quarta-feira, 31 de julho de 2019

TIROS NO PÉ E NÃO SÓ



(À medida que caminhamos para o fim da legislatura, confirma-se a ideia de que os problemas do Governo não foram essencialmente provocados pelos parceiros de acordo parlamentar ou pela oposição, mas antes pelos enredos em que se deixou mergulhar. E não me venham com a explicação de que estava em curso a mudança da lei. A ligeireza com que membros do Governo equacionam as incompatibilidades incomoda todo aquele que tem um mínimo de bom senso)

Quem andar minimamente atento na política sabe que um dos ónus mais elevados a que um político se submete em Portugal está para além da tensão com que o quotidiano desses agentes políticos se transforma. Estou a falar dos custos e sacrifícios a que um governante com alguns escrúpulos de integridade e transparência submete a sua família, não apenas em termos de escrutínio das suas vidas pessoais, privadas e profissionais, mas também em termos das incompatibilidades de assunção de negócios com o Estado.

Como é óbvio nos casos que foram tornados públicos na sequência da trapalhada das golas para o kit de segurança antifogos ninguém coloca em causa a probidade dos ministros e secretários de Estado envolvidos e muito menos a sugestão de que terá havido viciação de atos públicos. Mas a verdade é que havia uma lei da Assembleia da República conhecida de todos que proíbe familiares próximos de fornecer serviços ao Estado, quaisquer que sejam os processos de contratualização. Dos casos divulgados há situações para todos os gostos e feitios, seguramente com gradações no incumprimento. Como é óbvio, um fornecimento de bens ou serviços por parte de um familiar de governante a uma Universidade ou Politécnico não se situa no mesmo patamar de um fornecimento a um ministério, não aquele sob tutela do familiar em causa mas de um outro.

Em tudo isto, o que mais choca é ver a ministra da Justiça envolvida neste rocambolesco processo. O Professor Eduardo Paz Ferreira não é uma pessoa qualquer, é alguém com uma elevada credibilidade e valor intelectual, pelo que me custa de sobremaneira vê-lo a infringir a referida lei das incompatibilidades, a não ser que se tenha precavido, ele ou o Ministério da Administração Interna, procurando saber se o poderia fazer ao abrigo de qualquer exceção. Cá entre nós, os juristas e mais os advogados são peritos em definir exceções na lei para si próprios. Sei lá se Eduardo Paz Ferreira terá beneficiado de alguma exceção ou autorização específica invocando a ideia de parecer, estudo ou coisa parecida.

Mas para mim a situação criada diz bem da ligeireza e leviandade com que os agentes políticos e governantes tratam estas coisas em sede própria e para cúmulo envolvendo um jurista e a sua mulher que por acaso é ministra da Justiça. Claro que ninguém está a sugerir que Francisca Van Dunen possa ter influenciado a decisão do Ministério da Administração Interna. Estou certo que não é isso que está em causa. O que está em causa é a ligeireza com que estas coisas das incompatibilidades são tratadas.

Confirma-se, assim, a propensão doentia do Governo para atirar nos próprios pés ou em qualquer elemento do corpo que esteja mais à mão. De facto, retirando o descontrolo de situação provocado por um sindicato não-alinhado (o dos motoristas de viaturas que transportam matérias perigosas) e assessorado juridicamente por um advogado do tempo da lei seca nos EUA, praticamente todas as restantes incomodidades políticas foram provocadas por erros próprios, da inábil desvalorização do investimento público infraestrutural que valeu uma ida para o Parlamento Europeu até Tancos, passando pelas várias tragédias dos incêndios, a matriz é a mesma. O pé foi metido na argola, desvaloriza-se, depois corrige-se e finalmente pede-se a interpretação da lei.


ESPANHA: OS MAUS DA FITA

(Voz de Galicia)


(A vinheta humorística de Pinto&Chinto traz-nos uma Espanha de partida para férias ainda sem orçamento para 2019 e às voltas com o labirinto político em que está mergulhada na sequência das últimas eleições legislativas. Neste tipo de situações, não me atrevo a antecipar com que ânimo os espanhóis estarão a preparar malas, viaturas e a habitação que se deixa por uns tempos.)

Estes longos períodos de espera para dar uma sequência concreta a um ato eleitoral em termos de governação representam sempre uma faca de dois gumes para o bem ou mal da democracia. Por um lado, podem gerar inquietações, indeterminação quanto baste, diferimento de decisões de vida, de consumo, de investimento, o que pode ser negativo para a conjuntura económica, mas positivo do ponto de vista de um desassossego democrático virtuoso. Mas, por outro lado, podem gerar uma perigosa indiferença. Afinal isto vai funcionando, existe um governo em funções ainda que debilitado e manietado na sua ação, as empresas e os serviços públicos não deixam de existir por isso. Daí à perceção da dispensabilidade da barganha política pode ser um passo e isso é nefasto para a democracia.

