quarta-feira, 16 de setembro de 2020

PASSAGEM DO TEMPO (Rui Veloso)

 

(O Alta Fidelidade na RTP 1 tem representado uma rara oportunidade para entre muros ter documentos de passagem do tempo, nos termos em que esta rubrica do Interesse o coloca. Só pude visualizar os programas respeitantes aos Trovante, a Paulo de Carvalho e agora de Rui Veloso. Concluo que a resiliência à passagem do tempo é muito diferenciada).

O estilo do programa conduzido por Vasco Palmeirim, gravado no mítico estúdio da Valentim de Carvalho, tem derivas possíveis e corre riscos que podem ser consideráveis. Mas a ideia central é feliz. Fazer do estúdio de gravação da VC um espaço de revisitação da obra do personagem que está na berlinda reunindo gente próxima e abrindo a porta a reinvenções de algumas canções-marco por gente mais nova é apelativo e cria as condições para algo de estimulante, com muita afetividade no estúdio. Os riscos existem, não os podemos ignorar. O exercício pode transformar-se numa passagem de testemunhos laudatórios por serem demasiado comprometidos e envolvidos, a modéstia por vezes desaparece e tudo parece depender do desempenho do homenageado, que pode estragar tudo.

Como referi no início o confronto entre os três únicos programas que pude visualizar, Trovante, Paulo de Carvalho e Rui Veloso era para mim sugestivo. Na prática, estavam em confronto duas culturas: a das Avenidas Novas, Alameda, Avenida de Roma, Vává para o mundo dos Trovante e de Paulo Carvalho e o do Porto da Cantareira e dos ambientes de Carlos Tê de Rui Veloso. Não quero ser cáustico ou cínico, mas neste cotejo os Trovante e Paulo Carvalho deram 5-0 ao universo de Rui Veloso.

Talvez pela diferente força dos convidados dos Trovante e de Paulo Carvalho relativamente aos de Rui Veloso (talvez com a exceção do belo momento que Carolina Deslandes nos proporcionou), mas em meu entender essencialmente pelo desempenho do próprio Rui Veloso, creio que a passagem do tempo que transpareceu no programa foi bastante madrasta para este último.

Não quero especular, mas a separação artística de Veloso e de Carlos Tê, que interveio no programa não a partir do estúdio da VC mas com algumas belas imagens do seu Porto a enquadrar os seus testemunhos, terá exercício algum efeito de bloqueio junto do nosso amigo de B.B. King. A sua decisão de não mais compor e de continuar a calcorrear o país com o material já criado, recriando-o sempre que possível em palco deixou alguma frustração entre os seus seguidores. E que significado deveremos atribuir ao facto da última canção do programa ser a única no reportório que não foi composta com Carlos Tê?

No programa, alguns problemas de memória reais ou preparados conduziram Veloso a intervenções banais, sem chama, tendo a mais sensaborona sido nesse sentido o seu testemunho sobre a sua canção icónica sobre o Porto sombrio e pardacento. Imagino que nesse momento a malta do Porto, recordando-se de alguns dos seus concertos no passado, terão mergulhado em deceção, pois o “blues man” cá do burgo desvalorizou e quase que colocou a sua experiência na Cidade ao nível da que passou a viver em Lisboa. Pelo contrário, os programas dos Trovante e de Paulo Carvalho marcaram uma bem mais feliz passagem do tempo e no caso deste último rendeu-se ao talento de composição.

Moral da história, a passagem do tempo foi mais madastra para o Porto da Cantareira do que para a de Lisboa das Avenidas Novas e dei comigo a pensar que talvez tenha sido um confronto metafórico que esteve ali em causa, afinal com o resultado de que os mais críticos já intuíram e perceberam há muito tempo.

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