quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

DIÁSPORAS DA DESISTÊNCIA



Não tenho especial afeição e pachorra por revistas do ano, eleições de personalidades ou outras coisas que tais no momento em que viramos para 2015, não sabemos ainda se com mar esperançoso, que só pode ser assegurada pela alternativa de governação que Costa possa protagonizar e pelo engenho do nosso sistema de PME, sobretudo daquele que sabe vender nos mercados globais.
Mas há um fenómeno que marca para mim o ano de 2014, sem ter sido propriamente gerado este ano, embora com trajetória reforçada.
Estou a referir-me à diáspora dos qualificados, ou seja da geração que beneficiou da aposta no reforço das qualificações, iniciada sobretudo com o governo de Guterres e que constitui um dos mais poderosos efeitos perversos dinâmicos que decorrem da combinação dos problemas estruturais que o nosso modelo de crescimento enfrenta com o rude golpe das políticas de austeridade.
Nesta diáspora dos qualificados, e a reportagem de hoje do Público confirma essa minha intuição, há que ter em conta duas realidades. Por um lado, há a diáspora da necessidade, ou seja aquela que resulta dos aspetos viciosos do mercado de trabalho e da impossibilidade de muitas das qualificações adquiridas encontrarem oferta de emprego compatível. É relevante, perversa e representa também uma perda de capital humano, reportando o seu retorno para outros países. Mas a realidade mais recente evidencia inequivocamente uma outra categoria de diáspora dos qualificados. Trata-se da diáspora da desistência. Desistência de quê? Do país, internalizando a ideia de que o futuro não virá. Uma das histórias de vida mais marcantes da reportagem do Público, uma médica anestesista com larga experiência anterior em Portugal de liderança e atualmente Diretora de uma maternidade em França, refere que o país perdeu a sua afirmação com o alinhamento pela globalização. Considero que este grupo está a aumentar, apesar da crise europeia. É que há crises e crises e a nossa combina um conjunto muito complexo de layers. Muitos dos qualificados quando partem já intuíram essa desistência. Outros partem ainda com o regresso no horizonte, mas o contacto com a realidade de acolhimento leva à confirmação do inevitável, a desistência do país pelo menos do ponto do seu contributo produtivo.
Não há seguramente investigação empírica que permita apreender e testar a veracidade desta tendência ou intuição. Mas é impressionante o número dos que saem e obtêm reconhecimento profissional elevado nas instituições em que se inserem, chegando frequentemente a posições de liderança. Isso significa que o nosso problema é organizacional e de incapacidade de operar a rotação das qualificações.
É também impressionante que a obsessão nacional pelo excesso de qualificações tenha retornado e a senhora Merkel não fez mais do que avivar fantasmas da história da educação em Portugal, como bem o assinalou António Nóvoa na sua tese de doutoramento. Essa obsessão assume várias formas. Uma delas é a desconfiança quanto à qualidade das qualificações adquiridas. A paranoia é tão acentuada que, frequentemente, o desdém pelas novas qualificações vem de gente que as formou, o que é patologia ou simplesmente falta de coragem ou incompetência.
Falta a esta gente sentido da história. Basta comparar o que era a sociedade portuguesa há uns anos atrás (três ou quatro décadas) em matéria de entrada na formação superior. Estou certo que se comparássemos a mesma percentagem de jovens que acedia à formação superior e que está hoje nessa formação teríamos uma qualidade francamente mais elevada na percentagem de hoje. Mas a percentagem que hoje entra (mesmo em desaceleração por questões demográficas e por impacto da crise financeira e económica das famílias) é francamente mais elevada. Podemos alimentar todas as dúvidas quanto à qualidade das suas formações. Mas a comparação a fazer é interrogarmo-nos acerca de onde estariam esses jovens se tivessem tido as parcas oportunidades dos seus similares há 30 ou 40 anos.
É por isso trágico e dinamicamente perverso que parte dessa massa de qualificados protagonize crescentemente a diáspora da desistência. Qualquer alternativa de governação não pode deixar de inverter essa trágica tendência. O que não significa coartar as oportunidades da internacionalização, num mundo que não é plano como o pensavam alguns teóricos da globalização, mas que está cheio de encostas e montes a contornar, com as qualificações como o principal instrumento de viagem e aventura.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O QUE SERÁ O PÓS-JARDINISMO?