Do meu ângulo de observação, as conversas com alguns amigos espanhóis (essencialmente galegos) e o acompanhamento da imprensa espanhola mais representativa, tenho-me dedicado a tentar identificar quem são os destinatários principais dos vitupérios dirigidos a políticos no ativo e com poder de decisão culpabilizando-os do impasse criado.

Como seria previsível, esses destinatários variam muito consoante a origem desses vitupérios.

Situemo-nos no ponto de vista da opinião pública espanhola mais nacionalista, ciosa do “espanholismo”. Para esse quadrante, os maus da fita são seguramente Pedro Sánchez e algumas lideranças autonómicas, visando sobretudo o primeiro pela ousadia de admitir que o seu governo possa ser decidido pelo voto dos que, segundo a sua opinião, querem desconstruir a velha Espanha. O comportamento político de Sánchez facilita o alvo. De facto, muitas indefinidas negociações que Sánchez promove com autonomistas e independentistas vão muito para além do seu modelo de Espanha das nações ou regiões, matéria que sobretudo depois da deriva catalã provoca pesadas indigestões nos que prezam a unidade da Espanha. Curiosamente, o PODEMOS de Pablo Iglésias (por mais atribuladas que estejam as suas querelas internas) suscita menos azedumes e vitupérios políticos do que o próprio Sánchez.

Do lado dos socialistas, o mau da fita tem variado em função das suas próprias negociações de acordos parlamentares ou de governo. Rivera, líder do CIUDADANOS, sobretudo a partir do momento em que guinou claramente à direita e rejeitou qualquer conversa com o PSOE, foi quem atiçou os comentários mais agressivos. De certa maneira pelo seu próprio comportamento e pelo que induz no PP de Pablo Casado, foi Rivera que abriu a porta ao VOX do ponto de vista de acordos de governo. Ultimamente, à medida que Pablo Iglésias do PODEMOS conduzia as negociações com o PSOE como se de uma guerrilha urbana se tratasse, é claramente o mau da fita para o PSOE.


Resta a perspetiva de uma direita mais esclarecida, que eu costumo associar ao diário on line El Español e em parte ao El Mundo. Apesar de eu próprio encontrar similaridades óbvias entre o estilo do El Español e do Observador, arrisco-me a avançar com a ideia de que ideologicamente não se trata de “direitas coincidentes”. Diria que no Observador residem mais elementos de uma direita “alt-right” do que no El Español. Neste último, predomina uma visão modernizante da economia que tendo a associar ao modo como as correntes Opus Dei estão enraizadas na economia espanhola. Ora para o El Español, representado sobretudo pelo pensamento do seu Diretor, Pedro J. Ramirez, antigo jornalista do El Mundo, os resultados apontam inequivocamente para a necessidade de um acordo PSOE-CIUDADANOS, permitindo o ajustamento do PP e colocando na defensiva os independentismos. Em absoluta coerência com os primeiros comentários de Pedro J. Ramírez sobre os resultados das eleições espanholas, o jornal tem identificado Rivera como o mau da fita por se ter esquivado a esse compromisso pela estabilidade política em Espanha. E não têm sido meigos. É uma posição que ganha progressivamente mais adeptos. É o caso do meu amigo Ernesto Pombo da Voz de Galicia que não hesita em invocar o pensamento de um dos fundadores do CIUDADANOS, que prezo bastante, o constitucionalista Franscesc de Carreras, para classificar Rivera como alguém que já foi um “jovem maduro e responsável” para se transformar num “adolescente caprichoso”. Os espanhóis não brincam com estas coisas e chamam às coisas pelos seus nomes, sem subterfúgios.

Com alguma surpresa para mim, o PP tem estado relativamente á margem dos maus da fita. Pablo Casado parece ter aprendido com a queda eleitoral.

Entretanto, já com as férias a clamar por banhos e repouso, os bascos mais radicais afrontam a opinião pública espanhola recebendo em ombros alguns dos presos ETA libertados e aparentemente sem arrependimento. É mais uma acha para a fogueira que um dia destes queimará alguém.


Finalmente, pelas bandas da Galiza, o líder da Xunta de Galicia, Alberto Núñez Feijoo, em pose de estadista e já a velar pelas futuras eleições autonómicas nas quais, se se apresentar, enfrentará uma dura oposição do PSOE, encontrou-se com a jovem e promissora militante do PSOE galego e alcaldesa da Corunha, Inés Rey, para desbloquear projetos estratégicos pendentes naquele município.

