segunda-feira, 29 de abril de 2024

E SE MARCELO REPARASSE OS MOÇAMBICANOS?

 
(Luís Afonso, “Bartoon”, https://www.publico.pt) 

Tenho sobre a matéria algumas ideias claras e outras mais difusas. Mas de algo estou perfeitamente seguro: o modo como o Presidente da República Portuguesa tem vindo a abordar a chamada “questão das reparações e restituições” corresponde a um exercício de narcisismo e demagogia profundamente lamentável. Ouvindo hoje um podcast protagonizado pelo historiador João Pedro Marques (“A História do Dia” no “Observador”), consciencializei melhor o grau de absurdo do que tenta empurrar a ignorância e a irresponsabilidade de Marcelo (apercebi-me, aliás, de que este iniciara a sua evangelização pessoal aquando da visita de Lula ao nosso País no ano transato), seja quanto ao que múltiplas inversões já custaram no devido tempo histórico (p.e., a abolição da escravatura não se fez por um estalar de dedos mas através de indemnizações a proprietários) seja quanto à dimensão do que pode estar em causa no cálculo dos estudos mais ideologicamente arreigados (p.e., as reparações de Portugal apenas ao Brasil chegam a ser estimadas em 20 mil milhões de dólares, qualquer coisa como cerca de 8% do PIB nacional). E, apesar de eu ser um tipo mais da macro do que da micro (porque o todo não é a mera soma das partes), não pude deixar de me sentir atraído pela ilação que se poderia retirar, em última instância, do fácil argumento “apure-se e pague-se” que sai da boca de Marcelo: tendo em conta que Baltazar Rebelo de Sousa foi ministro do Ultramar de Salazar e governador-geral de Moçambique já com Caetano, que razoável iniciativa não seria a de alguém vir sugerir ao nosso Marcelo que começasse por dar o exemplo (que se diz vir de cima!) e pedisse o apuramento das suas (e de seus irmãos) responsabilidades pessoais pelos crimes e atrocidades direta ou indiretamente promovidas pelo seu distinto progenitor?

TEMAS PARA AS EUROPEIAS


(Exemplo da vasta documentação existente sobre o modelo social europeu)

(Europeísta convicto, mas cético quanto aos rumos que, por vezes, alguns diretórios europeus imprimem ao projeto europeu, frágil e vulnerável aos inúmeros Cavalos de Troia que se perfilam no seu interior, costumo sentir uma enorme deceção quanto ao real impacto das eleições europeias em termos de progressão das ideias para uma União mais coerente. Bem sei que para muita gente a questão europeia é ainda uma abstração e que o olhar das realidades nacionais continua a ser o critério segundo o qual os cidadãos prospetivam o seu lugar na Europa. Obviamente que não sou ingénuo ao ponto de ignorar a espessura das realidades nacionais, tanto mais que a palavra coesão é ainda uma miragem e que o desenvolvimento desigual existente e em alguns casos reforçado não pode ser ignorado. Mas tal como nas questões regionais e locais defendo que temos direito a uma perspetiva dos desafios nacionais vistos à luz da nossa vivência concreta no território, por mais longínquo que ele seja, também coerentemente defendo que nós portugueses temos o direito e o dever de a partir da nossa realidade construirmos a nossa própria perspetiva da construção da União. Esta perspetiva não se confunde de modo algum com o vício e a deriva de utilizar as eleições europeias como peça exclusiva de combate polítiqueiro nacional. Penso que nesse sentido a escolha dos candidatos a um lugar no Parlamento Europeu deveria constituir a prova inicial de força no cumprimento desse objetivo. Deveríamos, assim, escolher gente que nos dê confiança de que terão uma presença ativa em Bruxelas e Estrasburgo. Ora, à luz desse critério, PS e PSD deveriam ter uma outra ambição na escolha dos seus candidatos, a começar pela separação rigorosa do quem foi candidato à Assembleia da República e quem o será ao Parlamento Europeu. À luz desse critério, por exemplo, a escolha do PS é enganosa e em nada beneficia a confiança democrática nas escolhas políticas. É neste sentido que iniciarei a partir de hoje uma espécie de nova sub-secção deste blogue, dedicado a temas que na minha perspetiva deveriam animar o debate das Europeias. Para isso, irei em busca de contributos de pensamento que valha a pena aqui coligir.)

Estou certo que a tribuna do Social Europe poderá ajudar-me nesta tarefa. É um espaço progressista que aposta na perspetiva crítica da União Europeia à luz de valores e causas que simultaneamente a projetem no mundo e renovem o seu modelo social, que continua a ser o seu principal fator de diferenciação no mundo.

