(A expressão não é minha, mas da jornalistaTeresa de Sousa. Mas não encontrei melhor forma para descrever a minha interpretação dos acontecimentos deste fim de semana. Pode dizer-se que ainda que inusitada pela magnitude de drones e mísseis envolvidos, a retaliação do Irão face à destruição do seu consulado na Síria sobre o território israelita pode considerar-se uma retaliação “educada” e bastante seletiva. Ainda assim, face à magnitude dos lançamentos que terão sido feitos, o modo como as defesas israelitas terão funcionado acaba por constituir um enorme fracasso para a retaliação iraniana. O absurdo e paradoxal em tudo isto, no que ao cidadão pouco informado parecerá uma guerra orquestrada, é que uma simples retaliação por mais seletiva e por mais inofensiva em termos de danos impostos a Israel que o tenha sido coloca o mundo perante o abismo possível de um erro de cálculo. Ou seja, o mundo a partir deste último fim de semana, se já estava perigoso quanto baste, está agora bastante mais imprevisível e claramente dependente de um possível erro de cálculo de qualquer um dos intervenientes. Neste momento, a jogada iraniana, claramente para salvar a face de um ataque difícil de explicar internamente, cometeu a proeza de juntar de novo em torno de Israel um coro imenso de países e de vozes que se haviam afastado, incomodados pela leviandade bélica do primeiro-Ministro israelita em Gaza e na Cijordânia. Mesmo que possamos considerar a retaliação iraniana como algo de calculado e seletivo, a verdade é que a sua decisão de retaliar colocou de novo Israel com o jogo na mão e os EUA de Biden numa posição cada vez mais difícil para ganhar alguma dianteira na tarefa ciclópica da sua reeleição.)
E o mais dramático é que o possível erro de cálculo pode acontecer a partir de várias fontes. Em primeiro lugar, ele pode acontecer dos lados de Israel apesar de todos os esforços de contenção da administração americana. Netanyahu pode ter a tentação de atacar o Irão e se isso acontecer então a probabilidade de escalamento e de transformação das retaliações em guerra aberta é elevadíssima. Por outro lado, se as autoridades iranianas procuraram circunscrever os efeitos da sua retaliação e avisar antecipadamente que ela iria ocorrer, já não é nada seguro que os chamados movimentos de proximidade a Teerão instalados no Iraque, no Líbano, no Iémen ou na própria Síria não incorram na tentação de castigar Israel.
Foi também possível verificar que o êxito israelita na defesa face ao ataque iraniano se deveu também em grande parte, não apenas à evolução de meios e de qualidade da sua própria defesa, mas também à participação nesse processo dos EUA, do Reino Unido, da França e da própria Jordânia, intervenção claramente facilitada pelo facto do Irão ter comunicado com alguma antecedência que iria retaliar atacando o território israelita. Isto sugere que Israel não poderá exagerar na tese da sua autonomia de defesa.
A cascata de danos indiretos começa a não ter fim. Os acontecimentos de Gaza retiraram centralidade aos da Ucrânia e colocaram esta num estado de grande fragilidade. Os acontecimentos deste fim de semana tenderão, por sua vez, a colocar de novo Gaza e a Cijordânia com baixa notoriedade no incomodar de consciências, precipitando os Palestinianos num sofrimento e abandono indescritíveis.
Custa ver uma sociedade milenária como o Irão, com um elevado potencial de conhecimento e de abertura para o mundo (veja-se a qualidade do seu cinema), continuar refém de um regime teocrático que a subjuga e lhe retira toda a criatividade possível. Praticamente todas as hipóteses de uma transformação endógena estão hoje bloqueadas pelas malhas do belicismo em que o regime teocrático se deixou envolver. Do ponto de vista religioso, o xiismo está hoje numa posição bem mais delicada do que no passado, sobretudo porque o seu adversário mortal, o sunismo, não menos autoritário, parece diplomaticamente revelar mais flexibilidade.
Os próximos dias serão de importância crucial para antecipar o que pode vir por aí e o que vier colocará obviamente o mundo na antecâmara de algo bem pior. O mundo estará dependente sobretudo do modo como os EUA de Biden conseguirão ou não imprimir contenção a uma possível contra-retaliação de Israel. Entretanto, por estes dias, Trump estará na barra do tribunal, por isso com pouca disponibilidade para animar o seu amigo Netanyahu.
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