segunda-feira, 30 de setembro de 2019

SEM PALAVRAS

(Idígoras y Pachi, http://www.elmundo.es)

KURZ DOIS

(Agustin Sciammarella, http://elpais.com)

Foi providencial o escandaloso “Ibiza Affair” que conduziu à queda do governo austríaco de coligação entre os democratas-cristãos do jovenzinho Sebastian Kurz e uma extrema-direita populista e eurocética (liderada por Norbert Hofer e detentora, a partir das eleições de 2017, de 26% dos votos e 51 lugares parlamentares). Aquele estava nitidamente capturado por esta e tem, a partir de ontem, todas as condições para se libertar desse peso.

(Peter Schrank, http://www.economist.com)


Com efeito, Hofer já só passa a deter 30 assentos e Kurz pode assim escolher outras e bem melhores hipóteses de coligação governativa – diz-se que optará por se dividir entre os restantes partidos que subiram além do seu ÖVP (Partido do Povo Austríaco): Grüne (Verdes, os maiores vencedores do ato eleitoral com 12,4% e 26 assentos, contra uma ausência a que estavam sujeitos por via de não terem atingido a percentagem mínima de acesso parlamentar em 2017) e NEOS (Liberais). A esquerda, por seu lado, caiu com alguma violência, entre os social-democratas (SPÖ) a perderem 11 lugares e o partido mais extremista (JETZT) a ser empurrado para fora do Parlamento.

Apesar de tudo, notícias menos más que nos chegam de um país que estava numa deriva perigosa e pode assim voltar a alguma desejável moderação.


(a partir de https://www.politico.com)

CENTENITE



(Tenho para mim que a experiência política de António Costa e o seu conhecimento das práticas do Ministério Público tê-lo ão preparado para antecipar o rebentamento do “affair” Tancos em plena campanha eleitoral. O meu otimismo não se estende, porém, a outras personalidades do PS. E o que é curioso e sinal dos tempos políticos é a importância crescente em relação direta com os danos colaterais de Tancos que Centeno assume como personagem política e como método de ação.)

Não tenho dúvidas de que Rui Rio encontrou provavelmente no assunto de Tancos a motivação que lhe faltava para ir um pouco (ou muito, veremos) mais além do impulso que tivera com o ar relativamente despreocupado com que encarou os primeiros debates. E, mais do que a sua motivação pessoal, os efeitos de Tancos são uma espécie de armadilha para os que imaginaram dentro do PSD que quanto pior melhor para a sua estratégia de construção de uma alternativa à atual liderança. Foram obrigados a parar para pensar, moderar ímpetos, esperar pelos desenvolvimentos e captar melhor o momento político do partido. E se analisarmos bem não há grandes alterações na postura política de Rio. Está lá intacto o seu pensamento básico e linear sobre a maioria dos assuntos, o relativo desprendimento com que se refere a algumas tomadas de posição, a sua eterna perceção de que nunca terá uma boa imprensa, sobretudo pelas bandas de Lisboa (e por isso por que razão valerá a pena facilitar-lhe a vida?), enfim um padrão de comportamento político que se fartou de utilizar na gestão do Porto. E a nossa tentação é julgar esse padrão de comportamento político pelos critérios de quem vê na política algo mais do que a linearidade e o pensamento básico sobre as coisas, quando na verdade existe um padrão de eleitorado que não sabemos quantificar com rigor que gosta do estilo e que o prefere a uma arrogância gratuita. Por isso, estamos condenados a ter uma ida às urnas com fatores exógenos a pesar na decisão. “Les jeux sont faits”, os danos estão em curso, ninguém pode verdadeiramente antecipar os seus efeitos, salvo qualquer sondagem que exista por aí para além da última conhecida que dava naturalmente encurtamento da distância entre o PS e o PSD.