Talvez as férias de Sánchez sejam mais complicadas do que as de Marcelo. O espectro de novas eleições fará girar a roleta, embora o sempre acusado de falta de imparcialidade centro de sondagens espanhol CIS desse ontem a maioria absoluta a Sánchez acaso houvesse novas eleições.

PREVISÍVEL E PROVAVELMENTE AUTOFÁGICO

(E este é apenas o primeiro grupo que foi a debate!)


(As eleições americanas representarão um teste crucial à viabilidade de derrota do populismo plutocrático instalado. O modo como os Democratas estão a organizar a sua campanha interna que os conduzirá à nomeação do adversário de Trump só aparentemente pode ser considerado um elogio à diversidade. Mandam as boas regras que as primárias devam constituir uma alavanca para a campanha final. Ora não me parece que isso esteja a acontecer.)

Por estes dias, as hostes dos Democratas americanos estão em profunda agitação com a realização dos debates televisivos entre a caterva de candidatos potenciais. O número de candidatos é gigantesco, com nomes que, para alguém que se considera minimamente informado sobre a política americana, não querem dizer rigorosamente nada e de cujos nomes e carreiras políticas não é fácil encontrar rasto nos jornais de referência como o New York Times e o Washington Post ou de revistas como a The Atlantic ou a New Yorker. Há quem interprete esta caterva de candidatos como um hino à diversidade e riqueza de perspetivas do espectro político Democrata. Não sou tão otimista como esses observadores.

Por mais disléxico, plutocrata ou racista que se apresente, o candidato Trump tem a enorme vantagem de estar no poder e já não falo na sua gigantesca e despudorada máquina de informação que não hesita em mentir, viciar informação ou estigmatizar para alcançar os seus fins. Assim sendo, as primárias entre os Democratas deveriam assegurar um equilíbrio mais razoável entre a diversidade de perspetivas e a necessidade de focar o eleitorado num conjunto de nomes referenciados e com ideias tão claras e mobilizadoras quanto o possível. Pela primeira série de debates ontem realizada, percebe-se que vamos ter cá um granel de respeito. Tudo leva a crer que o segundo debate irá alinhar pelo mesmo diapasão, ainda que possamos dizer que a presença no primeiro de Bernie Sanders e de Elizabeth Warren lhe concede alguma notoriedade, suspeitando que o segundo irá contrapor sobretudo Joe Biden e Kamala Harris.

De todo o granel em efervescência ressalta todavia uma regularidade que vai consistir na luta titânica entre os candidatos mais ousados e à esquerda (seguramente Bernie Sanders e Elizabeth Warren e veremos se Kamala Harris alinhará por esta orientação) e a linha de maior moderação. O debate vai ser duro e justifica-se. Já nas últimas primárias que deram a vitória a Hillary face a Bernie, a contradição entre a ala mais socialista e a mais moderada foi gritante. Porém, a evolução da economia e da sociedade americana com Trump tendeu a agudizar esse confronto. Isto significa que as primárias entre os Democratas não vão servir para catapultar um candidato para o confronto com Trump, mas antes para clarificar a posição ideológica do partido. Este facto não parece contornável, tamanha é a necessidade de clarificação de posições em domínios como a saúde, a luta contra a pobreza e a falta de elevador social da sociedade americana, a política fiscal e a perspetiva sobre a desigualdade e os fatores que a têm agravado. Mas o facto de ser incontornável não significa que não beneficie Trump e, em meu entender, beneficia muito. Só depois das primárias concluídas e com o candidato escolhido vai ser possível unir de novo o eleitorado potencial dos Democratas. Não é necessário ser politólogo para compreender que quanto mais agudizadas forem as primárias mais difícil será reunir as hostes num objetivo comum, derrotar Trump. E creio que vão ser bem agudas e agressivas. Basta recordar que Hillary não conseguiu atrair todos os simpatizantes de Bernie Sanders, embora me pareça que desta vez possa ser mais fácil tapar narizes, fechar olhos e ignorar consciências para votar em quem os Democratas elejam para derrotar Trump. Como sabemos não basta “derrotar” Trump em votos, há que o conseguir em colégio eleitoral e o modelo americano protege os menos audazes politicamente.

Para já o debate Democrata parece polarizado entre a ala mais socialista e a que não ousa pronunciar sequer a palavra. Tenho sérias dúvidas de que entre estas duas orientações possa haver alguma aproximação e com isso contribuir para que as primárias sejam já disputadas em rota de afrontamento a Trump. Enquanto permanecer em palco esta caterva de candidatos será difícil promover essa aproximação. Quando esse número for drasticamente reduzido, veremos. O risco é o afrontamento com Trump ser concretizado com um subaproveitamento do potencial eleitoral pela razão de parte do eleitorado Democrata, mais à esquerda ou mais moderado, não se rever na oferta.