(Sou dos
que penso que é tonto, e perdoe-me quem a isso recorreu, utilizar analogias ou
metáforas com a guerra ou os períodos de guerra para compreender a crise
sanitária. Em coerência com a minha posição, dei comigo nos últimos dias
a revisitar um dos meus livros de cabeceira, volumoso e pesado quanto baste, o
Pós-Guerra de Tony Judt.)
A minha geração nasceu já com a Segunda Guerra Mundial prática
e artificialmente esquecida. Isso parece paradoxal mas Judt explica porque esse
esquecimento acelerado convinha aos governos que tiveram a pesada
responsabilidade de conduzir a recuperação sob escombros e dimensões desumanas
de perdas nos vencedores e nos vencidos. E explica também que foram
substancialmente diferentes os modos como os resistentes à ocupação nazi
acabaram ou não por ser integrados na vida política partidária. O mesmo se diga
em relação à dependência técnica que a reconstrução alemã promovida inicialmente
pelos Aliados enfrentou de quadros superiores e técnicos manifestamente nazis. Mas
não é dessa questão que queria falar hoje.
É verdade que nas nossas famílias foi sempre possível
recuperar uma narrativa ou outra de memórias de guerra, sobretudo das privações
materiais que ela provocou. Tais narrativas definharam com os próprios
transmissores e devemos reconhecê-lo que o impacto em Portugal foi incomparavelmente
mais brando e longínquo do que o suportado por quem viveu a ocupação opressora alemã.
Retirando o cinema, a literatura e a própria história que sempre puderam manter
viva a memória, a vida normal encarregou-se de ir apagando referências. Por
isso, quando surge a metáfora da guerra para comunicar a gravidade da crise sanitária
ainda em curso, apesar dos indicadores esperançosos que vão aparecendo, muito
pouca gente compreende a não pertinência da analogia. Para não falar no insulto
aos que viveram a guerra, qualquer que ela fosse, comparando as suas privações
com a quarentena em que estamos empenhados, não esquecendo a tragédia das
mortes prematuras e sobretudo as penalizadoras condições em que muitos separam
dos seus mortos.
Tive assim necessidade de completar a leitura da monumental
obra de Tony Judt, PÓS-GUERRA – História da
Europa desde 1945, numa magnífica edição das Edições 70, que tinha
lido por partes em função dos meus interesses de história e política económica.
Fazia-o sobretudo para contextualizar aos alunos o chamado período do crescimento
dourado dos anos 50 e primeira metade (até ao Maio de 1968) no qual a Europa
foi reconcebida como projeto coletivo.
A citação de Judt que vos proponho é simbólica dos
ensinamentos que tenho recuperado de leituras longínquas:
“Esta
desconfiança perante a memória mais recente, a procura de mitos úteis de
antifascismo – uma Alemanha de antinazis, uma França de resistentes ou uma
Polónia de vítimas – foi o legado invisível mais importante da Segunda Guerra
Mundial. No seu aspeto positivo, facilitou a recuperação nacional, ao permitir
que homens como o marechal Tito, Charles de Gaulle ou Konrad Adenauer
proporcionassem aos seus compatriotas uma explicação plausível e até digna de
orgulho acerca de si mesmos. Até a Alemanha de Leste reclamou para si uma
origem nobre, uma tradição inventada: o lendário e em parte forjado “levantamento”
comunista em Buchenwald, em Abril de 1945. Estes relatos permitiram aos países
que sofreram passivamente a guerra, como a Holanda, pôr de parte os seus
comprometimentos e, aos que dirigiram o seu ativismo numa direção que se
revelou errada, como a Croácia, sepulta-lo numa história confusa de heroísmos rivais.
Sem esta amnésia
coletiva, a recuperação espantosa da Europa no pós-guerra não teria sido
possível. É claro que muito do que foi afastado dos espíritos haveria de
regressar depois de uma maneira desagradável. Todavia, só muito mais tarde se
tornaria claro quanto a Europa do pós-guerra dependia de mitos fundadores que
se dissolveriam e se transformariam com o passar dos anos. Dadas as circunstâncias
de 1945, num continente coberto de ruínas, havia muito a ganhar se os europeus
agissem como se o passado estivesse realmente morto e enterrado e estivesse
para despontar uma nova época. O preço pago foi um certo esquecimento seletivo
por parte de todos, nomeadamente na Alemanha. Mas nessa altura, sobretudo na
Alemanha, havia muito para esquecer.” (pag. 83)
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