quinta-feira, 30 de abril de 2020

CARAS DE ABRIL 2020

(James Ferguson, http://www.ft.com)

(Felipe Hernández, “Caín”, http://www.larazon.es)

Abril foi talvez o mês mais atípico de toda a minha existência. Chegamos ao seu final algo exauridos mas, sobretudo, com um imenso ceticismo quanto ao que nos vai sendo contado às pingas, seja por razões de desconhecimento e incerteza fundamental seja também por razões de algum paternalismo desvalorizador de uma sadia partilha cidadã. Adiante neste tópico, pelo menos por hoje.

Porque aquilo com que hoje vos venho maçar para um encerramento diferente desse tal mês estranho vai no sentido de aqui deixar registada a imagem caricaturada de alguns nomes que marcaram, para positivos ou para negativos e com relação direta/indireta ou nula ao coronavírus e suas várias implicações, os acontecimentos que nos foram sendo dados a conhecer dia após dia.

Para os lados do continente americano, e na direção norte, um choque entre Trump (já não há adjetivos para o qualificar!) e o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, este que esteve à altura da gravidade da situação e não se coibiu de afrontar a bizarria autoritária do presidente.

(Joe Cummings, http://www.ft.com)

Mais a sul, a boçal figura de Bolsonaro não deixa espaço a outras, sendo que a sua zanga com Sérgio Moro e a saída deste do governo poderão ficar a assinalar o princípio de um fim que os brasileiros mereciam lhes fosse oferecido.

(Agustin Sciammarella, http://elpais.com)

(Ryan Olbrysh, https://www.economist.com)

Em paragens asiáticas, Xi a proclamar um ainda muito impreciso regresso à normalidade na sua China (tanto haverá ainda a esclarecer sobre o papel do país no aparecimento e desenvolvimento do surto, crescendo em simultâneo as expectativas quanto ao impacto no regime de tudo isto, oscilando os especialistas entre os ganhos decorrentes de uma posição internacional em vias de reforço e as perdas associadas a quebras no crescimento, a um sistema financeiro cada vez mais debilitado e a uma complexa e contraditória situação política e social interna) e o ditador norte-coreano a ser dado por desaparecido (ou eventualmente morto) e assim fazendo recrudescer os ecos de uma sua substituição pela irmã que sempre o acompanhou de perto (uma Kim, Yo-jong, a suceder a um Kim, Jong-un).

(Patrick Blower, http://www.telegraph.co.uk)

(Antonio Rodriguez,  http://www.cartoonmovement.com)

Na Europa, por fim, assistimos ao regresso de Merkel à arena política europeia (impondo muito cautelarmente a sua autoridade continental) e, paralelamente, ao regresso físico de Boris (recuperado da doença que o hospitalizou e agora senhor de um discurso irreconhecível quando relembradas as barbaridades que exibiu antes de ficar infetado).

(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)

(Patrick Blower, http://www.telegraph.co.uk)

Venha agora o aguardado maio e, para que dê certo (o que quer que isso signifique!), não se esqueçam de pôr nesta noite as devidas flores no ferrolho da porta...

PROFESSORES



(Uma das prováveis consequências do vendaval pandémico que estamos a enfrentar é a ocorrência de mudanças no reconhecimento, ia dizer valor, social de alguns agentes e profissões. Tenho a perceção de que algo vai acontecer quanto ao reconhecimento social do papel dos professores, se não fora por outros motivos pelo facto de alunos e famílias aumentarem os seus níveis de convivência comum em torno da Escola e das aprendizagens.

Tenho insistido na ideia de que nunca deveremos esquecer o contexto de desigualdade em que as práticas educativas acontecem, o que condiciona fortemente os seus resultados, e o seu recrudescimento em tempos de invenção e adaptação pedagógicas. No pressuposto de que não o esquecemos e que as políticas públicas intervirão futuramente no sentido de recriar melhores condições de equidade na aprendizagem, tenho a perceção de que estão a acontecer coisas de grande alcance nas práticas educativas que tem sido possível concretizar em tempo de pandemia e confinamento. Claro que existe sempre o enviesamento de tentar generalizar a partir do que nos é mais próximo. É também óbvio que as famílias com condições logísticas e de organização do seu próprio trabalho desempenham um papel crucial na função acompanhamento, antes exercida pelos professores em contexto de sala de aula. É também possível que o ensino à distância tenha induzido alguns professores a perder o equilíbrio nas cargas de trabalho exigidas aos alunos. Tudo isso é admissível e tenho ecos de que não o devemos ignorar. Mas que há coisas importantes a acontecer no âmbito de todo este processo adaptativo parece-me evidente, pelo menos do ponto de vista do meu universo de referências.

