quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A INSUSTENTÁVEL INCONVENIÊNCIA DE UM HARD BREXIT

 

(O comportamento dos atores no processo de negociação já é profusamente conhecido. Hoje, por mais paradoxal que o possa parecer, a probabilidade de um hard Brexit é mais elevada do que uma versão mais soft do acordo. Não é difícil perceber que essa conclusão está em linha com a disrupção política e do bom senso dos conservadores ingleses, onde por via da linha Boris abunda uma mais profunda insensibilidade pelo sofrimento alheio e dos que não puderam estudar em Eaton. Mas essa insensibilidade é má conselheira e o mais certo é o desenlace do Brexit acabar por destruir os princípios supostamente justificativos da insistência no LEAVE. Explico-me.)

Se tivermos a boa vontade de procurar um racional para o Brexit, o que é mesmo um ato de profunda boa vontade pois o timoneiro Johnson acabou por ser empurrado pelas circunstâncias para uma liderança inesperada, para ele próprio, poderíamos perceber que lá no fundo está o argumento do “UK great again” ou na sua formulação mais restrita, “England Great again”. Os populismos de recorte nacionalista usam frequentemente, quase sempre com êxito, diga-se, esta fórmula. Não é difícil produzir uma narrativa saudosista, neste caso com cores imperiais mesmo amarelecidas, que vá bem fundo nas memórias coletivas, tanto mais facilitado quanto mais a insularidade se tiver cansado do cosmopolitismo. Até porque no caso dos britânicos esse esplendor não está assim tão longe como isso. Mais dificuldade terá o nacionalismo em Portugal, pois não só o esplendor já se perdeu nas “brumas da memória”, como em contraponto a integração europeia foi a mãe de todas as esperanças de um modelo social e económico definitivamente contrário ao atraso atávico a que o salazarismo nos condenou.

O problema é que os britânicos têm em melhor conta o seu país do que o estado real das coisas o permite corroborar. A força atrativa do esplendor imperial ofusca a memória recente e, assim, os que se queriam ver livres quanto mais depressa possível das pretensas burocracias comunitárias regulamentares, que os funcionários e deputados britânicos na União se encarregaram muito profissionalmente de compor o melhor possível, não compreenderam bem o que aconteceu ao país nesta década. Guiados pelo conservadorismo de Cameron e Osborne e largamente favorecidos por um idiota retrógrado, Corbyn, que pensou que o mundo ficou preso e imóvel a partir dos anos 70, os Tories, com moeda própria e capacidade praticamente ilimitada de endividamento, escacaram com a sua estúpida política de austeridade o que poderia ser uma democracia com capacidade de distribuir os benefícios do desenvolvimento. Inebriados pela financeirização da sua economia e pela volúpia do high-tech, os conservadores deram cabo da qualidade inequívoca de alguns dos seus serviços públicos simplesmente por ideologia e sem evidências palpáveis para demonstrar as pretensas vantagens da via austeritária. Isto é tão evidente que, depois de eleições que venceu cavalgando apenas o regresso a tempos idos, Johnson anunciou avultados e generosos programas de investimento público para almofadar os possíveis efeitos de um Brexit mais descontrolado do que o sugerido pela arte das negociações. Mas o problema é que o edifício já estava abalado e nem por sombras correspondia à solidez da obra do porquinho mais diligente e avisado.

Compreende-se em que estado deplorável a sociedade britânica foi apanhada na curva da pandemia. Por isso, a aprovação de legislação para validar a falta de palavra nas negociações com a União mantém totalmente o mesmo padrão de fuga para a frente e insensibilidade total à falta de decência na política e sobretudo ao sofrimento dos mais desfavorecidos.

A promessa do esplendor de outros tempos vai provavelmente acabar mal, até porque na oposição Corbyn já foi e está um trabalhista equilibrado, consistente e pelo menos em linha com o seu tempo.

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