A demissão de Pedro Costa da presidência da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, de que hoje tomamos conhecimento, é bem reveladora de quanto raramente os filhos de profissionais e políticos bem-sucedidos (ou tidos por isso) evidenciam dotes de competência, abnegação e resiliência para o exercício de uma carreira que têm por adquirida e devidamente abençoada. A carta de demissão é paradigmática de um tipo de autojustificação (“sinto que cheguei ao meu limite face ao silêncio da Câmara Municipal”, assim se procurando ilustrar uma ideia vaga de “falta de condições pessoais e políticas”) que resulta, em última instância, numa desconsideração dos cidadãos eleitores e numa manifesta indolência para a preparação e concretização dos esforços necessários ao enfrentamento das adversidades que sempre marcam presença na dita e em quase todas as atividades. Mesmo que Carlos Moedas possa ser um presidente parcial, sectário, arrogante e altivo, alguém no seu perfeito juízo político se pode demitir por causa de um tipo de baixo porte e voz fininha que acaba de assinar um livro intitulado “Liderar com as Pessoas” para ilustrar a singularidade e excelência de uma liderança autárquica tida por jamais vista nos dias de vida deste retângulo à beira-mar plantado?
terça-feira, 30 de abril de 2024
SANTOS ERROS E OMISSÕES E UM PROVEDOR QUE VIRÁ DE MOTA
Um breve apontamento neste final de abril para tocar ao de leve o tema do dia: a demissão, por alegada incapacidade de gestão, da Mesa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa presidida por Ana Jorge. O tema tem e terá os mais diversos contornos, alguns que certamente nunca conheceremos na sua verdadeira expressão (p.e., o da participação de Nuninho na mal-amanhada internacionalização da atividade da Casa com destino ao Brasil). Mas, tirando esse e outros importantes detalhes, o caso merece menção pelo seu caráter revelador do Portugal que vamos tendo.
Refiro-me ao modo atabalhoado como o anterior governo geriu o processo ao tempo de Edmundo Martinho e subsequentemente ao seu afastamento (já não referindo as escolhas subjacentes à nomeação da equipa de Ana Jorge, que talvez tivesse carecido de uma mais cuidadosa mão em termos de valências e competências), refiro-me ao modo como a gestão instalada não preparou a chegada de um novo governo que manifestamente lhe não iria facilitar a vida (to say the least) e refiro-me ao modo deselegante e sôfrego como o atual governo se livrou de Ana Jorge e seus colegas (evidenciando uma sede de ocupação de lugares que já não devia ser tolerada numa sociedade democrática pretensamente moderna, rapidamente passando ao lado de uma análise cuidada e objetiva dos factos e dos procedimentos para privilegiar um combate partidário impróprio e embrutecedor protagonizado por um sempre pronto Hugo Soares e logo negativamente ratificado pelo socialista Tiago Barbosa Ribeiro).
Entretanto, e enquanto esta gente se entretém com ataques pessoais descabelados e nomeações que não enganam (parece que será Mota Soares o senhor Provedor que se segue), os rapazes do Chega enchem as televisões e aproveitam o espaço que assim lhes é oferecido para procurarem dar mostras de um sentido de Estado que, perante a estranha falta dele exibida pelas forças do Bloco Central, até quase parece assentar-lhes na perfeição.
O DESATINO DA AIMA OU UMA AIMA SEM ALMA
(O segundo governo de António Costa tem em meu entender grossas culpas no cartório pela rápida erosão da maioria absoluta que o suportava. Isto não significa que não devamos reconhecer que a demissão de Costa e a sua queda tenham sido devidas à incompetência ou algo mais do Ministério Público, atiçando um fogo tudo indica desnecessário. Sempre achei que mais do que perder tempo com os inúmeros casos e casinhos em que o Governo desleixadamente se deixou envolver e manietar interessava sobretudo criticar bem fundo aspetos de natureza estrutural da governação. Entre esses aspetos de incidência mais estrutural, um dos que mais atraiu a minha análise crítica foi a evidente contradição e desconcerto entre a retórica do discurso político sobre a imigração e a prática da sua concretização. Sem questionar o direito que assistia à maioria absoluta de querer encontrar uma saída para o problema delicado do SEF, avolumado ainda em tempos do ex-Ministro Cabrita, sempre achei que seria uma crónica anunciada de desatino preparar no joelho a criação de uma nova instituição, precisamente no furacão da intensificação dos processos de imigração em Portugal. Apanhada em contramão numa candidatura ao Parlamento Europeu depois de ter um assento na Assembleia da República, Ana Catarina Mendes acusou o toque e surge hoje no Público a justificar-se invocando sobretudo a questão do tempo (“AIMA. Dar tempo ao tempo”) para se defender do coro de críticas que a problemática instalação da AIMA tem suscitado. Em meu entender, o desatino não tem que ver com o curto tempo de instalação da nova instituição. Mas ACM parece querer dizer que afinal o que são seis meses na vida de uma promissora nova instituição. É a esta questão que dedico o post de hoje.)