Um dos elementos virtuosos da adaptação que tem vindo a corporizar o esforço coletivo é o da criação de condições para uma mais razoável capacitação de alunos do ponto de vista da autoformação. Gostaria de ter elementos mais minuciosos para verificar se esta tendência está a disseminar-se por todos os níveis de ensino. Mas ao contrário da tendência que alimentámos ao longo do muito tempo, os tempos de adaptação e criatividade de hoje geram por inerência o estímulo ao trabalho pessoal do aluno. Estamos no bom caminho e sou dos que penso que esse trabalho pessoal é crucial para os alunos ganharem confiança e perceberem que o trabalho compensa. Espero sinceramente que estas condições permitam com os investimentos adequados em termos de metodologias pedagógicas que o ensino em Portugal passe a valorizar mais a criatividade, a resolução de problemas, a autoformação e a organização do trabalho pessoal.

Mas antecipo também que todo este processo adaptativo de aprendizagem nos conduzirá a uma recuperação pelo menos parcial do reconhecimento do papel dos professores. É verdade que qualquer patetice governamental ou sindical conducente a novas derivas de negociação pode perturbar a recuperação desse conhecimento. Mas apesar desse risco acho que os professores vão subir lugares na escala do reconhecimento do seu papel essencial. As crianças e os alunos em geral vão ser os portadores da mensagem junto das famílias.

Percorrendo matinalmente o New York Times que gostaria ainda, já na onda dos setenta, poder ler em papel numa cafetaria de Greenwhich, Tribeca ou das imediações do Central Park em Nova Iorque com American cofee e apple pie, encontrei esta bela referência ao papel dos professores, que é uma boa forma de enriquecer o meu ponto:

“Os professores são os agrupadores (coletores) originais. Têm a responsabilidade de reunir um grupo e de pensar como criar uma experiência para o todo, dia a dia. E os professores estão no mundo da transformação. No fim de cada ano letivo, é pressuposto que os jovens saiam mudados.
É uma tarefa de grande exigência – particularmente agora, quando somos obrigados a limitar o que podemos fazer em conjunto e que estamos a ensinar no Zoom”.
(link aqui)

É bonito e tenho grandes saudades dos meus tempos letivos de então, sem pandemia.

APROXIMANDO AO SUBSTANTIVO


Já aqui foi elogiada a atuação do ministro da Economia nesta crise pandémica, caraterizando-o aliás como uma espécie de oásis que emergiu num relativo deserto envolvente. Não obstante, quando li um artigo de Francisco Louçã (FL) no “Expresso Diário” que lhe é criticamente dirigido em razão da sua declaração em entrevista à RTP segundo a qual despesas do Estado hoje são impostos amanhã, não pude deixar de, por um lado, aceitar que FL tem um ponto a crédito da sua argumentação confrontativa (que chama inclusivamente a atenção para o facto de existir uma manifesta contradição entre aquela declaração e o posicionamento do primeiro-ministro de encarar a austeridade como uma má e irrepetível solução) e de, por outro, reconhecer que FL colocou na agenda um tema que bem mereceria um aprofundado, rigoroso e desapaixonado debate público.

Sem prejuízo, a perspetiva de FL não é isenta de uma indisfarçada marca político-ideológica e, nessa medida, não deixa de também encerrar um possível grau de simplificação facilitista – afirma ele: “como só a recuperação da economia poderia garantir o aumento da receita fiscal sem aumentar as taxas dos impostos, a chave para a salvação é manter o emprego, preservar a procura agregada, restabelecer as cadeias produtivas, ou seja, investir mais para evitar a queda”. Sendo ainda que tudo isto se insere num quadro em que, e demos as voltas que quisermos, o que vai estar aí ao virar da nossa esquina coletiva será uma imensa e terrível crise económica e social, necessariamente tradutível num desemprego sem paralelo e numa incontornável dose de austeridade, dois fenómenos cujos efeitos sempre se tentarão mitigar à outrance mas dominados por respostas (ou esforços nessa direção) obrigatoriamente atiradas para moldes muito defensivos e dependentes do modo como se comportarem várias causas exógenas (Europa incluída); a ser assim, como tudo indica, conheceremos um relançamento de lenta e difícil maturidade e com pressupostos de sucesso mínimo diretamente proporcionais a lograrem-se escapadelas conseguidas em relação a tentações primárias de recorrência e mais do mesmo, assentes em encomendas eminentemente corporativas e enviesadas pela força do lóbi, do imediatismo e do marketing político quando precisaríamos, ao invés, de explorar formas sólidas de criatividade “fora da caixa”, i.e., algo de que andamos largamente arredados desde há décadas e algo que não perscruto no horizonte ao meu alcance.