E eis que Centeno regressa à liça, no quadro de um traço particularmente representativo deste último ano político e que consiste na valorização da “Centenite”, como elemento de confiança no rigor da gestão das contas públicas e claramente um piscar de olhos a que algum centro-direita é sensível. Não é preciso ser-se um analista político de excelsa intuição para compreender que a vinda a terreno eleitoral de Centeno, zurzindo na alegada inconsistência de quase cinco mil milhões de euros no programa económico do PSD, prolonga aquele traço anteriormente referido e introduz na campanha uma espécie de contrafogo à incompetência dos que quiseram transformar a recuperação das armas numa operação de elevado interesse nacional. Já haverá pouco tempo para medir a eficácia do contrafogo, o que parece indiscutível é que o fogo inicial em torno de Tancos está ainda longe de um rescaldo normalizador, veja-se o isolamento do PS no Parlamento para admitir ou não a discussão do caso, colocando Ferro Rodrigues perante uma decisão de extrema dificuldade. É preciso não esquecer que, em matéria de contas orçamentais de medidas futuras, quem está na oposição está sempre em inferioridade, a não ser que tenha alimentado espiões dentro da máquina para acumular informação de pormenorização de custos orçamentais.

No fim de contas, o que poderia ser um excelente debate sobre modelos de gestão da coisa pública e da margem de manobra orçamental num país que necessita de realizar a transformação estrutural da sua economia, potenciando sinais e evidências inovadoras e aniquilando inércias e bloqueios está refém das lógicas de fogo e contrafogo, que não é um ambiente propício às ideias mais substanciais.

Mas à esquerda estamos sempre a aprender com o sortilégio da política e muito temos que aprender. Quem anteciparia que o método e a ação Centeno, sinteticamente a minha “Centenite” se transformasse num vetor central da ação política do governo de António Costa. Talvez o slogan da viragem da página de austeridade se tenha consumido depressa e perdido na vertigem das contradições da política. Mas o que é indiscutível é que Centeno ocupou esse espaço e uma parte significativa do eleitorado reconheceu a sua iniciativa e empenho. Talvez não conheçamos o país e o eleitorado que temos, segundo um modelo de representação dessas duas realidades mais em função do que desejaríamos que fossem do que efetivamente são. Ou talvez a ideia de bancarrota tenha penetrado mais fundo do que pensávamos no imaginário prospetivo dos portugueses. Mas tudo isto acontecer numa legislatura em que o PS governou com ajuda preciosa da esquerda parlamentar é de facto um prodígio de novidade política. Imagino que os espanhóis tenham dificuldade em compreender esta criatividade política, em parte em linha com alguns momentos de intensa imaginação política na história do país. Por isso, Tancos foi a dádiva caída do céu para uma direita que estava às aranhas com a “Centenite”. E já agora ficou-me na memória a maneira como Vasco Pulido Valente do alto da sua amargura arrasou o pretenso conhecimento do caso por parte de António Costa: “Muito simples: ninguém vai confessar ao patrão que é um idiota, sobretudo quando se arrisca a ser pública e vergonhosamente despedido”.

DO INVESTIMENTO CHINÊS NO EXTERIOR


(Peter Schrank, https://www.economist.com)

Há dias recolhi no “Financial Times” uma interessante evidência do impacto das difíceis condições de funcionamento com que se depara, interna e externamente, a economia chinesa. O texto intitulava-se “The story of China’s great corporate sell-off” e tinha por mote principal uma pergunta (“Porque é que as empresas chinesas compraram mais de 200 mil milhões de ativos no exterior em 2016 para passarem os anos seguintes a vender muitos deles?”) ligada à seguinte afirmação: “os grupos chineses são vendedores líquidos pela primeira vez, tendo alienado 40 mil milhões de dólares em ativos globais e comprado apenas 35 mil milhões”.

