(A gestão da pandemia é um desafio enorme e por vezes impiedoso à demonstração da competência política. Existem várias tipologias de incompetência política reveladas nos tempos incertos que temos atravessado. Da incompetência que já vem de trás à que se revela apenas perante os desafios implacáveis existe toda uma nuvem de situações de cujos contornos só teremos plena evidência quando pudermos respirar um pouco de normalidade e olharmos para o observado com a distância necessária)
Há dias, mais propriamente no dia 24 de setembro, o New York Times publicou uma violenta mas incisiva crónica sobre a situação pandémica em Espanha (link aqui) que teve rapidamente repercussão nos meios de comunicação espanhóis, umas vezes pela acutilância da crítica, outras por simples algazarra política que infelizmente tem caracterizado a Espanha dos últimos tempos.
O jornalista David Jiménez é particularmente implacável na sua análise, desconstruindo as falsas interpretações do descalabro pandémico espanhol, do tipo irresponsabilidade da juventude, modelo cultural incompatível com a distância física e social, peso da imigração na sociedade espanhola e outras que tais. Tudo isto num país que levou o confinamento a sério e que se estima (dados de Jiménez) que leva o uso de máscara a cerca de 84% da população.
Ora segundo Jiménez é essencialmente a incompetência política revelada sobretudo a partir da abertura ou desconfinamento, sem a devida preparação e planeamento desse mesmo processo de abertura que explica a situação relativamente descontrolada de aumento do número de contágios diários e de nova pressão sobre o sistema hospitalar.
Detive-me uns largos minutos a contemplar a fotografia que abre a crónica de David Jiménez. A mesa redonda da task-force dirigida por Pedro Sánchez para coordenar a gestão da pandemia é em si própria uma fotografia excecional (José Maria Cuadrado Jiménez, ena tantos Jiménez acutilantes nos últimos dias), mas enganosa. Pergunto, sem a mínima intenção de branquear o governo do PSOE: será que a incompetência política revelada impiedosamente por Jiménez pode ser compreendida no âmbito desta imagem? Esgota-se nestes elementos?
Penso que não. E gostaria de elencar apenas duas dimensões do problema que me levam a uma compreensão bem mais lata da incompetência política espanhola na gestão pandémica.
A primeira é a natureza intrinsecamente instável da solução política de coligação com o PODEMOS, que me faz suspeitar que apesar das suas derivas acabamos por ter sorte com o Bloco de Esquerda que nos saiu na rifa cá no burgo. Metaforicamente falando, se tivesse o PODEMOS a rondar-me a casa e a vida tenderia a reforçar consideravelmente os meus sistemas de segurança e de securitário, afianço-vos, não tenho rigorosamente nada de securitário. Mas a instabilidade política que a aproximação ao PODEMOS acabou por determinar só por mera abstração pode ser expurgada da tal incompetência política de que fala Jiménez. E já não estou a falar da negociação à peça com os nacionalismos regionalistas que vão povoando o Congresso espanhol, a qual vai destruindo a tal Espanha das nações que alguns constitucionalistas da transição democrática em Espanha imaginaram ser possível e na qual eu próprio acreditei.
Mas ainda mais grave do que esta dimensão é a da partilha de poder com as autonomias regionais. Recordo que, com o desconfinamento, Pedro Sánchez se limitou a cumprir a Constituição espanhola e os estatutos das 17 autonomias regionais. Ora a partilha da gestão pandémica em termos de governação multinível tem-se revelado uma verdadeira tragédia. Sabemos como em Portugal uma DGS esforçada se tem visto “grega” para uniformizar mensagens e de repente todos descobrimos que aparentemente temos uma caterva de epidemiologistas, virologistas e especialistas de saúde pública por todo o lado, opinando por tudo e por nada e sempre com um jornalista solícito e empenhado na sua divulgação. Imaginem agora essa situação multiplicada por 17 e rapidamente percebemos que uma dimensão importante da incompetência política está muito para além daquela mesa redonda cuja imagem abre este post.
A situação de Madrid vai ser, não tenho qualquer dúvida, passada que seja a fase mais aguda da pandemia, um caso de estudo para se compreender as misérias da governação multinível na gestão da pandemia. Claro que o estilo da azougada e insinuante Isabel Dias Ayuso, uma espécie de Arrimadas do PP mas mais instável e agressiva, que preside à Comunidade de Madrid é um rastilho de perturbação nessa governação multinível, mas o governo espanhol não está isento de culpas nos contínuos diferendos entre os dois órgãos, o central e o regional. Ainda ontem, 25, os médicos espanhóis estavam perplexos com as discrepâncias evidentes entre o ministro da saúde espanhol Illia e Ayuso que se têm multiplicado e diversificado nos últimos tempos, apesar das tréguas assinadas entre as partes.
Claro que as comunidades urbanas mais desfavorecidas de Madrid vão pagar caro estes desaforos e por isso a incompetência política integra aquela mesa mas está muito para além da mesma.
Nota final
Já perceberam que para mim, estudioso e adepto da governação multinível, essencial para uma eficaz territorialização das políticas públicas, a aproximação ao tema nunca mais será a mesma após a evidência da gestão pandémica em Espanha, mas também na Bélgica por exemplo. Os tempos da instabilidade e da fragmentação/polarização política vão ser comuns ao nosso futuro mais ou menos imediato. A experiência espanhola nesse contexto é trágica e a gestão da pandemia evidenciou-o com clareza e desassombro. A Espanha é a Espanha, bem sei, com a sua história tumultuosa. Mas é também o modelo de estudo que temos para uma mais avançada governação multinível, dado o caráter extremamente desenvolvido das suas autonomias regionais, particularmente das chamadas autonomias históricas. Claro que pandemias como esta não há muitas, felizmente. Mas os tempos em que ela nos apanhou, esses sim, vão ser cada vez mais frequentes.
Por isso, a minha perspetiva da governação multinível não mais será a mesma.
Para memória futura.
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