(Bastou um simples livro de correligionários saudosistas e bafientos apresentados por um tal Senhor dos Passos, coelho de cauda escondida, para se concluir que afinal eu tinha razão. O conservadorismo mais bafiento e reacionário da sociedade portuguesa, saudosos de tempos idos e regra geral os mais contraditórios entre convicções e prática na vida real, encarou os 50 deputados do Chega como a oportunidade ideal para afirmar estamos vivos e cinquenta anos de abril não chegaram para aniquilar as nossas mais profundas convicções. Entretanto, toda esta algazarra de bafientos a sair do armário, coexistiu com a apresentação do Programa do Governo de Montenegro. Devo confessar que já não tenho grande pachorra para acompanhar os meandros e argumentos do esgrima político entre Montenegro e Pedro Nuno Santos, ambos ainda longe de um posicionamento consentâneo com o panorama que a Assembleia da República, com a sua composição inédita, lhes proporciona. Vou por isso tentar concentrar-me, na medida do possível, em matérias que estejam para além desse esgrima formal. A questão da habitação é uma delas.)
Foi relativamente fácil perceber que a escolha de Pinto Luz para o Ministério das Infraestruturas e da Habitação era, por si só, esclarecedora quanto à abordagem que o novo governo iria dedicar a uma das questões mais prementes que a classe média e particularmente os jovens em início de vida familiar e profissional enfrentam.
Assim, para consumo imediato o que o Governo nos propõe é reforçar a sua disposição para um ideário mais liberal (está no seu direito), anulando de certo modo a vigilância que o governo de António Costa tinha finalmente decidido realizar aos excessos e extremos do alojamento local e anulando também as medidas mais controversas do desequilibrado pacote Mais Habitação que a ex-ministra da pasta (uma das grandes vulnerabilidades do governo de Costa) tinha lançado, designadamente o arrendamento compulsivo ou forçado.
Perante tanto fogo de artifício, não se compreende que raio de abordagem à problemática da habitação tem o governo de Montenegro. Parece existir a estranha convicção de que o mercado aguarda apenas alguns sinais políticos (o choque fiscal?) e de decisão para se libertar e começar a produzir habitação na magnitude e tipologias de oferta que a procura tem sinalizado. O que parece uma avaliação bastante tonta dos constrangimentos que a oferta tem enfrentado, a privada que se movimenta em torno da procura gerada pelos rendimentos dos mais abastados (e já não estou a pensar nos vistos gold) e a pública que, apesar da oferenda aos municípios proporcionada pelo PRR que financia até fins de 2026 habitação a 100% no quadro do Programa 1º Direito.
No caso da resposta privada até agora proporcionada, ela não resolve o problema das necessidades da classe média e jovens em início de vida familiar e profissional. É uma oferta direcionada e que se nutre da desigualdade na distribuição do rendimento. Resolve o problema aos mais abastados e estrangeiros endinheirados, tão só.
Quanto à habitação de promoção pública, o Programa 1º Direito não é propriamente um programa fácil (avaliei-o há pouco tempo para o IRHU): exige a identificação rigorosa de famílias e indivíduos a viver em habitações indignas, evolui no quadro de estratégias locais de habitação obrigatórias a elaborar pelos municípios e depara-se neste momento com problemas de construção civil suficientemente disponível para responder às previsões de investimento que o PRR veio engrossar, com a benesse dos 100% de financiamento público europeu.
Sempre foi para mim um fator de interrogação porque é que o governo de António Costa concentrou o esforço de investimento em habitação pública praticamente apenas nos municípios. Tal como está hoje dimensionado, o desvio entre oferta e procura de habitação, repito sobretudo para as classes médias e jovens, exigiria um esforço muito mais amplo de investimento público, materializado em programas de grande envergadura, com encarregados de missão específicos que estivessem para lá da ação relativamente limitada que o IHRU oferece. Só programas dessa envergadura são capazes de oferecer ao mercado habitacional sinais suficientemente expressivos de quais são as prioridades de investimento a satisfazer. Sabemos que o estado da arte da indústria da construção civil não é o apropriado para uma resposta fácil e atempada. Existe escassez de empresas e de mão-de-obra e a construção civil parece ainda não ter estabilizado qual o tipo de mão de obra migrante que melhor servirá as suas necessidades. As complexidades burocráticas podem ser amenizadas, mas não dá obviamente para transformar o processo de licenciamento e de construção num processo sem qualquer regulação e controlo. Até 2026, o PRR encarrega-se por si só de acrescentar exigências burocráticas ao processo.
A dimensão da transformação de património público não ocupado e suscetível de transformação funcional de uso para habitação continua a ser uma possibilidade, mas em matéria de números concretos gera um outro mistério de explicação difícil. Porque não avançaram os projetos anunciados?
Neste contexto particularmente difícil de pressão de procura cada vez mais insistente e de oferta cada vez mais constrangida e inibida de respostas rápidas e em magnitude que se vejam, a ideia peregrina de que o mercado aguarda apenas sinais para se libertar e conduzir a iniciativa privada à resolução do problema só pode ser para nos atirar areia para os olhos.
E o que fica claro é que a personagem Pinto Luz não é o ator indicado para assumir essa exigência. As medidas de entrada em cena do seu programa de atuação falam por si dessa desconformidade.
Quanto mais penso nesta questão, mais se me enraíza a ideia de que são totalmente incompreensíveis os erros de abordagem do PS em matéria de política de habitação, sobretudo abdicando de capitalizar a experiência e conhecimento que o partido acumulou nos 50 anos de democracia.
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