Nas condições de declínio demográfico progressivo em que a sociedade portuguesa se encontra, podemos com segurança antever que, pelo menos em três décadas até que um ressurgimento da taxa de fertilidade possa começar a mitigar esse declínio, a imigração tem de ser entendida como um fenómeno de dinamismo que o crescimento natural da população já não consegue assegurar praticamente em todo o território nacional. Por isso, costumo associar à palavra imigração três verbos, cada qual o de mais difícil concretização: atrair, acolher e integrar.
A dimensão atrair é sobretudo influenciada pela penalização que a imagem global de país traz a este tema. Várias contradições existem nesta dimensão. Portugal tem uma imagem global positiva como destino de reformas mais ou menos douradas ou, pelo menos, de montante compatível com as condições de vida em Portugal. Ainda este fim de semana os jornais mencionavam a atração recente que o território continental tem suscitado junto de casais americanos para sua instalação após a sua retirada do mercado de trabalho. O imobiliário de topo agradece, mesmo sem vistos gold. Mas uma coisa é a imagem global para reformados estrangeiros com boas condições materiais de vida e seduzidos pela segurança existente, outra coisa bem diferente é a imagem para se iniciar uma vida ativa de raiz. Nesta dimensão, a imagem global de país é ainda penalizadora e o melhor indicador é a utilização de Portugal para chegar a outros destinos como a Alemanha. Quer isto significar que a atração de novos residentes a partir do estrangeiro tem de ser necessariamente segmentada. Não há uma política de atração de imigrantes em geral, mas antes uma política para segmentos específicos. Os reformados com boas condições de vida ajudarão por certo muitas comunidades a manter um nível mínimo de energia humana, mas o segmento da população ativa é seguramente o que precisamos para viabilizar o tal dinamismo que o crescimento natural já não permite.
A ação da AIMA inscreve-se, porém, dominantemente, na dimensão do acolhimento da imigração. Um bom e eficaz acolhimento é uma condição necessária, embora não suficiente, para uma boa integração. Criar uma nova instituição como a AIMA no meio de um furacão de chegada ao país de imigrantes não é propriamente uma medida inteligente e sobretudo tendo em conta que a experiência do SEF dos últimos tempos tinha sido traumática e lesiva da imagem global do país. A justificação de ACM acusa este toque e refere amplamente esta transição difícil para clamar que é injusta a acusação que saiu das declarações do Presidente da República de inépcia política. Ora, é precisamente por essa transição difícil poder ter sido facilmente antecipável que a posição de ACM é ingénua, apesar de vir junta a uma posição de princípio com a qual não poderia estar mais de acordo: “A criação da AIMA é a declinação prática de uma visão do mundo: quem emigra ou pretende emigrar não pode ser visto como um suspeito, como um caso de política, mas como um cidadão estrangeiro”.
Parece que ACM não conhece a nossa burocracia administrativa. Tendo em consta a sua inscrição generalizada em todos os estádios do processo de decisão, seis meses são de facto um tempo bastante curto. Mas são também uma eternidade para quem vive na prática os desafios do acolhimento. ACM devia saber, melhor do que ninguém, que quanto mais demoradas forem os processos e etapas da legalização mais vulnerável ficará essa população aos esquemas mais ou menos mafiosos que condicionam a sua vinda e instalação.
Como será de prever, a nova tutela política sobre a AIMA protagonizada por Leitão Amaro é combustível fértil para lançar a nova instituição nos meandros da luta política mais ignóbil. Mas ACM deveria saber que nos tempos que vivemos a retórica política dos bons princípios em matéria de acolhimento de imigração não chega e não se basta a si própria. Não se arranca para uma transformação institucional como a que está implícita na criação da AIMA sem que esteja assegurada um conjunto inicial de realizações e de condições criadas. Esperar que por magia a burocracia endémica se dissolva se não é inépcia é pelo menos ingenuidade política. E ACM não é propriamente uma neófita. Esperava mais robustez.