Ora, a resposta reside no ciclo económico e de crédito do país – enquanto em 2015, perante uma forte desaceleração da economia, se assistiu a um afrouxamento da política monetária e a uma desvalorização da moeda nacional, assim se estimulando que os investidores privados retirassem dinheiro do país utilizando uma dívida barata para comprar ativos denominados em dólares (muitos deles estrategicamente inconsequentes), desde 2017, num quadro crescentemente agravado pelas tensões comerciais com os EUA, foi-se observando o fim desse crédito fácil e o início de uma política de regulação bancária contrária às saídas de capitais e limitadora da diversidade antes existente de fontes de liquidez, tudo levando a que progressivamente as empresas tivessem de fazer o roll over dos seus empréstimos e de olhar com outro cuidado para o seu working capital, assim gerando uma situação em que os negócios no exterior foram drasticamente desacelerando e a venda de ativos disparando.

Deste modo, resultou frequentemente posta a nu a inexperiência daqueles compradores iniciais perante operadores de mercado mais batidos e agressivos. Linha em que, como tão eloquentemente nos mostrou o Professor Peter Williamson numa conferência que ministrou na Católica do Porto, ficou patente uma das contradições do capitalismo de Estado chinês: a diversidade de interventores e a sua diferente conexão com a estratégia económica nacional. Recordo também, a este propósito, um texto da “The Economist” em que se explicava que “os agentes locais não ouvem”, que “as montanhas são altas e o imperador está longe” e que até o todo-poderoso Xi Jinping podia ser iludido e classificado como “chairman de tudo, mestre de nada”. Uma matéria a explorar aqui em maior profundidade, um dia destes.

Para concluir, e voltando ao texto em causa, sublinhe-se que o final do mesmo é muito claro mas não menos gerador de dúvidas e receios: stay tuned as more of China’s global portfolio comes back on to the market...

SEM TA(MA)NCOS


Que fique descansado o nosso leitor destas linhas porque prometo que não lhe vou falar de Tancos, um assunto que tresanda de tantas bolandas por que já passou. Apenas não queria deixar passar em claro as incongruências que definem o modo de estar marialva de Rui Rio: porque ele não devia falar em julgamentos de tabacaria e ser ele próprio a fazê-los de seguida, insidiosamente e em vão. Tudo o mais me é estranho e a tudo o mais quero ser indiferente: porque não gosto de tanto tiro de pólvora seca, de tanta manobra de diversão, de tanto oportunismo despudorado, de tanto politicamente correto a prevalecer sobre a coragem da palavra certa. Apenas porque não gosto de nada disso perigosamente a rondar a minha porta ou, recuperando um célebre dito do “almirante sem medo”, porque isso me chateia. Valentemente, aliás.

domingo, 29 de setembro de 2019

PARA QUE CONSTE...

(cartoon em http://www.ojogo.pt)

Apenas porque a maioria da comunicação social nacional o silenciou – ou, quando o referiu, o fez de modo quase desapercebido e completamente acrítico –, aqui vos deixo ao conhecimento que o presidente do Benfica já não tem limites em termos de comportamento público, nem mesmo durante as próprias assembleias gerais do seu clube e perante sócios que pagam as respetivas quotas. Vieira está a tornar-se um símbolo vivo de ostentação de uma certa impunidade que por aí persiste sem fim à vista.

A DÍVIDA PÚBLICA GLOBAL NO TEMPO


Há informações que valem o que valem, mas que valem para alimentação da minha organização mental. É o caso da que hoje aqui vos trago com a devida vénia ao nosso importante municiador que é o “Financial Times” (no caso, através de um trabalho inicialmente desenvolvido pelos serviços de research do Deutsche Bank). Ora vejam só: os níveis da dívida púbica global estão presentemente ao seu mais alto nível de sempre em 150 anos e no tocante a tempos de paz – a única grande ultrapassagem dos atuais níveis (média superior a 70% do PIB para uma amostra representativa das maiores economias do mundo) situa-se nos anos em torno da 2ª Grande Guerra (dos preliminares ao conflito em si e ao seu rescaldo). Uma curiosidade que não deixa de ajudar as pôr algumas coisas em contexto.

