanente caixinha de surpresas. E a comunicação social, tal como está, agradece reconhecida.

Para situar bem a questão devo realçar que a questão energética em Portugal constitui em meu entender um indicador relevante do estado debilitado da nossa democracia. Como cidadão com formação económica bastante para compreender o problema, tenho de reconhecer que não foi ainda devidamente explicado aos portugueses o racional e a coerência da aposta nas renováveis e principalmente o seu financiamento. Não tenho qualquer problema em reconhecer que não consigo incorporar toda a informação relevante para um juízo esclarecido e rigoroso sobre o sentido da aposta e a culpa não é minha. Os portugueses não têm à sua disposição informação criteriosa que lhes permita fazer o trabalho de casa. Não será certamente por acaso.

E o que é mais estranho é que, nas condições atuais em que a descarbonização das economias entra pelos nossos olhos dentro como uma imperiosa necessidade, apesar do estado de negação climática que por aí campeia, a opção pelas renováveis aparenta ser algo de inevitável. Mas quando começamos a esgravatar para aprofundar o juízo, percebemos que as eólicas, a energia solar e outras mais sofisticadas como a energia das ondas, representam casos diversos. Intui-se que os custos são diferenciados. E quando se entra na questão da subsidiação para compreender as políticas praticadas, as sombras começam a pairar e emerge a falta de clareza das apostas em termos de custos de financiamento. E sabemos ainda que, à paridade de poder de compra, os portugueses pagam relativamente caro a energia. Para complicar, as privatizações foram tudo menos o que deviam ser, claras e por essa via o país tornou-se mais dependente, pasme-se, do capitalismo de estado chinês.

Um grande imbróglio e caros senhores das renováveis vejam se escolhem um personagem mais estimulante para representar a Associação das Empresas Produtoras de Energias Renováveis, pois com prestações como aquela, moderada pela Ana Lourenço, em disputa com Jorge Costa do BE na RTP 3, abandonem a ideia de que vão ser algum dia compreendidos.

Mas para além do incidente político tão a gosto do nosso voyeurismo jornalístico, vejo neste episódio matéria de grande alcance para compreender as limitações da governação no Portugal concreto de hoje. Limitações que deveriam ter uma clara explicitação a bem do escrutínio político e do posicionamento político futuro dos eleitores.

Pelas notícias que vieram a público, António Costa terá em última instância feito o papel de governador pragmático (sabe-se lá que telefonemas ou mensagens terá recebido), mostrando aos seus colegas de governo que a taxa proposta pelo BE iria ter profundas implicações nos investidores internacionais e no seu padrão de opções para Portugal. Implicações que certamente extravasariam o campo das renováveis, dada a abrangência de alguns dos conglomerados empresariais envolvidos. Gostaria de conhecer mais em pormenor tais implicações e as consequências também apregoadas em termos de litigância internacional, que também foram afloradas. Até aqui nada de muito relevante, quem está na governação é para isso mesmo, é para tomar decisões ponderando a abrangência dos seus efeitos. O que parece mais questionável é o facto de na composição do governo essa questão parecer não estar clara, pois terá havido, sujeito a confirmação, representantes que concordavam com a proposta do BE.

Do lado do BE, dir-se-á que as empresas energéticas não são intocáveis e que a subsidiação implícita na não taxa é relevante e penaliza o consumidor. Vital Moreira ficou abespinhado e aproveitou para zurzir no BE repisando a sua velha tese do “radicalismo anti-negócios” e até mereceu honras de citação por parte do tal personagem da Associação das Renováveis. E lá entramos na velha questão das rendas das elétricas que os senhores da Troika tanta dificuldade tiveram em comprometer o governo PAF na sua redução.

Compreendo António Costa e o seu realismo pragmático nesta matéria. Mas conviria que o eleitor português fosse informado das limitações da governação nestas matérias para tomar posição consciente sobre as mesmas. Até porque quem ouvisse o excelente discurso de Pedro Nuno Santos que fechou na Assembleia o debate orçamental, talvez o documento mais elaborado alguma vez apresentado por alguém do PS sobre a governação com apoio parlamentar à esquerda, e o confrontasse com o realismo pragmático do 1º Ministro ficaria algo zonzo, com tendência para a bipolaridade.

Mas alguém disse que a governação em ambiente de geringonça era fácil? Eu não.

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