A vitória de Miguel Albuquerque nas eleições para a liderança do PSD na Madeira, com uma vantagem que não é despicienda face ao candidato que assumia, com ligeira distanciação, a herança de Alberto João Jardim na Região Autónoma, constitui um acontecimento político de múltiplos significados.
Em primeiro lugar, facto que não tem merecido a atenção devida, a vitória de Albuquerque representa uma vitória de Passos Coelho e da sua linha dentro do PSD contra a qual o jardinismo tinha manifestado animosidade sem rodeios. Embora as Regiões Autónomas, não só a Madeira mas também os Açores, apresentem politicamente matizes e cambiantes face às forças políticas nacionais por vezes impercetíveis ao comentário político no continente, a oposição de Albuquerque a Jardim e ao seu modelo de governação incapaz de prever o anunciado esgotamento do modelo económico madeirense aproximou-o de Passos Coelho. Albuquerque talvez esteja mais próximo dos valores da social-democracia do que o próprio Passos, mas o posicionamento face a Jardim e à insustentabilidade das suas posições no momento atual do País projetaram-no para uma inequívoca proximidade a Passos.
Em segundo lugar, a vitória de Albuquerque reúne os traços que Jardim mais tinha repelido e agredido ao longo do seu longo período de governação. As suas origens quase aristocratas, a sua proximidade face aos meios culturais, principalmente musicais, a elegância de um cultivador de rosas estão próximas do mundo madeirense a quem Jardim dedicava um ódio de estimação, que ninguém consegue compreender a não ser invocando razões de classe. Por isso, interrogo-me se em boa linguagem portuguesa Jardim vai ficar quieto ou se estrebuchará à sua maneira.
Em terceiro lugar, a vitória de Albuquerque traz a umas eventuais eleições regionais antecipadas novos cambiantes que podem ofuscar trajetórias emergentes na Região, sobretudo quando a notoriedade de Albuquerque aumentou significativamente nos últimos tempos, primeiro pela forma como geriu as inundações devastadoras no Funchal, depois pelo afrontamento sem medo a Jardim, em condições bem difíceis de liberdade democrática.
Por tudo isto, sopram bons ventos na Madeira.
A minha impressão pessoal do novo líder do PSD é fugaz mas consistente. Posso dizer-vos que nunca vi um Presidente de Câmara ouvir com tanta atenção e discutir tão proativamente um trabalho em que tenha participado como Miguel Albuquerque o fez quando apresentamos a estratégia para a revisão do Plano Diretor Municipal do Funchal em que o atual executivo se tem embrulhado lamentavelmente.
E essa impressão é para mim crucial.

DANOS POLÍTICOS COLATERAIS

(O lider do SYRISA abandonando o Parlamento após a confirmação da necessidade de eleições antecipadas)


