quarta-feira, 30 de setembro de 2020

CRIMES PERFEITOS?

 

(Fernández Ordóñez e Rodrigo Rato, Banco Nacional de Espanha e Bankia, na altura dos acontecimentos)

(Não, não se trata de dissertar sobre as mais modernas incursões da literatura policial, embora se aguarde para breve a revisitação pós Agatha Christie do incomparável Poirot. Mas os desenvolvimentos judiciais em torno do sistema financeiro, pela vizinha Espanha, permitem acalentar a ideia de que talvez haja mais crimes perfeitos do que parece.

À partida talvez deva reconhecer que estamos todos expectantes quanto aos desenvolvimentos judiciais do caso BES e suas ramificações. Já nos habituámos por demais a perceber que existem desvios, por vezes consideráveis, entre a condenação social e política de certos casos e a sua não validação posterior por parte da justiça. A vulgarização das fugas ao segredo de justiça transformou certos jornais em tribunais precoces e virtuais, atropelando regras básicas do direito e da proteção que a lei proporciona aos por ela visados. Os casos de não validação das condenações em praça pública têm causas diversas e não é indiferente isso acontecer por simples incompetência da investigação policial ou porque nos meandros da lei algo se perde em termos de demonstração de ilegalidade ou de ilicitude.

O caso concreto que suscita a reflexão de hoje tem por epicentro o sistema financeiro espanhol cuja fragilidade e pés de barro foram inapelavelmente expostos pela crise financeira internacional de 2008. Os comportamentos de pura degenerescência de liderança de alguns grupos financeiros em Espanha e a sua perigosa convivência com várias formações políticas colocaram o sistema financeiro espanhol e as suas entidades reguladoras sob a enorme pressão dos que rapidamente compreenderam que a crise espanhola tinha aí a sua origem principal e não como aconteceu em Portugal na insustentabilidade da dívida pública e privada. Esses acontecimentos varreram toda a Espanha e em algumas comunidades autónomas, como aconteceu na Galiza, aconteceram rombos enormes na consistência económica do regionalismo. Sabemos como na Galiza as Caixas de Ahorros caíram praticamente todas nessa voragem de castelos de cartas e algumas das quais com comportamentos de algumas lideranças ao mais baixo nível da cleptocracia, criando vantagens em sede própria para as suas aposentações. Contrastando com esta visão de castelo de cartas ainda nos recordamos do modo como José Luís Zapatero sossegava a comunidade financeira internacional em 2008 com a afirmação de que a Espanha dispunha do sistema financeiro mais seguro entre pares.

O caso Bankia, agora julgado na Audiência Nacional, reporta a 2010 e 2011 e respeitava a presumíveis falsidades de informação bancária publicada no momento da entrada em bolsa, trágica viria a revelar-se, envolvendo alguns personagens da expansão financeira espanhola como Rodrigo Rato, que chegou a exercer funções no FMI. Aliás, existem observadores que afirmam que a reação inicialmente positiva da entrada em bolsa do Bankia, com venda de ações nas sucursais bancárias se deveu especialmente à presença aparentemente tranquilizadora de Rato à frente da instituição na altura.

O resultado do julgamento agora concluído ilibou completamente Rato e os restantes acusados na referida operação, seja porque em tribunal se fez prova de que todas as operações em causa tinham tido a aprovação ou pelo menos a não reprovação do Banco Nacional de Espanha e da CMVM lá do sítio, seja porque a plasticidade dos dados contabilísticos e dos seus critérios foi invocada para os acusados se defenderem da ilegalidade eventual dos seus atos. A publicação das contas do Bankia a público para efeito da entrada em bolsa foi assim dada como validada por quem poderia contrariar a credibilidade da informação, as duas instituições anteriormente referidas, mais o Fundo de Resgate do Estado (FROB) e a própria Autoridade Bancária Europeia. Não é despiciendo recordar que a revisão contabilística realizada em 2012 para justificar a intervenção do Estado transformou uma situação de cerca de 300 milhões de euros de lucros em quase 3.000 milhões de prejuízos, o que pode dar-nos a vaga ideia da plasticidade dos critérios sobretudo de valoração de ativos e de passivos que terão estado presentes neste caso.

Rejeitando qualquer inclinação justiceira ou justicialista que possam associar a esta reflexão, não estando o Banco Nacional de Espanha, nem a CMVM lá do sítio (mais especificamente CNVM – Comissão Nacional do Mercado de Valores) acusadas, a sua supervisão acabou por constituir a grande defesa dos acusados. Uma espécie de crime perfeito, mesmo que todas as dúvidas pudessem ser colocadas sobre a informação que acompanhou a entrada em bolsa.

