quinta-feira, 23 de abril de 2020

A PARAFERNÁLIA DA RECONSTRUÇÃO



(Comecei a escrevo esta nota com o Conselho Europeu reunido sei lá através que plataforma online e apetecendo-me, nem sei bem porquê, invocar a palavra parnefália para descrever a multiplicidade de opções que estão em cima da mesa para a tentativa de transformar esta recessão na menos duradora possível. É provável que a termine já com o Conselho terminado. Alguém, um finlandês, dizia há dias que a União é sempre “crise, caos e uma solução possível”. Muito provavelmente será assim, hoje, mais uma vez. Mas só para perceber a tal parnefália de opções sugeridas é preciso resistência e paciência, muita de ambas.

Reparo agora que nos três dicionários volumosos que se escondem envergonhados numa ponta inferior da estante a palavra parnefália não consta de nenhum. Encontro-a, porém, no Google, não de forma direta mas integrando algumas frases de várias pessoas, talvez tão atraídas pela palavra como eu. Mas o melhor é regressar à palavra correta, parafernália, como alguém próximo me fez notar..

Mas voltemos ao assunto que me traz aqui.

Os líderes políticos europeus, para além de mergulhados na gestão da crise sanitária, uns mais distendidos, outros mais pressionados, e na procura de uma solução de flexibilização do confinamento que não deite tudo o até agora alcançado a perder, terão nos seus “briefings” más notícias sobre o abalo económico que a crise viral está a provocar. Uma série de indicadores macroeconómicos e de avaliação de tendências conjunturais anuncia estimativas de perda de produto e de recuo da procura global para o segundo trimestre de 2020 bem mais negras do que as estimativas mais negras tinham previsto. À necessidade de aguentar este embate no curto prazo junta-se a também necessária criação de condições para uma nova trajetória de crescimento a médio-prazo (por mais adaptável às novas circunstâncias que tenha de ser). Talvez não fosse estimável, mas seguramente cenarizável era-o. O sincronismo da situação recessiva em todo o mundo determinado pela extensão pandémica gera situações complexas de interação entre crises de oferta e de procura e aí estamos na montanha russa a descer vertiginosamente.


É certo que os EUA estão neste momento em processo de devastação. O cartoon colocado por Gustavo Pimenta na sua página de Facebook tem piada e anuncia o coronavírus a proteger-se do destrambelhado Trump. Mas é uma metáfora sobre a perigosidade a que a democracia americana está submetida. Oxalá Trump não tenha ele de fugir ao dito porque se assim acontecesse isto era sinal de uma nova tragédia americana. Mas foi na Europa que a pandemia se processou com maior intensidade e diversidade de efeitos pelo que o lógico seria esperar uma resposta em conformidade. Da tentativa de coordenação logística e operacional do combate à pandemia nem vale a pena falar. A imagem de frustração que ressaltou da intervenção de Ursula von der Leyen sobre essa matéria ficará para os anais da incapacidade política.

Por isso, é no combate à recessão que pode haver algum lavar da face. Com ajuda de imprensa especializada e recorrendo sempre que possível a documentação da própria Comissão Europeia lá tentei compreender que hipóteses estavam em jogo para além do já esgotado tema da mutualização ou não mutualização da dívida, pois já se percebeu que, na tal lógica do “crise, caos e solução possível” a mutualização não será uma delas.

A parafernália de vias é enorme, com modalidades para todos os gostos. A diplomacia de cada país estará a movimentar-se fortemente para alinhar espingardas de decisão pelas mais favoráveis para os países a braços com necessidades gigantescas de estímulo à recuperação. Pressinto que o tempo diplomático da denúncia do “repugnante” já era e que estamos em tempo do que costumo chamar diplomacia da dimensão. Hoje, o El País clamava, talvez como esforço derradeiro de dar algum alento ao errático Sánchez, que a diplomacia espanhola com Sánchez e a vice-Presidente Nadia Calviño a marcaram pontos na defesa de um plano de recuperação na ordem de 1,5 milhões de milhões de euros. Mas é preciso um curso de tecno-burocracia bruxelense para entender as alternativas.