Como manifestação típica da deriva antidemocrática em que a construção europeia tem vindo a mergulhar, com crescente incomodidade face às consultas populares, as políticas de gestão da crise das dívidas soberanas europeias e a austeridade imposta pela conceção alemã punitiva tenderam a ignorar as consequências políticas de tais políticas. Pode mesmo dizer-se que, mais do que ignorar, a gestão europeia da crise procurou colocar sempre as forças políticas nacionais perante a ameaça da inevitabilidade da solução, condicionando-as à cabeça num estilo similar ao “nem pensem fazer essa asneira de procurar uma alternativa”.
A evolução política da Grécia parece ameaçar essa refinada construção de condicionamentos sistemáticos da liberdade política dos parlamentos e das populações. A antecipação das eleições legislativas gregas provocada pela incapacidade da atual maioria eleger no Parlamento o novo Presidente da República e sobretudo o cenário eleitoral associado ao poder de voto que o SYRISA tem apresentado nas sondagens constituem o primeiro dano colateral relevante que a gestão da crise nas economias do sul está a provocar.
A pressão e o condicionamento internacional que se têm abatido sobre as forças políticas gregas e o poder de livre escolha dos gregos, acolitados por uma reação nervosa dos mercados, é bem provável que até às eleições de janeiro próximo faça recuar as intenções de voto na coligação da esquerda radical grega que o SYRISA representa. Assistiremos nos próximos tempos por parte da Comissão Europeia e de outras instituições internacionais ao mais despudorado condicionamento da livre vontade dos gregos, numa clara e descarada manifestação de deriva antidemocrática. Mas o cenário de recuo das intenções de voto no SYRISA até à decisão final pode gerar uma situação total ingovernabilidade do país, bastando para isso que o SYRISA recue por efeito da ameaça externa, mas não recue o suficiente para manter a atual maioria no poder com força suficiente para o respaldo dos compromissos entretanto assumidos.
Será também curioso observar qual o efeito da ameaça e do recuo das intenções de voto nos compromissos programáticos que o SYRISA submeterá ao sufrágio universal.
Dir-me-ão que a Grécia é diferente e que se trata do elo mais frágil do instável ponto de equilíbrio em que a gestão das dívidas soberanas fez mergulhar a zona Euro. Poderá ser. Mas o grande desafio serão as eleições de 2015 nos países como Espanha e Portugal que sofreram os efeitos de tal abordagem. Será que a evolução eventualmente favorável da situação económica nesses países acabará por funcionar como respaldo eleitoral das políticas de austeridade? Será que as forças políticas de alternativas serão consistentes na apresentação dessa alternativa?
Mas não será de enjeitar a hipótese malévola da degradação da situação grega provocada pela reação hostil e condicionadora dos mercados perturbar a evolução económica desses países, matando prematuramente as realizações que constituiriam o respaldo desejado das políticas de austeridade por parte dos poderes europeus.

domingo, 28 de dezembro de 2014

PROCESSOS POLÍTICOS A SEGUIR EM 2015



2015 perfila-se como um ano de desafios políticos cuja abordagem devemos seguir com atenção, sobretudo do ponto de vista do futuro das sociedades democráticas.
A emergência vertiginosa do PODEMOS em Espanha está nesse grupo. Há uma força de opinião que sustenta que teremos provavelmente um caso típico de ascensão e queda, determinado fundamentalmente pelo conhecido momento-chave da contaminação dos partidos anti-sistema com os meandros da governação ou, pelo menos, de um arremedo para consulta eleitoral de programa de governação.
Não seria tão afirmativo quanto a esta matéria.
Entre as razões para a minha defensiva opinião está um aspeto da emergência do PODEMOS que tem sido pouco debatido e que na Espanha das nações assume particular relevância. Refiro-me especialmente ao impacto que o PODEMOS tem exercido nas sociedades em que o regionalismo nacionalista é mais forte.
Na Catalunha, a marcha de ascensão do PODEMOS pode baralhar as contas e sobretudo capitalizar as dificuldades óbvias em que o efeito corrupção da família PUJOL colocou o nacionalismo catalão. O velho e imóvel nacionalismo catalão talvez fique indiferente à queda de um mito. Mas não acredito que o nacionalismo mais jovem não seja afetado por tal processo. Atualmente, o PODEMOS vale na Catalunha apenas 8% dos votos, o que parece sugerir que o nacionalismo de inércia ainda resiste.
No País Basco, porém, a última sondagem conhecida dá o PODEMOS como segunda força política da Região, apenas a um lugar de deputado do Partido Nacionalista Vasco (PNV), com cerca de 25-26% dos votos, captando influência na Izquierda Unida, na EH Bildu e no PSE. E em Navarra o PODEMOS é atualmente maioritário.
Conhecida que é a influência do voto nacionalista nas eleições nacionais espanholas e na composição do Parlamento espanhol, a penetração do PODEMOS nos feudos nacionalistas pode baralhar definitivamente os equilíbrios pós-eleitorais que, por vezes, o voto nacionalista permite.
Um bom motivo para seguirmos com atenção este processo em 2015.