O artigo que o Professor Jan Zielonka (Universidades de Veneza e Oxford) inicia do meu ponto de vista essa série, colocando-se numa perspetiva que relaciona o potencial da Europa com a desorientação e o descontrolo que grassam pelo mundo. Como se precisássemos de um abrigo consistente face a essas perturbações, as propostas de reforma das instituições europeias inscrevem-se nessa procura de um porto seguro.

A perturbação mundial que marca o contexto é caracterizada por Zielonka como uma situação em que se perdeu o controlo dos processos que a exacerbaram. A enorme polarização que hoje divide ferozmente as forças políticas democráticas, mais à esquerda ou mais à direita, e as forças que cavalgam o populismo, por vezes para lá dos limites da tolerância democrática, determina a impossibilidade prática de avançar com intervenções políticas que suscitem o apoio popular generalizado.

O confronto entre os modelos autocráticos e autoritários que pululam pelo mundo e a democracia é uma luta arriscada principalmente se a governação democrática continuar a padecer de falhas intrínsecas. Não custa muito admitir que no centro das falhas de governação democrática se encontra a incapacidade até agora revelada de combater de raiz as causas da referida polarização. Por isso, Zielonka propõe novos pactos de governação, novos contratos sociais ajustados aos tempos de perturbação que vivemos: “A governação democrática não pode ser feita apenas para as pessoas, tem de ser também concretizada pelas pessoas”.

Pode questionar-se que novo contrato social precisa a Europa? Esta é das tais questões em que uma abordagem abstrata e desinserida das realidades nacionais de avanço do modelo social europeu não conduzirá a nada de frutífero, senão mesmo podendo conduzir a Europa a um beco sem saída. Em estudo (THE EUROPEAN SOCIAL MODEL IN CRISIS) em que tive oportunidade de participar para a Organização Internacional do Trabalho (OIT, Genève) sobre a crise do modelo social europeu, foi fácil aperceber-me da extrema heterogeneidade dos avanços do modelo social na União. Por isso, a procura de um novo contrato social europeu capaz de ganhar de novo a confiança dos eleitores nesse projeto exige um debate fortemente participado entre todas as realidades do modelo social europeu. Conduzi-lo em abstrato e ignorando os pontos de partida e os diferentes graus de insatisfação para com as suas realizações geraria mais desconfiança e não a confiança pretendida.

Sabemos que no plano da comparação das realizações mais avançadas do modelo com outras realidades nacionais, designadamente a dos EUA, ela é francamente favorável à Europa. Em estudo recente do IMK - Hans Böckler Stiftung, a comparação entre o modelo alemão e americano é francamente favorável ao primeiro, reportado a 2022: “não ponderando as diferentes dimensões, a Alemanha é bastante forte relativamente em cinco áreas: ambiente, equilíbrio entre trabalho e condições de vida, saúde, segurança e género, enquanto os EUA são superiores em matéria de rendimentos das famílias e consumo per capita.”

O problema é que a Alemanha não reproduz a situação europeia, podendo quando muito ser entendida como um caminho possível e mesmo assim teríamos de a comparar com o modelo social escandinavo.

Mas uma coisa é certa. Aqui está uma questão que deveria animar todas as eleições europeias nos diferentes países: como construir um novo contrato social na União Europeia? A diversidade dos contextos eleitorais estaria assegurada, mas ao serviço de uma questão mais ampla, a da defesa do projeto europeu e a da reconstrução do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

 

domingo, 28 de abril de 2024

UM DIA DE EMOÇÕES FORTES RUMO A CAMINHOS NOVOS

Vão certamente perdoar-me os nossos leitores que compreendem menos bem estas minhas derivas futebolísticas, mas a causa é desta vez maior. Durante o dia de ontem, os sócios do Futebol Clube do Porto puseram termo a um reinado presidencial de 42 anos que, tendo sido glorioso em inúmeras dimensões, dava agora provas preocupantes e manifestas de risco em termos de apodrecimento e captura. Não sei se o resultado obtido por André Villas-Boas, traduzido em mais de 80% dos votos, terá sido mais esmagador ou mais arrasador... Sei, isso sei, que foi libertador e uma expressão cabal de um modo de ser e estar que a História de há muito reconhece à nossa Cidade e Região.