O artigo do El País que trata a absolvição de Rato e companheiros cita uma preciosa afirmação de uma deputada em 2012, Irene Lozano, pertencente à força política da UPyD já varrida do mapa político: “O caso Bankia foi o crime perfeito, em que tudo parece um acidente e ninguém é culpado” (link aqui).

Pelo andar da carruagem, não parece ser possível termos um desfecho desta natureza nos processos judiciais que envolvem direta ou indiretamente o sistema financeiro nacional. Como costumava salientar o ex-Governador do Banco de Portugal Carlos Costa, não podemos esquecer que o caso BES já tem condenações em tribunal, das quais a mais importante é a do Tribunal Administrativo de Lisboa (pelo menos neste post, link aqui), oportunamente referida neste blogue e que toda a nossa imprensa olímpica ou malevolamente ignorou. Mas aquela última emissão do BES deixou muitas dúvidas a muita gente e ainda estou para saber como é que a CMVM (a portuguesa neste caso) se safou de não ser acusada frontalmente de má supervisão. E já agora convém não esquecer que a proteção dos “financeiramente desfavorecidos” está em primeiro concentrada nos reguladores. Se estes falham ou lavam as mãos …

LEITURAS MINHAS


Não venho hoje aqui fazer um qualquer exercício indevido de cultura literária, apenas me apresso a emendar o involuntário erro de não ter aqui referenciado em tempo (porque o Outono já anda por aí) algumas recomendações de obras que marcaram o meu Verão deste ano. No campo das novidades, escolho a primeira ficção de Elena Ferrante desde a sua tetralogia napolitana (talvez o mais inteiro dos livros da autora) e a interessante e atual reflexão económico-social que nos é trazida por Martin Sandbu (onde, em termos necessariamente polémicos, se explicam os left behind e se propõem formas de os conjurar). No campo das reimpressões e dos atrasados, aponto decisivamente mais um Agustina junto com a obra-prima que é um dos últimos romances de Julian Barnes. Fico-me por estas parcimoniosas sugestões, prometendo que irei pensar tão seriamente quanto puder nas colocações em estante que melhor contribuirão para a boa imagem das minhas próximas ligações web...


terça-feira, 29 de setembro de 2020

PRIMEIROS 90 MINUTOS PELO MUNDO


(Kevin Kallaugher, KAL, https://www.economist.com)

No cenário reproduzido na imagem de abertura deste post, localizada em Cleveland (Ohio), iniciam-se hoje os potencialmente decisivos debates presidenciais entre Trump e Biden. Num quadro em que o “The New York Times” veio evidenciar o cumprimento com distinção da sua mais nobre função informativa, apresentando os resultados de uma investigação que prosseguiu durante quatro anos em torno da complexa teia de nada transparentes relações entre Trump e o fisco (sem prejuízo, ainda, dos ridículos 70 mil dólares em capachinho e adjacentes). Veremos se a experiência e o alegado humor fino de Biden resistirão às investidas milimetricamente preparadas pelo staff de Trump para que este logre contrapor porcaria a qualquer tentativa de serem chamados à colação quaisquer temas de entre a imensidão que o tornou o mais indigno presidente americano de sempre.


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O NOSSO PLANEAMENTO


Foi do meu ponto de vista trágico que tenham sido economistas com agendas pessoais muito próprias e opções ideológicas assumidamente situadas à direita a virem a público no sentido de se pronunciarem desalinhadamente em relação ao chamado Plano Costa Silva, essa ideia peregrina que afinal mais não serviu do que para que o Governo ganhasse tempo, alimentando a opinião pública com propostas de todas as formas e feitios e servindo todos os gostos, enfaticamente apresentadas pelo seu autor como invariavelmente fundamentais, cruciais e vitais e com muita cultura de lombada à mistura. Não estando em causa a qualificação intelectual e os alargados conhecimentos da figura em causa, nem a sua certamente positiva intencionalidade, foi verdadeiramente pungente assistir ao modo como a maioria dos nossos especialistas e comentadores comeram e calaram, quando não aplaudiram com aparente convicção, e pouco ou nada tiveram para trazer à reflexão crítica em torno de uma matéria determinante para o futuro da nossa economia e sociedade. Enfim, apenas uma reiterada e inequívoca demonstração da fragilidade das nossas elites políticas, académicas e demais.