(a partir de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

quarta-feira, 29 de abril de 2020

A PRESENÇA DO PETRÓLEO NA CRISE

(Khalid Cherradi, https://www.cartoonmovement.com)

Há um registo recente que não quero aqui deixar passar em claro: o dos desenvolvimentos ocorridos no mercado petrolífero nas últimas semanas. E o certo é que há sínteses que pela sua capacidade descritiva dispensam quaisquer esforços de inventividade para apontar o essencial na matéria em causa, e esse foi o caso de um dos résumés matinais da “The Economist” – que rezava assim, em dois tempos:

· “Se precisássemos de outro sinal de que a economia global foi virada de cabeça para baixo, ele veio na Segunda-Feira quando o preço do petróleo nos EUA se tornou negativo pela primeira vez na história. A produção excessiva diante da baixa procura global sobrecarregou a capacidade crucial de armazenamento, forçando os vendedores a pagar aos compradores para que lhes tirassem o petróleo extra das mãos. O jogo da galinha à escala global entre os produtores de petróleo resultou num crash.”

· “A crise do petróleo é principalmente human-made. Enquanto os confinamentos por coronavírus achataram o consumo de petróleo, o vasto excesso de oferta global decorre de uma guerra de preços liderada pela Arábia Saudita e pela Rússia. O acordo do presidente Donald Trump no sentido de uma redução da produção provou ter chegado tarde demais e ter sido demasiado pequeno. Em resultado, um enorme e desnecessário golpe na economia global e um setor de petróleo dos EUA a enfrentar um futuro ainda mais incerto.”

Os gráficos seguintes são alguns dos mais representativos que me passaram pela mão nestes dias, sendo claro que eles convergem nos elementos mais relevantes, embora possam divergir nas suas opções formais ou em termos da periodização retida. Vejamos, no tocante aos preços: enquanto o primeiro evidencia que eles estão ao nível de há 160 anos atrás, os segundos salientam o mais baixo registo histórico de sempre (como aliás também em termos de procura); deles decorre ainda a clara perceção de que esta crise em nada se assemelha a anteriores, trate-se dos anos pré-OPEP, dos tempos dos “saudosos” choques petrolíferos dos anos 70 do século passado, dos efeitos dos variados conflitos bélicos subsequentemente ocorridos no Médio Oriente ou da mais recente crise financeira. Por outro lado, observou-se também um outro fenómeno inédito no mercado petrolífero com o preço do barril a ter chegado a atingir valores negativos na negociação em Nova Iorque (refletindo, numa lógica de futuros para entregas em maio, quanto a pandemia se refletiu num colapso da procura de crude e numa consequentemente expectável dificuldade de armazenamento de excedentes significativos por parte dos produtores). Tudo isto sem esquecer uma componente largamente política que desde sempre enforma o mercado em causa, ainda que com variabilidades conjunturais marcantes, como aliás ficou à vista no braço-de-ferro que precedeu os episódios aqui assinalados empiricamente entre a Arábia Saudita e a Rússia.

Um apontamento final e complementar, que tende a ganhar especial sentido perante o terrível impacto da presente crise em toda a parte do mundo, é o da confirmação da embaraçosa situação que se depara aos países com economias largamente dependentes do petróleo. Os gráficos finais deste post ilustram-na bem, quer no plano da contração estimada para essas economias quer no plano da forte e assustadora ligação entre o curso do crude e a sustentação das suas contas públicas (breakeven orçamental altamente funcionalizado ao preço do barril), tudo prenunciando maus bocados a irem ser vividos naquelas paragens.




terça-feira, 28 de abril de 2020

POLÍTICA, CIÊNCIA E COMPORTAMENTOS



(Tenho um especial interesse pela complexa relação entre política e ciência, ou se preferirem entre decisão política e conhecimento. Os tempos que vivemos trouxeram novos cambiantes e matizes a essa relação. Mas o que para mim é mais relevante é que esses tempos trouxeram à dita relação um outro elemento, que com ela interage, os comportamentos humanos no seu mundo de imperfeição.

Navego pelo interesse na relação entre política e ciência, decisão política e conhecimento, já há muito tempo. Tenho alguma experiência dessa navegação, já o fiz por diferentes mares. Mas continuo a sentir-me um navegador inseguro.

Há um artigo de John Friedmann do Outono de 1993, publicado no Journal of the American Planning Association que nunca mais me saiu da memória. Nesse artigo, Friedmann propõe o que considero ser uma das mais lapidares conceptualizações do planeamento: “O planeamento é aquela prática profissional que procura especificamente conectar formas de conhecimento com formas de ação no domínio público”. Por esta já longa vida de aprendiz de feiticeiro pelos mundos cruzados da reflexão académica e do planeamento, aquela ideia de Friedmann nunca me abandonou e foi mesmo um marco. Permitiu-me refletir sobre práticas desenvolvidas em períodos anteriores a ter contactado com aquele artigo e, simultaneamente, orientou-me nas práticas futuras, pois raramente refleti por refletir e sem ligação a uma causa, área ou projeto de intervenção.

