(Se a votação na generalidade do Orçamento permite alguma legibilidade do
posicionamento das forças políticas com assento parlamentar relativamente à
situação atual do país e à realidade do governo com apoio à esquerda, já a
votação na especialidade tem que se lhe diga em termos de legibilidade. O cenário de festim orçamental coloca-se mas, vá
lá saber-se porquê e ponderadas as exceções de derivas, o resultado acaba por
ter alguma coerência num cenário em que quem governa não tem a maioria.)
Já por repetidas vezes sublinhei neste espaço que me parece que a projeção
político-mediática da discussão do Orçamento Geral do Estado é
desproporcionada. Mais ainda, as discussões anuais carecem de alguma coerência
plurianual, que pelo menos para alguns domínios da atividade governamental
representa em si mesmo um significativo empobrecimento da discussão. É um facto
que da aprovação ou reprovação do orçamento anual pode resultar a estabilidade
ou a instabilidade governativa e consequentemente a possibilidade de
interrupção da legislatura. Mas temos de convir que o Orçamento se mete por
vezes por caminhos ínvios, entrando em domínios que me parecem ser uma clara
interferência na esfera da autonomia governativa (não está em causa, como é
óbvio, a accountability desta última.
Na discussão deste ano, a controvérsia em torno das cativações veio trazer
alguma pimenta de clarificação em relação a algumas matérias. O Ministro
Centeno, que tem revelado mais habilidade política do que poderia ser-lhe
atribuída, veio esclarecer que os valores orçamentados para as despesas e
receitas eram essencialmente estimativas, acontecendo que no caso das despesas elas
devem ser também entendidas como tetos que não podem ser ultrapassados, mas que
nada impede que possam ficar aquém dessas estimativas. E não deixou de ser
curioso que forças políticas (PSD e CDS) que costumam ser tão sensíveis ao
despesismo, criticando-o, vieram a terreiro condenar o truque de controlo
orçamental a que Centeno recorre com argumentos que parecem de adeptos furiosos
por mais despesa. Sendo conhecido que grande parte da margem de manobra
orçamental depende do comportamento da atividade económica, e esta por mais
arrojado que seja o governo, tem limites para ser influenciada a partir da
atividade governativa, o truque de Centeno é uma tentativa de manter algum
controlo sobre a (in) capacidade de cumprir as metas orçamentais, medidas em
termos de peso no PIB do país. Penso que a estratégia das cativações é menos
viciada do que a desorçamentação ou a orçamentação oculta. Essa sim parece-me
mais lesiva das relações que têm de ser legíveis entre necessidades
(excedentes) de financiamento determinadas pelas opções do orçamento e a
evolução absoluta e em termos de peso no PIB da dívida pública. Outra coisa
será concluir que esse controlo “em última instância” das estimativas
orçamentais se concretiza por via exclusiva da compressão do investimento
público, situando-o em níveis inferiores ao programado. O número de anos de
sub-investimento público acumulado carece de recuperação e sacrificar o ritmo
dessa recuperação a meras táticas de controlo orçamental por cativação não
parece constituir uma boa prática, partindo do princípio de que as necessidades
de investimento estão competentemente identificadas.
O debate na especialidade e a votação das propostas de alterações
orçamentais a introduzir face à proposta do Governo é algo que tem uma síntese
de grande complexidade, pois assume vários cambiantes: (i) é muitas vezes um
festim orçamental com cada um a querer deixar a sua marca de zeladores por
algum grupo de interesses na satisfação de determinadas necessidades; (ii) é
também algumas vezes uma espécie de tiro ao boneco em que este é o Governo,
sendo curioso que esse desporto não é praticado apenas pela oposição PSD e CDS
mas também pelos apoiantes da solução governativa, que recuperam fôlego em
matérias que não fizeram parte do acordo político (com a novidade de neste caso
também a bancada do PS ter praticado esse desporto com a redução do IVA para as
touradas); (iii) representa também a possibilidade sobretudo à esquerda do PS
de recuperar imagem e coerência com os seus valores e públicos de suporte,
mostrando a quem vota que sim senhor apoiam o governo mas não abdicam da sua
matriz identitária.
Não sei se pela lei dos grandes números, com as compensações num tão
elevado número de propostas e adendas a ditar esse resultado, se por outro
motivo qualquer de tendência para a homeostase,
o que acaba por resultar de tal festim acaba por ser, regra geral, algo que não
contém muitos disparates. É verdade que contrariando o Governo, mas isso, meus
amigos, quem governa sem maioria absoluta e com este tipo de apoio parlamentar
tem de estar preparado para algumas contrariedades. Convenhamos que introduzir
na discussão do orçamento novas vacinas no programa nacional de vacinação não
lembraria ao bom diabo (ao mau diabo não estou certo). É verdade também que
aprovar algumas normas com a pesada carga de favorecer o progresso
civilizacional também aparece algo em desconformidade com as funções de um OGE.
Mas por linhas tortas, que talvez sejam direitas segundo outros valores, a
verdade é que teimosias imprevidentes acabam por ser chumbadas, como por
exemplo, a taxa de proteção civil ou a taxa Robles. Bem pode a Liga de Pedro
Pereira atirar-se ao ar pelo facto do futebol não ter sido incluído na redução
do IVA aprovada. Mas se a Liga olhasse para o estado atual do futebol em
Portugal e fizesse um bom exame do que pode passar-se em alguns estádios talvez
moderasse o seu praguejar.
Por isso, apesar de alguns arrufos ou tentações de ser poder para além do
legislativo, de alguma cultura de desculpabilização, como por exemplo esta
novidade do nosso letrado Barreiras Duarte do PSD votar sem lá estar, a verdade
é que se trata de um conjunto de “good
fellows” (como é que se diz isto para incorporar o género?), merecendo
compreensão. E lá vai chegar ao fim a solução que muitos julgavam inviável com
a qual Costa encontrou a interlocução e o apoio que necessitava.