(Tenho um especial interesse pela complexa relação entre
política e ciência, ou se preferirem entre decisão política e conhecimento. Os
tempos que vivemos trouxeram novos cambiantes e matizes a essa relação. Mas o que para mim é mais relevante é que esses tempos trouxeram à dita
relação um outro elemento, que com ela interage, os comportamentos humanos no
seu mundo de imperfeição.
Navego pelo interesse
na relação entre política e ciência, decisão política e conhecimento, já há
muito tempo. Tenho alguma experiência dessa navegação, já o fiz por diferentes
mares. Mas continuo a sentir-me um navegador inseguro.
Há um artigo de John
Friedmann do Outono de 1993, publicado no Journal of the American Planning
Association que nunca mais me saiu da memória. Nesse artigo, Friedmann
propõe o que considero ser uma das mais lapidares conceptualizações do
planeamento: “O planeamento é aquela prática profissional que procura
especificamente conectar formas de conhecimento com formas de ação no domínio
público”. Por esta já longa vida de aprendiz de feiticeiro pelos mundos
cruzados da reflexão académica e do planeamento, aquela ideia de Friedmann
nunca me abandonou e foi mesmo um marco. Permitiu-me refletir sobre práticas
desenvolvidas em períodos anteriores a ter contactado com aquele artigo e,
simultaneamente, orientou-me nas práticas futuras, pois raramente refleti por
refletir e sem ligação a uma causa, área ou projeto de intervenção.
Já estive próximo de
políticos muito diversos, dos refletidos aos impulsivos, dos que procuram a
adrenalina de uma reunião ou meeting aos que preferem o apoio de um bom livro
ou de um filme estimulante, dos que valorizam o conhecimento de outros até aos
que o usam descaradamente e sem pudor. Por isso, tive muito tempo para
compreender a importância daquele conceito de planeamento. Não posso dizer que
tudo o que fiz na minha vida profissional se encaixe sem problemas nessa ideia
de planeamento, mas não tenho dúvidas que anda lá por muito perto e que melhor
do que ninguém estou desperto para a complexidade da relação entre decisão política
e conhecimento.
Tudo se passa como se
a pandemia viesse realimentar esse fogo, como se as circunstâncias do tempo e
das coisas me fizessem revisitar continuamente esse tema.
A pandemia despertou
na ciência perturbação, angústia, interrogações constantes e dilemas. Nada de
substancialmente diferente para quem encara a ciência honestamente e com rigor.
Mas tudo isso se combinou com uma necessidade imperiosa de produzir resultados
ou conhecimento num tempo demasiado rápido que não é o tempo normal da ciência.
Claro que diferentes ciências que estão à mesa da compreensão do fenómeno
pandémico se encontram em estádios de desenvolvimento extremamente avançados,
como a virologia, a biologia, a bioquímica, a epidemiologia, a matemática, a
medicina em geral, o estudo dos sistemas imunitários, sei lá o que mais. Mas o
raio do vírus é novo, resiste às analogias com outras famílias e mesmo dentro
da mesma família dos coronavírus. E sem abdicar dos seus princípios, típicos do
conhecimento analítico, a ciência assumiu e bem uma atitude prudencial.
Aristóteles teria gostado desta atitude. Prudencialmente, a ciência expôs-se e
expôs as suas dúvidas e interrogações, com exceção de alguns radicais, cheios
de certezas precoces, mas que considero terem sido rapidamente postos fora de
combate e ultrapassados pela realidade pura e dura da propagação e dos seus efeitos
devastadores.
Foi prudencialmente e
com as suas interrogações que a ciência se colocou perante a
decisão política. E, para espanto de muitos, em tempos em que o escárnio e mal
dizer sobre a política se multiplicou viralmente por múltiplos setores das sociedades,
a crise pandémica veio paradoxalmente devolver à política, pela positiva ou
pela negativa, a relevância da sua decisão. Posso estar a ser um otimista
inveterado mas acho que uma grande maioria do cidadão comum se apercebeu das
condições concretas em que as grandes decisões políticas têm de ser tomadas.
Com indeterminação, riscos e tendo de recorrer a conhecimento parte do qual
nesta crise foi claramente prudencial. Uns decidiram bem, outros fizeram-no
mal, para o bem e para o mal das populações sob o efeito das suas decisões.
Sempre entendi assim a decisão política e sempre valorizei essa capacidade que
muitos têm de decidir, seja lá com que zona do cérebro, em condições de
profunda indeterminação. O que para mim é novo é a relevância da prudência,
Foucault chamar-lhe-ia a fronésis, seja no contributo da ciência, seja no da
política, para a gestão desta crise.
Se a intuição não me
falha, vamos entrar num período em que a complexidade dessa relação aumentará. A
flexibilização progressiva do desconfinamento vai introduzir no processo um
terceiro elemento, que não esteve ausente é certo até agora, mas que adquire agora
uma nova importância. Estou a referir-me aos comportamentos humanos, cujo
padrão de rigor e consciência cívica será determinante para assegurar o
controlo da disseminação em margens de evolução compatíveis com o
desconfinamento progressivo e não com a sua constante interrupção. A
diversidade desses modelos de comportamento é tão elevada que só por acaso do
destino teremos uma evolução também prudencial. Podemos evoluir dos
comportamentos de resistência à abertura por simples motivos de medo até ao extremo
dos temerários, passando por uma mescla gigantesca de situações logísticas e
sociais de necessidades absolutas e imperiosas e nem todos têm nervos de aço.
Intuo também que para
controlar a heterogeneidade desses comportamentos a exemplaridade da relação entre
decisão política e ciência vai ter de subsistir e até erguer-se a estádios mais
exigentes.
Já o sabia, mas a
forma como conhecimento analítico-científico, técnico e prudencial se combinam
na evolução das sociedades para níveis superiores da sua organização e
bem-estar é um produto raro das sociedades sabedoras.
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