DE REGRESSO



(Se tivesse o dom da escrita que José Cardoso Pires esbanjava e se o problema de saúde o justificasse, o que não acontece nos dois casos, poderia talvez dissertar sobre a experiência da primeira catarata que se foi. Como isso não se justifica, apenas cumpre saudar a sensação agradável de regressar à escrita, ao trabalho e a este espaço.)

Com a curiosidade de ter como companheiro de circunstância em intervenção similar o meu amigo José Madureira Pinto (já agora em mãos com uma investigação curiosíssima sobre Kenneth Galbraith e sobre a explicação de como um economista daquela envergadura foi abandonado pela mainstream da economia), a minha experiência de cirurgia oftalmológica teve apenas de diferente e intrigante uma pequena bola de gel ou de ar que ficou a pairar na minha visão. Tal bola tinha uma forma curiosa de cabeça de Mickey Mouse e suas orelhas, que se está a dissipar e é agora apenas uma muito pequenina bola que aguarda a dissipação plena para meu descanso. Para além disso, preparo-me para a esperada adaptação difícil a um desequilíbrio de dioptrias que começará a intensificar-se à medida que o olho intervencionado começar a adaptar-se à lente que colocará a miopia em torno do zero. A gestão desse período vai implicar até à extração da segunda catarata uma gestão cuidada de manter esse desequilíbrio em níveis compatíveis com a capacidade cerebral de o processar.

Enquanto recuperava, dou conta do modo inevitável como a acusação no caso Tancos pode dar uma volta significativa na segunda metade da campanha eleitoral, como seria de prever.

Sempre me irritou o tom algo diletante como o ministro Azeredo Lopes se move na política, mas mais do que isso o que me parece de facto gritante e sinal incontornável dos tempos com que se exercem em Portugal funções de administração do Estado, é o conjunto de almas que na Polícia Judiciária Militar (cuja existência cada vez mais questiono), na GNR e em algumas chefias de gabinete que imaginaram a inconfessável tentativa de recuperação de armas roubadas como uma operação a bem do interesse nacional. Que estas cabeças tenham ousado pensar que tal operação era um ato de serviço público, nem que para isso fosse necessário passar a perna à investigação judicial nos seus trâmites normais já diz muito do desplante com que se exercem cargos desta natureza. Mas que, além disso, tenham ensaiado para cima uma manobra deliberada de proteger o coiro, comprometendo gente política da alta ainda diz mais do estado de coisas a que chegamos. E que tenha havido gente que a nível político tenha dado guarida a essa despudorada tentativa de proteger o coiro ou que, pelo menos, não tenha tentado colocar essa gentalha no seu devido lugar ainda alarga mais o meu espanto.

Por tudo isto, era bem desnecessário que o PS viesse assumir o estatuto de virgem ofendida, até porque quer queiramos quer não o estado deplorável em que se encontrava a segurança do paiol de Tancos deveria ter implicado nesse momento fortes consequências políticas e militares. Não adianta por agora cavalgar a teoria da conspiração do Ministério Público, se é que também por aí também se devem movimentar personalidades bem ilustrativas do deprimente estado moral de exercício das funções públicas. O camarada Jorge Coelho do alto da sua bonomia dirá uma vez mais “Ai estes independentes” e se calhar até tem razão neste caso, pois o independente Azeredo Lopes passou com grande fluidez dos círculos de Rui Moreira para os do PS mantendo sempre o seu tom diletante. Um dia haveria de se estatelar ao comprido. E tem que ser sempre alguém cá de cima …

E conclusão das conclusões, mesmo sob a linha da meta, uma vez mais que se confirma que o que animou a legislatura, mais do que as vicissitudes da geringonça, foram os tiros no pé do PS e do governo que o determinaram.

O que esperar da segunda metade da campanha eleitoral e do dia 6?