EVIDÊNCIAS DE UM NOVO SALTO ECONÓMICO CHINÊS
Acima, vários gráficos e títulos provenientes de um excelente trabalho que encontrei nas páginas do “Le Monde”. Permitindo sublinhar quanto a China, a despeito das inúmeras contradições internas que conhece, volta a carregar no pedal com vista a um novo salto qualitativo da sua afirmação económica (uma aposta diretamente proveniente do inédito terceiro mandato de Xi Jinping e da sua assim conseguida perpetuação no poder), sempre com a componente industrial (cujo valor de produção é já estimado em 31% do total à escala global e surge, muito significativamente, cada vez mais intensiva em tecnologia e cada vez mais assente em setores de ponta – com o made in China do vestuário, dos brinquedos, da eletrónica de consumo e dos telemóveis a ceder gradualmente o lugar de predominante arrastamento aos painéis solares, às turbinas eólicas, às baterias de lítio e às viaturas elétricas) e o distorcido favorecimento da máquina exportadora no posto de comando. Um modelo que é uma cada vez mais óbvia fonte de conflitos comerciais junto dos grandes concorrentes internacionais, embora registando estes uma diferenciada capacidade de resposta (entre um já visível decoupling nas relações com os EUA, por via do protecionismo aduaneiro de Trump e do gigantesco plano IRA de subvenções à indústria de Biden, e uma persistente dependência europeia, com o défice comercial face à China a quase triplicar na última década e a assim contrariar os insistentes apelos a uma reindustrialização europeia que continua insípida). A economia mundial a mudar a olhos vistos, ou seja, a observância de uma mudança já absolutamente indesmentível e profundamente abaladora (laminadora, escrevem os autores do trabalho) dos alicerces que em tempos pareciam capazes de fazer da nossa Europa uma potencial potência global.
segunda-feira, 29 de abril de 2024
E SE MARCELO REPARASSE OS MOÇAMBICANOS?
Tenho sobre a matéria algumas ideias claras e outras mais difusas. Mas de algo estou perfeitamente seguro: o modo como o Presidente da República Portuguesa tem vindo a abordar a chamada “questão das reparações e restituições” corresponde a um exercício de narcisismo e demagogia profundamente lamentável. Ouvindo hoje um podcast protagonizado pelo historiador João Pedro Marques (“A História do Dia” no “Observador”), consciencializei melhor o grau de absurdo do que tenta empurrar a ignorância e a irresponsabilidade de Marcelo (apercebi-me, aliás, de que este iniciara a sua evangelização pessoal aquando da visita de Lula ao nosso País no ano transato), seja quanto ao que múltiplas inversões já custaram no devido tempo histórico (p.e., a abolição da escravatura não se fez por um estalar de dedos mas através de indemnizações a proprietários) seja quanto à dimensão do que pode estar em causa no cálculo dos estudos mais ideologicamente arreigados (p.e., as reparações de Portugal apenas ao Brasil chegam a ser estimadas em 20 mil milhões de dólares, qualquer coisa como cerca de 8% do PIB nacional). E, apesar de eu ser um tipo mais da macro do que da micro (porque o todo não é a mera soma das partes), não pude deixar de me sentir atraído pela ilação que se poderia retirar, em última instância, do fácil argumento “apure-se e pague-se” que sai da boca de Marcelo: tendo em conta que Baltazar Rebelo de Sousa foi ministro do Ultramar de Salazar e governador-geral de Moçambique já com Caetano, que razoável iniciativa não seria a de alguém vir sugerir ao nosso Marcelo que começasse por dar o exemplo (que se diz vir de cima!) e pedisse o apuramento das suas (e de seus irmãos) responsabilidades pessoais pelos crimes e atrocidades direta ou indiretamente promovidas pelo seu distinto progenitor?
TEMAS PARA AS EUROPEIAS
(Exemplo da vasta documentação existente sobre o modelo social europeu)
(Europeísta convicto, mas cético quanto aos rumos que, por vezes, alguns diretórios europeus imprimem ao projeto europeu, frágil e vulnerável aos inúmeros Cavalos de Troia que se perfilam no seu interior, costumo sentir uma enorme deceção quanto ao real impacto das eleições europeias em termos de progressão das ideias para uma União mais coerente. Bem sei que para muita gente a questão europeia é ainda uma abstração e que o olhar das realidades nacionais continua a ser o critério segundo o qual os cidadãos prospetivam o seu lugar na Europa. Obviamente que não sou ingénuo ao ponto de ignorar a espessura das realidades nacionais, tanto mais que a palavra coesão é ainda uma miragem e que o desenvolvimento desigual existente e em alguns casos reforçado não pode ser ignorado. Mas tal como nas questões regionais e locais defendo que temos direito a uma perspetiva dos desafios nacionais vistos à luz da nossa vivência concreta no território, por mais longínquo que ele seja, também coerentemente defendo que nós portugueses temos o direito e o dever de a partir da nossa realidade construirmos a nossa própria perspetiva da construção da União. Esta perspetiva não se confunde de modo algum com o vício e a deriva de utilizar as eleições europeias como peça exclusiva de combate polítiqueiro nacional. Penso que nesse sentido a escolha dos candidatos a um lugar no Parlamento Europeu deveria constituir a prova inicial de força no cumprimento desse objetivo. Deveríamos, assim, escolher gente que nos dê confiança de que terão uma presença ativa em Bruxelas e Estrasburgo. Ora, à luz desse critério, PS e PSD deveriam ter uma outra ambição na escolha dos seus candidatos, a começar pela separação rigorosa do quem foi candidato à Assembleia da República e quem o será ao Parlamento Europeu. À luz desse critério, por exemplo, a escolha do PS é enganosa e em nada beneficia a confiança democrática nas escolhas políticas. É neste sentido que iniciarei a partir de hoje uma espécie de nova sub-secção deste blogue, dedicado a temas que na minha perspetiva deveriam animar o debate das Europeias. Para isso, irei em busca de contributos de pensamento que valha a pena aqui coligir.)
