quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A CONTRADIÇÃO AMERICANA

 

 Taxa de incidência de perturbação mental nos EUA

(David Blanchflower e Andrew Oswald (2020), "Trends in Extreme Distress in the United States,
1993–2019", Americam Journal of Public Health", outubro

(Já compreenderam que um dos temas de reflexão/preocupação deste blogue é a contradição existente entre as evidências cada vez mais abundantes de que a sociedade americana está num período de penosidade assinalável e a persistência da confiança pelo menos parcial numa Presidência que não faz mais do que agravar e reproduzir essa penosidade. Trago hoje nova evidência científica sobre essa contradição, o que vai adensando o mistério.)

A investigação de Angus Deaton e Anne Case (link aqui para referência neste blogue) sobre a relativamente rápida mudança observada nas condições de morbilidade da sociedade americana contribuiu para levantar a ponta do véu. Para além dos grupos sociais historicamente mal tratados pela sociedade americana, negros e hispânicos, os dados de Deaton e Case mostraram um grupo etário da chamada meia-idade, branco, com condições de morbilidade bastante acima da média americana e uma abrupta descida da esperança de vida, claramente associados ao uso de drogas, do álcool e de um consumo de grandes proporções de barbitúricos, suicídio e uma variedade imensa de patologias do fígado (link aqui para outra referência neste blogue).

Os dados de Deaton e Case trouxeram para a opinião pública algo que se pressentia na vida diária das principais cidades americanas em conformidade com a degradação considerável das condições de distribuição do rendimento observadas na economia americana.

A investigação que trago hoje para a nossa reflexão tem a ela associado um nome de um economista razoavelmente conhecido nas escolas de economia em Portugal, particularmente os que investigam na área da economia do trabalho e também do empreendedorismo como capacidade por vezes latente mas sociedades, David Blanchflower. O artigo, escrito conjuntamente com Andrew Oswald, presumo que seu doutorando, trabalha um indicador de perturbação mental extrema, para caracterizar desse ponto de vista a evolução da sociedade americana entre 1993 e 2019.

Tais como os dados de Deaton e Case, as evidências de Blanchflower e Oswald revelam o agravamento da situação social americana. A incidência desta perturbação mental praticamente que duplica neste período, passando de 3,6 para 6,4%. O curioso é que para os grupos etários trabalhados por Deaton e Case a incidência do fenómeno mais do que duplica, de 4,8 para 11,5%. Mais importante ainda a investigação realizada aponta para que a incapacidade de encontrar trabalho representa do ponto de vista pessoal o principal fator de previsibilidade da perturbação assinalada, com o declínio do peso do emprego na indústria transformadora a assumir-se como o principal elemento no plano espacial de conformidade com a referida perturbação.

Podem questionar os mais rezingões que as percentagens não assustam. Convém não ignorar que não estamos perante perturbações menores. A relação entre as duas investigações sugere projeção na morbilidade e na redução da esperança de vida, afinal um indicador básico e estrutural das condições de vida.

E por detrás do fenómeno encontramos como seria de esperar na sociedade americana o problema grave da desindustrialização, um misto de incidência da globalização e do progresso tecnológico, temas que o populismo ululante de Trump tanto tem explorado.

Ou seja, com exigência embora de evidência mais conclusiva, a perturbação patológica analisada no vastíssimo trabalho de inquirição de Blanchflower e Oswald cruza o universo de captação da ascensão de Trump.

Este tipo de declínio americano, que acontece em grande medida já com as parangonas do “We will make America great again” (uma fórmula de eleição do populismo cleptocrático) é inapelavelmente descrito por Bradford DeLong: “A esperança de vida à nascença nos EUA é hoje de 78,6 anosLife expectancy at birth, o que contrasta com os valores de 84,5 para o Japão, de 85,1 em Singapura, de 84,3 na Suiça, de 83,1 em França e de 80,9 na Alemanha. O valor dos EUA está em linha com o da Polónia, Tunísia, Cuba (que ironia!), Nicarágua (ainda mais irónico) e Albânia e está abaixo dos valores do Peru, Colômbia, Chile, Jordânia e Sri Lanka e só um ano acima do da China.  Nos tempos correntes, os EUA têm 300 mortes/dia por cem milhões de habitantes por COVID-19. O Reino Unido, o Japão, a Itália, a Alemanha e o Canadá têm cada um menos de 10 mortes” (link aqui).

Num comentário à breve descrição do declínio americano realizada por DeLong, William Meyer (link aqui) alerta-nos para o facto desse declínio ter raízes históricas profundas, ainda que se tenha manifestado mais recentemente. As tendências da sociedade americana que conduziram a esta expressão recente de declínio são praticamente constitutivas da sociedade americana: “A verdade é, todavia, que todas as tendências que nos conduziram a este declínio são bastante antigos. O racismo branco – baseado na exploração económica massiva dos nativos americanos, negros e imigrantes só gradualmente admitidos na “casa” americana constituiu um significativo defeito da América desde que os nossos pais nasceram. A influência maligna da grande riqueza constitui um problema desde o New Deal – se olharmos do ponto de vista histórico todos os aspetos do conservadorismo foram sempre cuidadosamente regados e fertilizados, senão virtualmente retirados do ar mais fino pelos ultraconservadores homens de negócios de grande riqueza.”

Pergunto-me o que é que os Democratas têm a dizer sobre isto? Algo de importante e com impacto? Em caso afirmativo, existe oportunidade de mudança. Se titubearem, estaremos todos feitos.

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