terça-feira, 28 de abril de 2020

POLÍTICA, CIÊNCIA E COMPORTAMENTOS



(Tenho um especial interesse pela complexa relação entre política e ciência, ou se preferirem entre decisão política e conhecimento. Os tempos que vivemos trouxeram novos cambiantes e matizes a essa relação. Mas o que para mim é mais relevante é que esses tempos trouxeram à dita relação um outro elemento, que com ela interage, os comportamentos humanos no seu mundo de imperfeição.

Navego pelo interesse na relação entre política e ciência, decisão política e conhecimento, já há muito tempo. Tenho alguma experiência dessa navegação, já o fiz por diferentes mares. Mas continuo a sentir-me um navegador inseguro.

Há um artigo de John Friedmann do Outono de 1993, publicado no Journal of the American Planning Association que nunca mais me saiu da memória. Nesse artigo, Friedmann propõe o que considero ser uma das mais lapidares conceptualizações do planeamento: “O planeamento é aquela prática profissional que procura especificamente conectar formas de conhecimento com formas de ação no domínio público”. Por esta já longa vida de aprendiz de feiticeiro pelos mundos cruzados da reflexão académica e do planeamento, aquela ideia de Friedmann nunca me abandonou e foi mesmo um marco. Permitiu-me refletir sobre práticas desenvolvidas em períodos anteriores a ter contactado com aquele artigo e, simultaneamente, orientou-me nas práticas futuras, pois raramente refleti por refletir e sem ligação a uma causa, área ou projeto de intervenção.

Já estive próximo de políticos muito diversos, dos refletidos aos impulsivos, dos que procuram a adrenalina de uma reunião ou meeting aos que preferem o apoio de um bom livro ou de um filme estimulante, dos que valorizam o conhecimento de outros até aos que o usam descaradamente e sem pudor. Por isso, tive muito tempo para compreender a importância daquele conceito de planeamento. Não posso dizer que tudo o que fiz na minha vida profissional se encaixe sem problemas nessa ideia de planeamento, mas não tenho dúvidas que anda lá por muito perto e que melhor do que ninguém estou desperto para a complexidade da relação entre decisão política e conhecimento.

Tudo se passa como se a pandemia viesse realimentar esse fogo, como se as circunstâncias do tempo e das coisas me fizessem revisitar continuamente esse tema.

A pandemia despertou na ciência perturbação, angústia, interrogações constantes e dilemas. Nada de substancialmente diferente para quem encara a ciência honestamente e com rigor. Mas tudo isso se combinou com uma necessidade imperiosa de produzir resultados ou conhecimento num tempo demasiado rápido que não é o tempo normal da ciência. Claro que diferentes ciências que estão à mesa da compreensão do fenómeno pandémico se encontram em estádios de desenvolvimento extremamente avançados, como a virologia, a biologia, a bioquímica, a epidemiologia, a matemática, a medicina em geral, o estudo dos sistemas imunitários, sei lá o que mais. Mas o raio do vírus é novo, resiste às analogias com outras famílias e mesmo dentro da mesma família dos coronavírus. E sem abdicar dos seus princípios, típicos do conhecimento analítico, a ciência assumiu e bem uma atitude prudencial. Aristóteles teria gostado desta atitude. Prudencialmente, a ciência expôs-se e expôs as suas dúvidas e interrogações, com exceção de alguns radicais, cheios de certezas precoces, mas que considero terem sido rapidamente postos fora de combate e ultrapassados pela realidade pura e dura da propagação e dos seus efeitos devastadores.

Foi prudencialmente e com as suas interrogações que a ciência se colocou perante a decisão política. E, para espanto de muitos, em tempos em que o escárnio e mal dizer sobre a política se multiplicou viralmente por múltiplos setores das sociedades, a crise pandémica veio paradoxalmente devolver à política, pela positiva ou pela negativa, a relevância da sua decisão. Posso estar a ser um otimista inveterado mas acho que uma grande maioria do cidadão comum se apercebeu das condições concretas em que as grandes decisões políticas têm de ser tomadas. Com indeterminação, riscos e tendo de recorrer a conhecimento parte do qual nesta crise foi claramente prudencial. Uns decidiram bem, outros fizeram-no mal, para o bem e para o mal das populações sob o efeito das suas decisões. Sempre entendi assim a decisão política e sempre valorizei essa capacidade que muitos têm de decidir, seja lá com que zona do cérebro, em condições de profunda indeterminação. O que para mim é novo é a relevância da prudência, Foucault chamar-lhe-ia a fronésis, seja no contributo da ciência, seja no da política, para a gestão desta crise.

Se a intuição não me falha, vamos entrar num período em que a complexidade dessa relação aumentará. A flexibilização progressiva do desconfinamento vai introduzir no processo um terceiro elemento, que não esteve ausente é certo até agora, mas que adquire agora uma nova importância. Estou a referir-me aos comportamentos humanos, cujo padrão de rigor e consciência cívica será determinante para assegurar o controlo da disseminação em margens de evolução compatíveis com o desconfinamento progressivo e não com a sua constante interrupção. A diversidade desses modelos de comportamento é tão elevada que só por acaso do destino teremos uma evolução também prudencial. Podemos evoluir dos comportamentos de resistência à abertura por simples motivos de medo até ao extremo dos temerários, passando por uma mescla gigantesca de situações logísticas e sociais de necessidades absolutas e imperiosas e nem todos têm nervos de aço.

Intuo também que para controlar a heterogeneidade desses comportamentos a exemplaridade da relação entre decisão política e ciência vai ter de subsistir e até erguer-se a estádios mais exigentes.

Já o sabia, mas a forma como conhecimento analítico-científico, técnico e prudencial se combinam na evolução das sociedades para níveis superiores da sua organização e bem-estar é um produto raro das sociedades sabedoras.

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