Quando há longos anos iniciei os meus estudos em
torno da problemática do desenvolvimento/subdesenvolvimento, o meu foco de
atenção incidia então nos chamados pioneiros. O grupo dos pioneiros integrava
os economistas e outros cientistas sociais que tinham rompido com o pensamento
económico incapaz de tentar compreender as sociedades subdesenvolvidas à luz
das suas próprias condições de inserção histórica na economia mundial e da
pretensa norma de referência que o desenvolvimento ocidental representava.
O grupo dos pioneiros englobava autores como
Albert O. Hirschman (um dos patronos intelectuais deste blogue), Gunnar Myrdal,
Dudley Seers, Raúl Prebisch e tantos mais. Neste grupo, Gunnar Myrdal exercia
algum fascínio sobretudo pelo seu conceito de causalidade circular cumulativa
aplicada à reprodução do subdesenvolvimento. O conceito procurava explicar em
que medida uma desigualdade ou assimetria de poder ou de relações, inicialmente
implantada, podia reproduzir-se através de mecanismos de causalidade que
alargavam a assimetria inicialmente considerada.
Nessa descoberta da obra de Myrdal, onde avultava
a monumental Asian Drama: an Inquiry into the Poverty of
Nations (1968), recordo-me que dei de caras com o estudo seminal
de Myrdal sobre a questão racial americana, An
American Dilemna: the Negro Problem and the Modern Democracy
(1944) que constitui uma aliança fascinante entre a economia e a sociologia
para tentar compreender o que era a questão racial nos EUA na primeira metade dos
anos 40, fruto de seis anos de investigação empírica profunda sobre as condições
de vida da população negra e do seu profundo condicionamento. A perspetiva de
Myrdal era então a de que a sociedade americana vivia numa contradição profunda,
materializada na impossibilidade de aplicação dos ideais de liberdade da sua
Constituição, que as instituições do sul dos EUA não eram capazes de garantir e
aplicar.
Dos trabalhos de Myrdal publicados em 1944 até aos
nossos dias, passando pela famosa marcha de Selma (Alabama) até à State House
em Montgomery em 1965 que levou Lyndon Johnson a enviar para o Congresso a
legislação sobre os direitos de voto, magnificamente reproduzida num portfolio de fotografias da marcha
publicada pelo duplo número de Natal e Ano Novo da New Yorker, a situação da
população negra americana evoluiu consideravelmente. Talvez o dilema de que
Myrdal falava esteja atenuado. As conquistas legislativas sucederam-se, mas a
economia americana alterou-se, com o mercado de trabalho a modificar-se ainda
mais significativamente com a população negra profundamente dividida do ponto de
vista das qualificações e as suas relações com a polícia estão longe de estar
pacificadas.
A série de incidentes entre a polícia e a população
negra que levaram às ruas massas de população não despiciendas estão a provocar
uma crise severa de falta de confiança e de segurança da população em geral na
polícia, gerando uma espécie de violência circular cumulativa que atingiu o
auge quando dois polícias foram recentemente assassinados em Brooklin, enquanto
se mantinham na respetiva viatura de patrulha, na sequência das mortes pela polícia
de Eric Gardner em State Island e de Michael Brown em Ferguson.
De acordo com as últimas informações, a espiral
de violência parece estar contida e mesmo as pujantes manifestações geradas pelas mortes de Gardner e Brown parecem estar numa encruzilhada após o assassínio dos dois polícias.
Myrdal deixou-nos em 1987, mas a sua causalidade circular
cumulativa continua presente em inúmeros processos sociais. A conquista por
parte da população negra de um tratamento justo e equitativo por parte da polícia
e a necessidade desta última ter a sua segurança protegida e por todos
assegurada encontram-se numa situação potencialmente explosiva que pode
degenerar numa típica situação de degradação circular cumulativa.
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