Já que estou com a mão na massa, ou seja, virado para a moeda europeia e a forma crítica como a encaram alguns intelectuais franceses de primeiro plano, aproveito para dar conta de uma recente e interessante entrevista do historiador e antropólogo Emmanuel Todd ao espanhol “El Diario”.
Todd, que ainda hoje é largamente associado à capacidade premonitória/prospetiva decorrente do seu primeiro livro (1976) – “La Chute Finale – Essai sur la Décomposition de la Sphère Soviétique” –, é um europeísta que nunca aceitou o racional da introdução do euro. Chegando mesmo a designar a Zona Euro como “uma impossibilidade antropológico-histórica” – vejam-se as origens do argumento em “L’Invention de l’Europe” (1990) e a sua primeira explicitação no prefácio à edição de bolso (1996), onde sustenta nomeadamente: “Uma real sensibilidade à diversidade dos costumes e dos valores europeus conduz a uma única conclusão: a regulação monetária centralizada de sociedades tão díspares como, por exemplo, França e Alemanha conduzirá a um disfuncionamento maciço, inicialmente de uma ou outra sociedade e seguidamente das duas (...). Se o projeto da moeda única for levado a cabo, este livro permitirá compreender, vinte anos depois, a razão pela qual a unificação estatal imposta sem uma consciência coletiva produziu mais uma selva do que uma sociedade.” Bruxo outra vez, há já quase vinte anos atrás?
Hoje explica-se assim: “O objetivo inicial das minhas investigações não era chegar a uma conclusão sobre a Europa, mas estudar a divergência dos sistemas familiares para compreender a história. O acaso fez com que o livro se publicasse no mesmo momento em que toda a gente estava eufórica com o passo em frente da Europa e inicialmente o livro foi recebido como um contributo para o europeísmo. À época, a diversidade da Europa era percebida como algo positivo.” E acrescenta: “A minha tranquilidade foi atingida quando uns tipos chegaram com a sua maravilhosa ideia do euro. (...) Dei-me conta de que o meu modelo baseado nas divergências dos sistemas familiares era mais potente do que havia imaginado. Cheguei à conclusão de que o euro não podia funcionar.”
Mas a entrevista tem muito mais. Começa por chamar a título uma ideia forte: nada menos do que a de que a Europa deve deslegitimar as suas elites. O enquadramento de afirmação tão retumbante é este: “A Europa não necessita apenas de flexibilidade monetária, ou seja, que os países encontrem no plano técnico a possibilidade de se protegerem com a moeda, de terem a sua própria política monetária. Desde o início que me opus à implementação do euro por razões técnicas mas, visto o dano que produziu, hoje vejo-o como um nó górdio. A moeda única converteu-se no símbolo da incompetência da classe dirigente. Compreendo perfeitamente as grandes dificuldades da transição, mas o afundamento do euro seria uma sorte para a Europa. A Europa deve deslegitimar as suas elites!”
(James
Ferguson, http://www.ft.com)
Vamos por partes. Porque, não querendo ser exaustivo nem fastidioso, o conteúdo da matéria tratada é vasto e tem muito que se lhe diga. Opto por aflorar seis teses em outros tantos tópicos/citações:
i. A evidência do caráter disfuncional do sistema europeu: “A pergunta não é a de saber se a Europa funciona, a Europa é um desastre. (...) Um dos grandes problemas que temos ao descrever a realidade da União Europeia é o imobilismo das palavras e os costumes verbais que impedem uma descrição correta do que está a ocorrer. Continuamos a falar de Europa, ou de federalismo, como se estivéssemos a falar da mesma ‘coisa’. Porém, não é a mesma Europa de antes. É uma Europa em que as nações são desiguais. Há um chefe, que é a Alemanha e os seus satélites da Europa do Norte e os Países Bálticos. Já não estamos na Europa dos pais, na Europa simpática da política agrícola comum, do Airbus, do Ariane ou do projeto Erasmus. É outro mundo, que eu defino como ‘austeritário’, desigual e sadomasoquista.”