Lamento que Jorge Nuno Pinto da Costa se tenha deixado envolver em crescendo num plano inclinado que entristece e confunde todos os portistas, mas a escolha foi sua em última instância já que não lhe faltaram avisos e sugestões para que saísse com grandeza do lugar que ocupou com incomparável sucesso. Como lamento que Sérgio Conceição, o verdadeiro suporte da competitividade da equipa nestes anos recentes, se tenha deixado envolver por um entorno que mais não pretendia do que tentar aproveitar-se do seu prestígio junto dos sócios. Como lamento, por fim, que outros próximos não tenham sabido consciencializar o que se ia tornando inapelável ou, noutros casos, se tenham mantido reféns de pequenos interesses pessoais que só relevam junto de quem não privilegie os valores maiores. O 27 de abril de 2024 ficará na história do Futebol Clube do Porto como um marco de viragem e esperança de renovação e reafirmação, caberá agora ao novo Presidente e sua equipa trabalhar duro no sentido de assim vir a suceder.


(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

METADE-METADE, ALDINA DE NOVO

 


(Sim, já escrevi sobre isto. A Aldina Duarte destaca-se para mim no fado português, a força daquela Voz e a coerência das suas convicções impressionam-me. Tenho a perceção de que não é uma figura de plástico ou construída pelas torrentes de comunicação, é alguma coisa que irrompe com tanta clareza como é a sua dicção exemplar. Beatriz da Conceição diria que tem autenticidade e mais do que tudo a sua relação com a poesia, ver por exemplo, a cumplicidade com Maria Rosário Pedreira, traz ao fado é à canção popular o reencontro com palavras que se bastam a si próprias e às quais a voz de Aldina dá uma outra profundidade. Os discos de Aldina nunca me dececionaram e caminho sempre para eles expectante de que irei ser de novo surpreendido. Foi nessa perspetiva que caminhei para o Metade-Metade no qual Aldina propõe uma inusitada parceria com a Capicua. E não me arrependi …)

O texto que Capicua assina no folheto que acompanha o Metade-Metade é também ele um excelente elemento de contexto para ouvir este disco. Escreve Capicua que, dividida entre a vontade de aceitar o convite de Aldina e a hesitação em responder de forma positiva, que aceitou apenas com a condição de que ela lhe ensinasse os segredos dos poemas do fado, entendendo este com um templo e Aldina a sua guardiã. O texto abre-nos o caminho da aprendizagem que aquela colaboração representou e constitui por isso uma leitura obrigatória para compreendermos o produto final e esse está ao nível ou supera mesmo o que de melhor Aldina nos trouxe, ao longo de uma carreira onde se respira coerência. Viola, guitarra portuguesa e uma divina surpresa, a harpa de Ana Isabel Dias e não esquecendo o piano de Joana Sá, as palavras de Capicua e a Voz telúrica de Aldina iluminaram-me a manhã de Domingo.

Imaginem a densidade das palavras destes excertos das suas faixas que mais gosto neste disco empoderadas pela voz de Aldina:

A Dúvida

Eu não sei se é do tempo

Se é do vento o meu lamento

Se é do ventre esta frieza

Respirei o ar das pedras

Das veredas e das serras

Fiz os trilhos da tristeza

(…)

Tentativa

Fui feliz como a floresta

Pedi bis depois da festa

Mas é tarde e já estou só

Fui a fita que deu laço

Fui o nó que ficou lasso

Sei que tudo acaba em pó

 

Fui a sede da voragem

Fui a febre da viagem

Que acaba antes do fim

Queria ser um fogo posto

Num dia de sol em Agosto

Para te queimares em mim

(…)

Arrepiante, não?

 

sábado, 27 de abril de 2024

A TRANSFORMAÇÃO TALVEZ IRREVERSÍVEL DO TRABALHO HÍBRIDO

 

(Sempre atenta à contemporaneidade, a revista The Economist dedica esta semana a sua edição ao trabalho remoto e à sua mais recente transformação em trabalho híbrido. Pego no tema como uma manifestação das grandes tendências de transformação do mercado de trabalho, especialmente no âmbito do que essa transformação oculta de possíveis contradições entre múltiplos objetivos e interesses. A partir de algo que emergiu como consequência direta da resiliência adaptativa do mercado de trabalho à pandemia, o trabalho remoto e híbrido passaram a estar enquadrados por uma multiplicidade de perspetivas – simplificando, envolvendo questões por exemplo a sustentabilidade dos padrões de mobilidade nas sociedades de mercado, a produtividade e a organização dos processos de trabalho, a felicidade e o bem-estar nos processos de trabalho, o interesse dos empregadores e do capital, a socialização e tantas mais dimensões. Embora o universo das empresas e dos proprietários do seu capital não o tenham perspetivado como tal, o trabalho híbrido corre o risco de se transformar numa importante conquista do mundo do trabalho e, por isso, dificilmente revertível para o regresso ao velho escritório. E é nessa perspetiva que o tema é fascinante. A sua importância subsiste resistindo a uma eventual conclusão que, do ponto de vista das empresas que abriram essa possibilidade aos seus colaboradores, até pode contrariar o mito de que a produtividade aumenta …)