O chamado Quadro Financeiro Plurianual (Multiannual Financial Framework ou MFF na gíria) é um dos enquadramentos possíveis. O que está em vigor termina em 2020 e a preparação de um próximo poderia ser reequacionada com este novo contexto. Mas é terreno minado. A sua preparação andava de bloqueio em bloqueio, mesmo sem pandemia. Por isso, os países mais atingidos pela recessão económica têm procurado situar o desejado Fundo de Recuperação fora do âmbito do MFF.

O montante financeiro deste Fundo tem sido falado em torno de um mínimo de 1 milhão de milhão de euros e valores superiores. Implicitamente, a perspetiva é da própria Comissão Europeia aceder em mercado a financiamento externo tentando fazê-lo às mais baixas taxas de juro possíveis. Os especialistas dizem que isso dependerá do desvio existente entre o que a CE pretende gastar e o que pode solicitar de contributos aos seus estados-membros.

A analogia (já denunciada neste blogue há dias) com a situação de guerra levou alguns protagonistas a reclamarem a utilização de dívida perpétua. O liberal belga Guy Verhofstadt foi um dos patronos da ideia. Macron, sempre original, ter-se-á batido por um instrumento de grande flexibilidade, um Special Purpose Vehicle. Segundo o que li, a probabilidade de êxito deste Veículo de Titularização (grande sofisticação) é mínima.

Restam os Fundos de Coesão, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) e a bazuca do Banco Central Europeu que a também errática Lagarde anunciou, depois de alguns passos em falso, como um Programa de Compras de títulos para a emergência pandémica, no fundo o seu “whatever it takes”.

Quanto aos Fundos de Coesão, o equilíbrio que tem sido atingido entre norte, sul e leste é praticamente insuscetível de ser alterado. Fazer passar a pandemia por este quadro tenderá a ser lido pelo leste europeu como redistribuição leste-sul e os principais beneficiários dos Fundos de Coesão a leste encarregar-se-ão de movimentar as suas hostes populistas. Para já, a programação de 2014-2020 vai rapar tudo que tem baixa probabilidade de execução para sobretudo no caso do FSE financiar as políticas ativas de emprego e de apoio ao desemprego no primeiro embate da recessão económica. Em Portugal, esse processo estará em curso. Utilizadores de FSE, acautelem-se, pois se não executaram esperem pela rapadela.

Quanto ao MEE, o que o equilíbrio de forças terá conseguido é alguma flexibilidade em termos de regras de condicionalidade e permitir que, até 2% do PIB, os países mais afetados possam utilizar o MEE para aplicar em despesas de saúde relacionada com a crise sanitária. Aqui mandou o Norte, ponto.

Finalmente, a bazuca do BCE tem algum impacto, sobretudo quando a margem do “whatever it takes” chega a admitir títulos classificados como lixo como colaterais dos empréstimos solicitados pelos bancos ao BCE. É uma bazuca em termos de dimensão, mas também é uma bazuca em termos da não defesa quanto aos efeitos que o processo terá no endividamento dos países. É uma figa para a frente. O BCE não define o que fará quando os países que mais recorrerem ao processo forem pressionados em termos de desvio de spreads face à Alemanha. E aí iremos nós outra vez na vertigem da montanha russa.

EPÍLOGO

As cartas estavam na mesa.

O Conselho Europeu entretanto terminou. Os contornos da decisão não são ainda claros. A ideia de Plano de Reconstrução Económica parece ter vingado. Ursula von der Leyen terá o seu simulacro de Plano Marshall, embora tal analogia seja ofensiva para a memória dos que o tornaram possível nos anos pós 2ª Guerra Mundial e para quem nele trabalhou como um dos patronos deste blogue, Albert O. Hirschman. Mas pelo que li o Fundo para a Reconstrução terá de ser construído no âmbito do novo Quadro Financeiro Plurianual, acompanhado do novo orçamento plurianual. Vejam as cartas possíveis e interpretem a decisão.

Até 6 de maio haverá tempo para novas especulações e diplomacias de dimensão.

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