ii. A tomada de controlo económico e político do continente europeu pela Alemanha nos últimos cinco anos, constatável “se deixarmos de escutar o blablá europeísta”, sem prejuízo do “caminho prodigioso” percorrido pelos alemães, de uma “amnésia inquietante” (entre um “toda a gente parece surpreendida quando redescobrimos que a Alemanha continua a ser a Alemanha” e um “não se podem censurar as pessoas por serem eficazes”) e do problema (antropologicamente explicável por um modelo familiar autoritário, hierárquico e desigual) da “incapacidade tradicional” da Alemanha para “permanecer tranquilamente na posição de chefia” (“esta pessoa [o chefe] é incapaz de pensar em termos de liberdade ou igualdade e entra em pânico ante a liberdade que lhe concede o poder”) ou “dos desvarios periódicos da Alemanha quando alcança de maneira autónoma a posição de superpotência”.
iii. A gradual conversão da Europa ao modelo hierárquico alemão: “Na minha opinião, a Europa começa a tomar a forma geral de uma Herrenvolk Democracy [conceito que foi utilizado para explicar a democracia étnica da África do Sul do apartheid] com, no seu coração, uma democracia alemã reservada a um povo dominante e, em redor, toda uma hierarquia de populações mais ou menos dominadas. Quando digo Alemanha, refiro-me na realidade a toda a esfera germânica.”
iv. A enorme forte cumplicidade e responsabilidade francesa neste estado de coisas, a qual também encontra raízes antropológicas (“tanto em França como em Espanha, o sistema familiar dominante carateriza-se pelo individualismo e pelo igualitarismo dos membros da família” e “permitiu, somado às circunstâncias históricas, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa” mas “causa numerosos problemas de organização social” determinando que “as elites tenham o sonho de se converterem em alemães”) mas vai mais longe (“falo efetivamente de uma servidão voluntária da França em relação à Alemanha”, uma servidão que involuiu daquela “admiração clássica das elites” para uma “servidão técnica” muito associada à “hipertrofia do sistema bancário francês”, “às relações demasiado estreitas que este tem com o Estado francês” e à sua “má situação durante a crise da dívida” que obrigou um Estado sem poder monetário a “dirigir-se ao quase único país creditício da Europa, a Alemanha”) e é beneficiária de apreciável cobertura do lado alemão (“se compararmos a França com os seus vizinhos, vemos que é o único país que se comporta como se a crise não fosse consigo” e “isto não se passaria se a França não fosse privilegiada pela Alemanha e, claro, a França, em contrapartida, submete-se a ela” e isso leva a que “tenha uma enorme responsabilidade em permitir a dominação da Alemanha sobre o sul da Europa” – daí os desabafos: “a França tinha algo a dizer se tivesse podido atuar para federar o sul”; mais “se os países do sul tivessem conseguido organizar-se, teria sido muito bom e a história seria outra”; e mais “como cidadão francês tenho vergonha da complacência francesa”).
v. A certeza antropológica de que o euro nunca funcionará: a moeda única – metaforicamente descrita como “o bezerro de ouro de uma nova religião monetária” ou como “uma moeda sacrificial que contém uma carga religiosa, uma crença coletiva no sonho europeu” – “forçou os países europeus a convergir as suas economias a marcha forçada, sem ter em conta as suas enormes diferenças estruturais” e “naturalmente, tinha de acabar por servir ao mais forte entre todos, a Alemanha, grande país credor e exportador”. Sendo que, embora tenha “um toque de loucura” a estratégia económica alemã de evitar a todo o custo que o euro colapse para proveito da sua indústria, “a Alemanha não é a única responsável deste desastre” e “a inação da França e do Reino Unido e a falta de união dos países do sul da Europa são igualmente responsáveis desta deriva da Alemanha:”
vi. A defesa convicta de uma saída do euro, assim explicada em linguagem corrente: “Imagine que tem um tumor grave, que tem de ser operado e de certeza que ao despertar da operação se vai sentir muito muito mal. É um problema de aceitação do choque operatório. O que é que preferimos, morrer tranquilamente de cancro ou extirpar o tumor?” E assim positiva e pragmaticamente racionalizada em termos económicos e sociais “para estas sociedades paralisadas, calcificadas e envelhecidas”: “o euro criou uma zona de guerra máxima entre os países europeus”, “com o euro, todos nos estamos arrastando numa mecânica implacável de colapso do nível de vida”, “aceito a ideia das dificuldades económicas trazidas pela saída do euro, aceito a baixa do nível de vida, temporal, porque de toda a maneira a qualidade de vida já está a baixar”.
Aqui está uma leitura que, tendo indesmentíveis perigos, vai fazendo o seu caminho e ganhando adeptos de muitos e variados tipos por essa Europa fora...
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