(Fernández Ordóñez e Rodrigo Rato, Banco Nacional de Espanha e Bankia, na altura dos acontecimentos)
(Não, não se trata de dissertar sobre as mais modernas incursões da literatura policial, embora se aguarde para breve a revisitação pós Agatha Christie do incomparável Poirot. Mas os desenvolvimentos judiciais em torno do sistema financeiro, pela vizinha Espanha, permitem acalentar a ideia de que talvez haja mais crimes perfeitos do que parece.
À partida talvez deva reconhecer que estamos todos expectantes quanto aos desenvolvimentos judiciais do caso BES e suas ramificações. Já nos habituámos por demais a perceber que existem desvios, por vezes consideráveis, entre a condenação social e política de certos casos e a sua não validação posterior por parte da justiça. A vulgarização das fugas ao segredo de justiça transformou certos jornais em tribunais precoces e virtuais, atropelando regras básicas do direito e da proteção que a lei proporciona aos por ela visados. Os casos de não validação das condenações em praça pública têm causas diversas e não é indiferente isso acontecer por simples incompetência da investigação policial ou porque nos meandros da lei algo se perde em termos de demonstração de ilegalidade ou de ilicitude.
O caso concreto que suscita a reflexão de hoje tem por epicentro o sistema financeiro espanhol cuja fragilidade e pés de barro foram inapelavelmente expostos pela crise financeira internacional de 2008. Os comportamentos de pura degenerescência de liderança de alguns grupos financeiros em Espanha e a sua perigosa convivência com várias formações políticas colocaram o sistema financeiro espanhol e as suas entidades reguladoras sob a enorme pressão dos que rapidamente compreenderam que a crise espanhola tinha aí a sua origem principal e não como aconteceu em Portugal na insustentabilidade da dívida pública e privada. Esses acontecimentos varreram toda a Espanha e em algumas comunidades autónomas, como aconteceu na Galiza, aconteceram rombos enormes na consistência económica do regionalismo. Sabemos como na Galiza as Caixas de Ahorros caíram praticamente todas nessa voragem de castelos de cartas e algumas das quais com comportamentos de algumas lideranças ao mais baixo nível da cleptocracia, criando vantagens em sede própria para as suas aposentações. Contrastando com esta visão de castelo de cartas ainda nos recordamos do modo como José Luís Zapatero sossegava a comunidade financeira internacional em 2008 com a afirmação de que a Espanha dispunha do sistema financeiro mais seguro entre pares.
O caso Bankia, agora julgado na Audiência Nacional, reporta a 2010 e 2011 e respeitava a presumíveis falsidades de informação bancária publicada no momento da entrada em bolsa, trágica viria a revelar-se, envolvendo alguns personagens da expansão financeira espanhola como Rodrigo Rato, que chegou a exercer funções no FMI. Aliás, existem observadores que afirmam que a reação inicialmente positiva da entrada em bolsa do Bankia, com venda de ações nas sucursais bancárias se deveu especialmente à presença aparentemente tranquilizadora de Rato à frente da instituição na altura.
O resultado do julgamento agora concluído ilibou completamente Rato e os restantes acusados na referida operação, seja porque em tribunal se fez prova de que todas as operações em causa tinham tido a aprovação ou pelo menos a não reprovação do Banco Nacional de Espanha e da CMVM lá do sítio, seja porque a plasticidade dos dados contabilísticos e dos seus critérios foi invocada para os acusados se defenderem da ilegalidade eventual dos seus atos. A publicação das contas do Bankia a público para efeito da entrada em bolsa foi assim dada como validada por quem poderia contrariar a credibilidade da informação, as duas instituições anteriormente referidas, mais o Fundo de Resgate do Estado (FROB) e a própria Autoridade Bancária Europeia. Não é despiciendo recordar que a revisão contabilística realizada em 2012 para justificar a intervenção do Estado transformou uma situação de cerca de 300 milhões de euros de lucros em quase 3.000 milhões de prejuízos, o que pode dar-nos a vaga ideia da plasticidade dos critérios sobretudo de valoração de ativos e de passivos que terão estado presentes neste caso.
Rejeitando qualquer inclinação justiceira ou justicialista que possam associar a esta reflexão, não estando o Banco Nacional de Espanha, nem a CMVM lá do sítio (mais especificamente CNVM – Comissão Nacional do Mercado de Valores) acusadas, a sua supervisão acabou por constituir a grande defesa dos acusados. Uma espécie de crime perfeito, mesmo que todas as dúvidas pudessem ser colocadas sobre a informação que acompanhou a entrada em bolsa.
O artigo do El País que trata a absolvição de Rato e companheiros cita uma preciosa afirmação de uma deputada em 2012, Irene Lozano, pertencente à força política da UPyD já varrida do mapa político: “O caso Bankia foi o crime perfeito, em que tudo parece um acidente e ninguém é culpado” (link aqui).
Pelo andar da carruagem, não parece ser possível termos um desfecho desta natureza nos processos judiciais que envolvem direta ou indiretamente o sistema financeiro nacional. Como costumava salientar o ex-Governador do Banco de Portugal Carlos Costa, não podemos esquecer que o caso BES já tem condenações em tribunal, das quais a mais importante é a do Tribunal Administrativo de Lisboa (pelo menos neste post, link aqui), oportunamente referida neste blogue e que toda a nossa imprensa olímpica ou malevolamente ignorou. Mas aquela última emissão do BES deixou muitas dúvidas a muita gente e ainda estou para saber como é que a CMVM (a portuguesa neste caso) se safou de não ser acusada frontalmente de má supervisão. E já agora convém não esquecer que a proteção dos “financeiramente desfavorecidos” está em primeiro concentrada nos reguladores. Se estes falham ou lavam as mãos …