Certamente mais contradições do que as que já saltaram para a opinião pública. Enquanto Costa se refugiava no seu já costumeiro princípio de que à justiça o que é da justiça e à política o que é da política, o ex-Ministro Azeredo clamava que se tratava de uma acusação política. Outras contradições certamente emergirão ao arrepio de uma racional avaliação do tema como constrangimento eleitoral surgido em cima da meta. Parece sina, as campanhas são sempre animadas por fatores exógenos às mesmas. Mas são fatores exógenos que não há filtro purificador que os mitigue.

sábado, 28 de setembro de 2019

JACQUES CHIRAC


Nunca fui um apreciador por aí além de Jacques Chirac. Nas minhas incursões francesas, vivenciais ou meramente circunstanciais mas sempre interessadas, raras foram em vezes em que estive do lado dele – afinal, ele fundou o partido gaulista (RPR), foi um polémico maire de Paris durante dezoito anos, coabitou conflitualmente com Mitterrand, candidatou-se à presidência contra este, venceu Jospin nas presidenciais e depois coabitou mal com ele enquanto primeiro-ministro, promoveu um referendo europeu e flirtou sucessivamente com Sarkozy até ser traído – com exceção dos momentos em que desejei que vencesse Le Pen na segunda volta de 2002 e em que valorizei que assumisse aquela sua histórica posição contra a invasão do Iraque. Não obstante, e perante um mundo tão desregrado como o de hoje, Chirac aparece presentemente aos olhos dos da minha geração como alguém que, afinal, até tinha a sua ética política e que esta, apesar de muito própria, acabava por possuir alguns ingredientes dotados de certa solidez. De entre as muitas leituras e obituários que a sua morte nos trouxe (vejam-se abaixo as capas francesas e a do “Financial Times”, a única que o carateriza pelo nickname “buldózer”), tendo a eleger a complementaridade daquele tellement français com aquele un destin, une époque e com aqueloutro une certaine idée de la droite, mas o título do editorial do “Le Monde” é praticamente imbatível enquanto síntese das sínteses: un miroir des contradictions françaises, pois. O que não deixa de constituir um belo elogio.


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A SINA DE VIVER DURAS TRAVESSIAS

(Alberto Benett, Laerte Coutinho e Hubert Aranha, http://folha.uol.com.br)

(Laerte Coutinho, http://folha.uol.com.breCau Gomez, http://atarde.uol.com.br)

Sem querer abusar da paciência dos nossos leitores em relação a uma certa insistência no tema, entendo que continua a valer a pena não perder de vista algumas das manifestações mais sórdidas daquela que é já a mais triste ocorrência que podia ter desabado sobre o povo brasileiro: a eleição de um presidente incompetente, ignorante e insano. Uma escolha, esta, que vai ser paga com língua de palmo pelos próximos anos fora, isto se a mesma não se saldar ainda por retrocessos histórico-civilizacionais ou por conflitos sociais graves. No caso de hoje, o nosso foco é mais circunscrito e limita-se a assinalar a passagem de Bolsonaro pela assembleia da ONU em Nova Iorque e as barbaridades que o homem ali disse ou fez lembrar que antes tinha dito, sendo que o seu real pretexto para a deslocação terá seguramente estado na oportunidade que assim se lhe oferecia para rever o seu idolatrado ídolo Donald Trump e com ele partilhar mais uns breves minutos de subserviente encantamento.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

DUAS BOAS NOTÍCIAS

(José Maria Pérez González – “Peridis”, http://elpais.com)

Quer nos Estados Unidos de Donald Trump quer no Reino Unido de Boris Johnson, as grandes manchetes do dia de ontem trouxeram-nos a esperançosa perceção de que alguma normalidade ainda é passível de poder vir a ser restabelecida naqueles dois grandes países tão doentiamente afetados no seu funcionamento.


O impeachment por traição à nação, que os Democratas decidiram lançar e Nancy Pelosi anunciou, está obviamente longe de ir produzir rapidamente, ou mesmo a um prazo útil, o resultado positivo que seria o afastamento do presidente, mas a abertura do processo e o enfrentamento finalmente assumido em relação às atoardas de Trump é uma boa notícia para a causa da sanidade democrática no mundo.