 

Agora que o Governo entende que já se encontrou, anunciando que vai optar por dedicar uma larga parte dos 12,9 mil milhões de euros das subvenções do nosso Plano de Recuperação e Resiliência ao financiamento de políticas com menor cabimento nos fundos estruturais tradicionais – ao que se diz, definiu nesta linha três blocos principais de medidas: de resiliência (7200 milhões, sendo 3200 para aplicação em respostas às vulnerabilidades sociais, designadamente em SNS, políticas sociais e habitação), de transição climática (2700 milhões) e de transição digital (3000 milhões) –, Costa Silva prosseguirá e até recrudescerá as suas professorais aparições (a propósito, chamo a atenção para que Quinta-Feira virá ao Porto a convite da SEDES) no quadro de uma utilidade em inevitável decréscimo que não para meros e pontuais fins de chancela político-mediática.

 

Esta semana, as traves-mestras do dito Plano de Recuperação e Resiliência estiveram na Assembleia da República, onde tristemente beneficiaram também de uma quase total ausência de capacidade de proposta por parte do conjunto dos deputados presentes. Ainda assim, alguém por lá disse que era preciso meter as empresas naquilo, uma nota que tem tanto de óbvio quanto teria de ter de maior exigência em termos de equacionação das consequentes formas e instrumentos concretos. Assim, e com toda a gente que tem responsabilidades atribuídas a fazer mais ou menos de conta que sabe o que anda a inventar, com os observadores a fingirem-se bem sabedores de que tudo está a ser devidamente preparado para aplicar a magnífica “bazuca”, com os “suspeitos do costume” a assumirem-se como senhores do quinhão que sabem que lhes será necessariamente garantido (até para disfarce da concentração do essencial restante em obras grandiosas ou megalómanas, também para fazer funcionar o obrigatório ricochete – quase que podíamos falar de uma espécie de spillover  em favor dos países contribuintes líquidos), cá iremos cantando e rindo rumo à expectável deceção que chegará no final da década, nesse já tão mítico 2030...

O EMPRESÁRIO DISFARÇADO

 

(Asier Sanz)

(Disfarçado ou simplesmente falhado ou aldrabão, vai tudo dar ao mesmo. A publicação das declarações de impostos do Presidente americano realizada pelo New York Times revela podres do capitalismo americano, que praticamente todos conhecíamos e que só traz a novidade de serem estendidos ao putativo empresário-Presidente. Para além de estar convencido que a publicação frustrou expectativas iniciais do próprio jornal, oxalá me engane mas a revelação do NYT ajudará a explicar a verdadeira dimensão da base eleitoral de Trump)

Tal como convém à sua estratégia de conquista de eleitorado desde a sua eleição, Trump apresenta-se como um empresário de sucesso, na despudorada tentativa de demonstrar de que quem sabe ganhar dinheiro saberá conduzir o país e decidir em conformidade. Mas o que Trump é na prática é aquilo que se chama em Portugal de empresário dos esquemas, o espertalhão do planeamento fiscal despudorado e agressivo, aquele que confunde com a maior das simplicidades despesas pessoais e das empresas. Numa palavra, o verdadeiro artista dos truques fiscais, na linha de aparência de muitos empresários dessa natureza da nossa praça, de camisa aberta e grossas pulseiras coloridas segundo o modelo de “senhorzinhos Maltas” dos nossos tempos. Ou seja, um verdadeiro insulto aos verdadeiros empresários, qualquer que seja a definição (e sabemos como existem várias definições) que adotemos para os classificar. Imagino as dificuldades de conceptualização que Schumpeter hoje teria quando num eventual regresso do mundo dos mortos encontrasse este empresário-Presidente.

O NYT talvez esperasse encontrar evidências de fraude fiscal ou até de financiamentos estranhos das suas empresas, vindos dos lados da Rússia. Não encontrou nada desse tipo de material. Mas encontrou uma das mais desavergonhadas solicitações de bonificações fiscais (ver artigo de John Cassidy na New Yorker, link aqui) de que há memória nos EUA, elevando o “rebate” fiscal ao garu mais elevado do descaramento fiscal, obviamente que acolitado por uma massa inaudita de advogados especializados.

Em meu entender, os dados agora relevados ajudam a explicar em parte o êxito eleitoral de Trump. Existe, disso não há dúvida, uma canga imensa e variada de gente ligada ao mundo dos negócios americanos que, para além de estar a destruir o Partido Republicano e os seus valores fundacionais, está na base da maior desigualdade algum dia vivida pela economia americana, alimenta-se dela, reproduz-se em ambientes favoráveis. Essa é uma segura base de apoio de Trump, na linha de um raciocínio de extrema simplicidade, porquê apoiar outras pessoas, estando na Casa Branca a personalidade que melhor serve a perpetuação dos seus interesses.