Estou certo que a tribuna do Social Europe poderá ajudar-me nesta tarefa. É um espaço progressista que aposta na perspetiva crítica da União Europeia à luz de valores e causas que simultaneamente a projetem no mundo e renovem o seu modelo social, que continua a ser o seu principal fator de diferenciação no mundo.
O artigo que o Professor Jan Zielonka (Universidades de Veneza e Oxford) inicia do meu ponto de vista essa série, colocando-se numa perspetiva que relaciona o potencial da Europa com a desorientação e o descontrolo que grassam pelo mundo. Como se precisássemos de um abrigo consistente face a essas perturbações, as propostas de reforma das instituições europeias inscrevem-se nessa procura de um porto seguro.
A perturbação mundial que marca o contexto é caracterizada por Zielonka como uma situação em que se perdeu o controlo dos processos que a exacerbaram. A enorme polarização que hoje divide ferozmente as forças políticas democráticas, mais à esquerda ou mais à direita, e as forças que cavalgam o populismo, por vezes para lá dos limites da tolerância democrática, determina a impossibilidade prática de avançar com intervenções políticas que suscitem o apoio popular generalizado.
O confronto entre os modelos autocráticos e autoritários que pululam pelo mundo e a democracia é uma luta arriscada principalmente se a governação democrática continuar a padecer de falhas intrínsecas. Não custa muito admitir que no centro das falhas de governação democrática se encontra a incapacidade até agora revelada de combater de raiz as causas da referida polarização. Por isso, Zielonka propõe novos pactos de governação, novos contratos sociais ajustados aos tempos de perturbação que vivemos: “A governação democrática não pode ser feita apenas para as pessoas, tem de ser também concretizada pelas pessoas”.
Pode questionar-se que novo contrato social precisa a Europa? Esta é das tais questões em que uma abordagem abstrata e desinserida das realidades nacionais de avanço do modelo social europeu não conduzirá a nada de frutífero, senão mesmo podendo conduzir a Europa a um beco sem saída. Em estudo (THE EUROPEAN SOCIAL MODEL IN CRISIS) em que tive oportunidade de participar para a Organização Internacional do Trabalho (OIT, Genève) sobre a crise do modelo social europeu, foi fácil aperceber-me da extrema heterogeneidade dos avanços do modelo social na União. Por isso, a procura de um novo contrato social europeu capaz de ganhar de novo a confiança dos eleitores nesse projeto exige um debate fortemente participado entre todas as realidades do modelo social europeu. Conduzi-lo em abstrato e ignorando os pontos de partida e os diferentes graus de insatisfação para com as suas realizações geraria mais desconfiança e não a confiança pretendida.
Sabemos que no plano da comparação das realizações mais avançadas do modelo com outras realidades nacionais, designadamente a dos EUA, ela é francamente favorável à Europa. Em estudo recente do IMK - Hans Böckler Stiftung, a comparação entre o modelo alemão e americano é francamente favorável ao primeiro, reportado a 2022: “não ponderando as diferentes dimensões, a Alemanha é bastante forte relativamente em cinco áreas: ambiente, equilíbrio entre trabalho e condições de vida, saúde, segurança e género, enquanto os EUA são superiores em matéria de rendimentos das famílias e consumo per capita.”
O problema é que a Alemanha não reproduz a situação europeia, podendo quando muito ser entendida como um caminho possível e mesmo assim teríamos de a comparar com o modelo social escandinavo.
Mas uma coisa é certa. Aqui está uma questão que deveria animar todas as eleições europeias nos diferentes países: como construir um novo contrato social na União Europeia? A diversidade dos contextos eleitorais estaria assegurada, mas ao serviço de uma questão mais ampla, a da defesa do projeto europeu e a da reconstrução do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.