(Adam Zyglis, https://buffalonews.com)

De modo diferente mas com igual impacto positivo potencial, releva a humilhação a que BoJo foi sujeito na sequência de uma decisão do Supremo Tribunal que veio inverter a suspensão do Parlamento que ele impusera. A palavra unlawful é a claramente dominante mas há também quem fale em ato enganoso, tempestade ou caos – como quer que seja, a vida também não está fácil para este “artista” e nós gostamos disso.



(Emilio Giannelli, http://www.corriere.it)

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

PATRIOTAS E GLOBALISTAS



(No seu estilo que mistura tontice e fanfarronice, Trump produziu por estes dias uma tirada que constitui paradoxalmente um bom tema de reflexão para este blogue. A tirada é a seguinte: “O futuro pertence aos patriotas, não aos globalistas”.)

No seu estilo despudorado de elefante que não ousa entrar em loja de porcelanas e para cúmulo acossado por um processo de impeachment resultante do dossier Presidente da Ucrânia – Família de Joe Biden que ou muito me engana vai servir para reforçar a sua posição junto do eleitorado americano, Donald Trump veio mostrar à mais inequívoca evidência como o populismo capturou a luta contra a globalização. Como o já aqui referi repetidas vezes, a esquerda socialista e social-democrata, inebriada pelo seu namoro com as forças do mercado, perderam a grande oportunidade de uma crítica reformista da globalização. Vários economistas, é bom que o recordemos, produziram contributos relevantes para levar a bom termo essa crítica reformista. Ninguém com poder de intervenção política lhes prestou atenção e se dignou trabalhar em plano mais fino e operacional esses argumentos. Entretanto, os deserdados da globalização e o acantonamento territorial que produziu uma espécie de geografia do descontentamento foram ganhando notoriedade e os discursos nacionalistas  populistas rapidamente compreenderam que tinham ali, à sua mercê, um filão dos bons para explorar e tirar dele dividendos políticos. O populismo de Trump é indissociável dessa geografia de deserdados e descontentes com a globalização.

Assim, com rapidez, a crítica da globalização, justa e necessária atendendo à necessidade de forjar novos rumos, passou a ser capturada por este discurso populista e pela extrema-esquerda mais radical, sobretudo a que se manifesta com violência em momentos como, por exemplo, as grandes reuniões do ritual do G20 e encontros do género. O patriotismo de Trump vende nessas geografias e rende-lhe dividendos que tem manejado a seu belo prazer, mesmo que as consequências mais profundas das suas ações de guerra comercial tendem a virar-se contra esses mesmos grupos de descontentes. O futuro pertence aos patriotas e não aos globalistas é um slogan que encaixa na perfeição com a sua estratégia de exploração dos deserdados e descontentes.

O slogan não é em si a tragédia. Essa está na incapacidade da esquerda para construir uma abordagem reformista dos rumos da globalização, a partir do momento em que, bem cedo relativamente a estes acontecimentos, Dani Rodrik mostrou que a globalização não conseguia concretizar em simultâneo o respeito pelo estado-nação (ainda fonte exclusiva de políticas públicas), uma maior integração económica e o respeito pela democracia e pela barganha social nos mercados de trabalho.

Quando a esquerda ouve melhor as sereias do mercado do que o conhecimento consistente estão criadas as condições para recuos civilizacionais, como está a acontecer.

Nota pessoal: as cataratas na nossa visão são uma maleita da idade e das partidas naturais da biologia. Amanhã, o meu médico e amigo Paulo Rufino Ribeiro irá tratar da primeira (a outra espera a sua vez) e simultaneamente aproveitar para corrigir a miopia. Por isso é provável que a muito curto prazo não esteja em condições de olhar com insistência a página branca de um ecrã de computador. Espero poder, por esta via, olhar e compreender melhor este mundo complexo que nos rodeia. Alguma ausência que aconteça neste espaço está justificada.