sábado, 27 de dezembro de 2014

O PESSIMISMO CRÍTICO DE ANTÓNIO E DE JOSÉ



O Público de hoje traz-nos dois excelentes contributos para pensarmos o nosso futuro coletivo, um sob a forma de recolha de testemunho e sem um texto estruturado e o outro sob a forma de crónica semanal regular.
O testemunho é de António Barreto e a crónica de José Pacheco Pereira.
Curiosamente, os contributos são complementares, embora reportem ao tempo de forma distinta e daí a sua complementaridade intrínseca. António Barreto (AB) pensa a sociedade portuguesa sobretudo na perspetiva dos ciclos de desenvolvimento económico e social, largamente apoiado nos seus trabalhos primeiro sob o patrocínio da Ford Foundation, que deram origem ao Portugal Social e depois já ao leme da Presidência da Fundação Francisco Manuel dos Santos que acaba de abandonar. José Pacheco Pereira (JPP), pelo contrário, invoca o rigor da cronologia dos factos, que a memória curta tende a ignorar, para se concentrar na análise comparativa dos legados dos governos de José Sócrates (o caminho para o abismo com riscos de bancarrota à porta) e de Passos Coelho (o atolamento num pântano de areias movediças).
O tempo longo do desenvolvimento económico e social de AB transporta-nos para o confronto entre os 40 anos de melhoria sistemática do quadro de vida dos portugueses que a transição democrática proporcionou, com o aprofundamento conexo do sistema democrático em clara associação com os próprios desenvolvimentos do projeto europeu, e o pós 2000 com interrupção do processo de aprofundamento democrático a nível europeu e nacional e a desagregação profunda de dimensões cruciais desse progresso como a educação, a saúde e a justiça. AB parece fazer repousar o seu diagnóstico na esperança do despertar de uma coma profundo em que as elites portuguesas se deixaram mergulhar, despertar esse que passaria pelo entendimento político ao centro e pelas transformações constitucionais que reputa necessárias para que a CONSTITUIÇÃO cumpra o seu papel de preservação da liberdade dos cidadãos e da democracia. 2014, com a emergência dos megaprocessos judiciais que atingiram o coração do regime político e económico, não representaria o início de nada, sobretudo porque esse suposto despertar da justiça acontece com a degradação profunda de sistemas fundamentais para o desenvolvimento económico e social, a educação, a justiça e a saúde, as duas primeiras diria eu. Aparentemente esperançoso, o diagnóstico não resolve nem identifica que protagonistas à direita poderiam protagonizar a convergência ao centro, sobretudo porque é inverosímil assistir à redenção súbita dos que foram responsáveis pela desagregação dos referidos sistemas.
O pessimismo crítico de JPP é antes de mais um contributo inestimável para o PS (se engolir o confronto entre o abismo e o pântano de areias movediças) encontrar um antídoto para o discurso eleitoral de 2015 que a maioria irá esgrimir até à exaustão dos nossos pobres ouvidos que queiram seguir o debate eleitoral: “Alguém pensa que este modelo atamancado em 2011-12, assente acima de tudo no “gigantesco aumento de impostos” pode subsistir sem esses impostos? A herança de Sócrates foi um Tesouro vazio que dava para três meses, a herança de Passos Coelho é um “ajustamento” que só tem efeitos porque depende de um enorme assalto fiscal. Não existe “ajustamento” à Passos Coelho sem impostos elevadíssimos, centrados no trabalho e no consumo. Sem esses impostos tudo vem abaixo como um castelo de cartas, porque nenhuma transformação estrutural foi feita nem na economia portuguesa, nem no Estado. E as que foram feitas na sociedade, principalmente o empobrecimento selectivo da classe média, são todas inibitórias de qualquer genuíno crescimento.”
O pessimismo crítico de JPP tem uma outra dimensão que consiste em entender a gestão da crise das dívidas soberanas por parte da Alemanha como um propósito deliberado de reordenar o poder europeu sacudindo-o do diretório Alemanha-França, isolando esta última.
Poderão dizer-me, sobretudo os 11 economistas de António Costa, que não é possível construir programas de alternativas de governação suportados pelo pessimismo crítico. Enganam-se se pensarem assim. Ignorar o pessimismo crítico lúcido e fundamentado conduzirá ao “wishful thinking” de que estamos fartos.
O meu colega de blogue já interpelou os economistas de Costa.
Fá-lo-ei numa próxima oportunidade.