Já estive próximo de políticos muito diversos, dos refletidos aos impulsivos, dos que procuram a adrenalina de uma reunião ou meeting aos que preferem o apoio de um bom livro ou de um filme estimulante, dos que valorizam o conhecimento de outros até aos que o usam descaradamente e sem pudor. Por isso, tive muito tempo para compreender a importância daquele conceito de planeamento. Não posso dizer que tudo o que fiz na minha vida profissional se encaixe sem problemas nessa ideia de planeamento, mas não tenho dúvidas que anda lá por muito perto e que melhor do que ninguém estou desperto para a complexidade da relação entre decisão política e conhecimento.

Tudo se passa como se a pandemia viesse realimentar esse fogo, como se as circunstâncias do tempo e das coisas me fizessem revisitar continuamente esse tema.

A pandemia despertou na ciência perturbação, angústia, interrogações constantes e dilemas. Nada de substancialmente diferente para quem encara a ciência honestamente e com rigor. Mas tudo isso se combinou com uma necessidade imperiosa de produzir resultados ou conhecimento num tempo demasiado rápido que não é o tempo normal da ciência. Claro que diferentes ciências que estão à mesa da compreensão do fenómeno pandémico se encontram em estádios de desenvolvimento extremamente avançados, como a virologia, a biologia, a bioquímica, a epidemiologia, a matemática, a medicina em geral, o estudo dos sistemas imunitários, sei lá o que mais. Mas o raio do vírus é novo, resiste às analogias com outras famílias e mesmo dentro da mesma família dos coronavírus. E sem abdicar dos seus princípios, típicos do conhecimento analítico, a ciência assumiu e bem uma atitude prudencial. Aristóteles teria gostado desta atitude. Prudencialmente, a ciência expôs-se e expôs as suas dúvidas e interrogações, com exceção de alguns radicais, cheios de certezas precoces, mas que considero terem sido rapidamente postos fora de combate e ultrapassados pela realidade pura e dura da propagação e dos seus efeitos devastadores.

Foi prudencialmente e com as suas interrogações que a ciência se colocou perante a decisão política. E, para espanto de muitos, em tempos em que o escárnio e mal dizer sobre a política se multiplicou viralmente por múltiplos setores das sociedades, a crise pandémica veio paradoxalmente devolver à política, pela positiva ou pela negativa, a relevância da sua decisão. Posso estar a ser um otimista inveterado mas acho que uma grande maioria do cidadão comum se apercebeu das condições concretas em que as grandes decisões políticas têm de ser tomadas. Com indeterminação, riscos e tendo de recorrer a conhecimento parte do qual nesta crise foi claramente prudencial. Uns decidiram bem, outros fizeram-no mal, para o bem e para o mal das populações sob o efeito das suas decisões. Sempre entendi assim a decisão política e sempre valorizei essa capacidade que muitos têm de decidir, seja lá com que zona do cérebro, em condições de profunda indeterminação. O que para mim é novo é a relevância da prudência, Foucault chamar-lhe-ia a fronésis, seja no contributo da ciência, seja no da política, para a gestão desta crise.

Se a intuição não me falha, vamos entrar num período em que a complexidade dessa relação aumentará. A flexibilização progressiva do desconfinamento vai introduzir no processo um terceiro elemento, que não esteve ausente é certo até agora, mas que adquire agora uma nova importância. Estou a referir-me aos comportamentos humanos, cujo padrão de rigor e consciência cívica será determinante para assegurar o controlo da disseminação em margens de evolução compatíveis com o desconfinamento progressivo e não com a sua constante interrupção. A diversidade desses modelos de comportamento é tão elevada que só por acaso do destino teremos uma evolução também prudencial. Podemos evoluir dos comportamentos de resistência à abertura por simples motivos de medo até ao extremo dos temerários, passando por uma mescla gigantesca de situações logísticas e sociais de necessidades absolutas e imperiosas e nem todos têm nervos de aço.

Intuo também que para controlar a heterogeneidade desses comportamentos a exemplaridade da relação entre decisão política e ciência vai ter de subsistir e até erguer-se a estádios mais exigentes.

Já o sabia, mas a forma como conhecimento analítico-científico, técnico e prudencial se combinam na evolução das sociedades para níveis superiores da sua organização e bem-estar é um produto raro das sociedades sabedoras.