Mas há ainda uma outra franja de eleitores que se revê nos comportamentos de “chico espertismo” do seu presidente. A sociedade americana está povoada de “libertários de meia tigela” que acredita na voracidade e na pressão impiedosa de um estado, que consideram de socialista e atentatório da liberdade individual (por isso nestes mundos os pontos de contacto entre a extrema-esquerda e a extrema-direita são tão próximos). Ora, quando um personagem como Trump se orgulha na prática das suas manigâncias de prestidigitador fiscal ele agrada por essa via a essa outra canga, que vê nele um companheiro de habilidades.

Por estas razões, não estou otimista em demasia quanto ao efeito eleitoral das revelações do NYT. É algo de que só teremos a perceção real na mais complicada das noites eleitorais americanas, esperando que a dignidade e a decência sejam suficientes para superar o eleitorado fiel de Trump que vê nele o verdadeiro Artista. Isto se nos debates televisivos Joe Biden não queimar os fusíveis e nos transportar na mais longa das deceções mundiais.

domingo, 27 de setembro de 2020

UM CERTO SENTIDO DE FIM

 
(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)

Não tenho quaisquer dúvidas quanto à dificuldade, tendencialmente impossibilidade, de se conseguirem produzir acertos minimamente adequados e respostas minimamente coerentes numa escala tão diferenciada e tão alargada quanto o é a constitutiva da atual União Europeia (a 27 ou ainda a 28, tanto faz). É mesmo essa uma das razões pelas quais cada vez mais considero que a questão do alargamento à tout prix que marcou a última década do século passado e a primeira deste, e que ainda continua a fazer parte do preguiçoso e interesseiro discurso político europeu de hoje, foi mesmo uma opção trágica para uma afirmação sustentada do dito projeto de integração económica potencialmente mais inovador dos nossos tempos.

 

Vem isto a propósito da mais recente iniciativa comunitária, conduzida sob a batuta visível da Comissão de UvdL, de um “Novo Pacto para as Migrações e Asilo”. Além da Presidente, deram a cara pelo “pragmático” caminho novo a prosseguir (um caminho realista segundo alguns, por lograr evitar roturas irremediáveis com polacos, húngaros e quejandos, mas um caminho vergonhoso segundo outros, mais atreitos a valorizarem causas humanitárias justas embora crescentemente descartadas por démodés aos olhos de opiniões públicas multidimensionalmente intoxicadas) dois outros comissários com pelouros diretamente relacionados ou conexos, o grego Margaritis Schinas (vice-presidente encarregado da “proteção do modo de vida europeu”, o que quer que tal queira realmente significar) e a sueca Ylva Johansson (que trata dos “assuntos internos”). Sem pretender elaborar muito numa matéria de elevado melindre e complexidade, também porque profundamente estafada perante nacionalismos obtusos e de vistas curtas que privilegiam um criminoso negacionismo de factos e argumentos, recorro com a devida vénia a dois parágrafos publicados por Wolfgang Münchau no seu “Eurointelligence” e que julgo ajudarem a situar o essencial do que tão tristemente marca o dito caminho novo.

 

“Escolha e responsabilidade são os princípios orientadores do novo pacto para as migrações e asilo apresentado ontem por Ursula von der Leyen. Esqueça as quotas de realocação obrigatórias, elas tornaram-se uma coisa do passado. Em vez delas, os Estados membros podem agora escolher como querem contribuir para aliviar a carga sobre os países de fronteira externa a que os migrantes chegam com mais frequência. Os Estados Membros podem acolher os requerentes de asilo, enviar de volta para os seus países de origem aqueles cujos pedidos de asilo são rejeitados ou ajudar a construir centros de acolhimento.

 

A Comissão chama a isto solidariedade flexível. Aqueles que não desejam acolher migrantes são agora responsáveis por deportá-los. Até onde nos levará este tipo de solidariedade? Onde estaremos daqui a 10 anos se a Alemanha continuar a aceitar migrantes enquanto a Áustria, a Hungria, Polónia ou a República Checa continuarem a promover uma narrativa xenófoba? A nova política permite a este grupo consolidar a sua postura anti-imigração e até mesmo transformá-la numa posição aceitável no quadro de padrões da UE. A UE ainda partilha os mesmos valores? O que parece é que se encontrou uma narrativa de fachada enquanto as fundações vão continuando a apodrecer.”

 

Esta é apenas mais uma ilustração do que vai mal pelas nossas redondezas, em áreas substantivas onde houve e devia continuar a haver lugar a esperança, ou seja, onde se podia ir melhor se nelas coubesse maior estadismo, visão e sentido de pertença. E, como estamos em maré de escrita para memória futura, importo o desabafo do meu colega de blogue para voltar a um lamento que cresce em mim: o de que a minha perspetiva da construção europeia cada vez mais será menos a mesma...