terça-feira, 21 de abril de 2020

PÓS-GUERRA



(Sou dos que penso que é tonto, e perdoe-me quem a isso recorreu, utilizar analogias ou metáforas com a guerra ou os períodos de guerra para compreender a crise sanitária. Em coerência com a minha posição, dei comigo nos últimos dias a revisitar um dos meus livros de cabeceira, volumoso e pesado quanto baste, o Pós-Guerra de Tony Judt.)

A minha geração nasceu já com a Segunda Guerra Mundial prática e artificialmente esquecida. Isso parece paradoxal mas Judt explica porque esse esquecimento acelerado convinha aos governos que tiveram a pesada responsabilidade de conduzir a recuperação sob escombros e dimensões desumanas de perdas nos vencedores e nos vencidos. E explica também que foram substancialmente diferentes os modos como os resistentes à ocupação nazi acabaram ou não por ser integrados na vida política partidária. O mesmo se diga em relação à dependência técnica que a reconstrução alemã promovida inicialmente pelos Aliados enfrentou de quadros superiores e técnicos manifestamente nazis. Mas não é dessa questão que queria falar hoje.

É verdade que nas nossas famílias foi sempre possível recuperar uma narrativa ou outra de memórias de guerra, sobretudo das privações materiais que ela provocou. Tais narrativas definharam com os próprios transmissores e devemos reconhecê-lo que o impacto em Portugal foi incomparavelmente mais brando e longínquo do que o suportado por quem viveu a ocupação opressora alemã. Retirando o cinema, a literatura e a própria história que sempre puderam manter viva a memória, a vida normal encarregou-se de ir apagando referências. Por isso, quando surge a metáfora da guerra para comunicar a gravidade da crise sanitária ainda em curso, apesar dos indicadores esperançosos que vão aparecendo, muito pouca gente compreende a não pertinência da analogia. Para não falar no insulto aos que viveram a guerra, qualquer que ela fosse, comparando as suas privações com a quarentena em que estamos empenhados, não esquecendo a tragédia das mortes prematuras e sobretudo as penalizadoras condições em que muitos separam dos seus mortos.

Tive assim necessidade de completar a leitura da monumental obra de Tony Judt, PÓS-GUERRA – História da Europa desde 1945, numa magnífica edição das Edições 70, que tinha lido por partes em função dos meus interesses de história e política económica. Fazia-o sobretudo para contextualizar aos alunos o chamado período do crescimento dourado dos anos 50 e primeira metade (até ao Maio de 1968) no qual a Europa foi reconcebida como projeto coletivo.

A citação de Judt que vos proponho é simbólica dos ensinamentos que tenho recuperado de leituras longínquas:

Esta desconfiança perante a memória mais recente, a procura de mitos úteis de antifascismo – uma Alemanha de antinazis, uma França de resistentes ou uma Polónia de vítimas – foi o legado invisível mais importante da Segunda Guerra Mundial. No seu aspeto positivo, facilitou a recuperação nacional, ao permitir que homens como o marechal Tito, Charles de Gaulle ou Konrad Adenauer proporcionassem aos seus compatriotas uma explicação plausível e até digna de orgulho acerca de si mesmos. Até a Alemanha de Leste reclamou para si uma origem nobre, uma tradição inventada: o lendário e em parte forjado “levantamento” comunista em Buchenwald, em Abril de 1945. Estes relatos permitiram aos países que sofreram passivamente a guerra, como a Holanda, pôr de parte os seus comprometimentos e, aos que dirigiram o seu ativismo numa direção que se revelou errada, como a Croácia, sepulta-lo numa história confusa de heroísmos rivais.
Sem esta amnésia coletiva, a recuperação espantosa da Europa no pós-guerra não teria sido possível. É claro que muito do que foi afastado dos espíritos haveria de regressar depois de uma maneira desagradável. Todavia, só muito mais tarde se tornaria claro quanto a Europa do pós-guerra dependia de mitos fundadores que se dissolveriam e se transformariam com o passar dos anos. Dadas as circunstâncias de 1945, num continente coberto de ruínas, havia muito a ganhar se os europeus agissem como se o passado estivesse realmente morto e enterrado e estivesse para despontar uma nova época. O preço pago foi um certo esquecimento seletivo por parte de todos, nomeadamente na Alemanha. Mas nessa altura, sobretudo na Alemanha, havia muito para esquecer.” (pag. 83)

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