Todos temos a perceção, realista porque sabemos quem somos, de que a experiência do trabalho remoto ou híbrido em Portugal não apresenta nem de perto nem de longe as dimensões e proporções que já assumiu noutras economias. A prospetiva transformada em realidade que encontramos em alguns jornais e revistas internacionais, principalmente americanos, de situações pungentes de cidades e de zonas urbanas específicas esvaziadas de serviços pelo motivo do encerramento de alguns escritórios e debanda de quadros e trabalhadores para o trabalho em suas casas não é propriamente a praia do trabalho híbrido em Portugal. A nossa situação é mais mitigada como seria previsível, sobretudo pelo facto de que uma grande parte do nosso aparelho produtivo não é propriamente campo fértil para a desmaterialização da ideia de escritório e do posto de trabalho associado.

Parto para este tema com a noção de que sou parte interessada na matéria. Os meus quatro dias de trabalho na semana repartem-se entre dois dias no escritório e outros dois em casa, com exceção de algumas semanas em que o trabalho exterior, fora do Porto ou implicando deslocações a Lisboa, vem complicar esta programação. Não tenho qualquer dúvida, porém, em reconhecer que a minha qualidade de vida ou bem-estar no trabalho melhorou significativamente com esta disposição. Como costumo dizer, dois dias em que posso evitar o infernal nó de Francos e as obras na Avenida da Boavista representam uma notória melhoria de bem-estar, não ignorando também a redução das externalidades negativas da minha mobilidade casa-trabalho.

Ser parte interessada na matéria não significa ignorar problemas concretos de organização que o trabalho híbrido traz inequivocamente aos coletivos empresariais. Bem sei que boas e bem-pensantes almas tendem a considerar a oposição entre a valorização do presencial e a do digital on line como uma manifestação dos tempos modernos da oposição entre o tradicionalismo conservador e a modernidade digital. Posso bem com essa pressão social e sou dos que entendo que, por mais ousadas que sejam as transformações digitais, a riqueza do face-to-face presencial é em algumas situações e matérias insubstituível. Isto não quer dizer que não reconheça existirem múltiplas atividades coletivas que podem ser realizadas com maior eficiência a nível digital. Todos os dias o comprovo na minha atividade profissional. Mas a elasticidade dessa substituição não é infinita.

Mas o que me parece é que o trabalho híbrido, devidamente contratualizado, entrou no domínio das conquistas sociais e, por isso, seria necessário um desastroso retrocesso social para deixar de o inscrever nas modernas relações de trabalho. O que significa que no meu modesto entender se trata de uma transformação à qual as empresas e as organizações em geral devem necessariamente adaptar-se, encontrando as fórmulas mais eficientes e imaginativas de as integrar na organização dos processos de trabalho. Por exemplo, o mundo da cooperação de recursos nos processos de trabalho, raiz essencial da competência coletiva das organizações, tem de ser reinventado no plano da coexistência do presencial e do digital.

A edição especial do Economist é importante para tipificarmos o estado da arte que, como habitualmente, nunca é o estado da arte adaptado à realidade portuguesa, obrigando a uma leitura contextualizada para as nossas condições e resistindo assim a importações acríticas do que foi observado em mundos mais avançados nessa experimentação.

Da edição do Economist destaco sobretudo o artigo publicado na secção Free Exchange onde se desconstrói o mito de que o trabalho remoto faz aumentar a produtividade. E, acertadamente em meu entender, o fundamento para essa desconstrução está no sempre necessário retorno aos “basics”: “Recorrendo à terminologia de Ronald Coase, um economista que se focou na estrutura das empresas, todos estes problemas (do trabalho híbrido e remoto) implicam um aumento nos custos de coordenação, transformando a empresa coletiva em algo de mais pesado”.

Pois, é isso mesmo. Ignorar que o trabalho remoto ou híbrido representa um problema organizacional equivaleria a uma pura ingenuidade e numa economia de mercado as ingenuidades pagam-se regra geral bastante caro.