domingo, 31 de outubro de 2021

VERTIGEM

(cartoon de Agustin Sciammarella, http://elpais.com) 

O “El País” tem seguido com algum cuidado e atenção o que se vai passando na política portuguesa. Chama-lhe “vertigem”.

 

Sendo que, nós por cá, vamos sendo acrescidamente inundados por análises e contra-análises a um ritmo alucinante e absolutamente impeditivo de uma leitura minimamente objetiva e ponderada. Não quererei entrar muito por ai, não necessariamente por subscrever a opinião de Catarina Martins em entrevista ao “Expresso” (“não interessa a ninguém fazer autópsias”), mas principalmente porque a fase atual do processo é já a de uma pré-campanha eleitoral em que o passa-culpas e a autodefesa imperam sob os mais diversos planos argumentativos — basta ouvir Louçã a declarar a sua certeza de que tudo isto proveio de uma irresistível vontade de Costa em chegar a uma maioria absoluta, por um lado, ou Augusto Santos Silva e outros socialistas a acusarem a esquerda à sua esquerda de uma tomada de posição incompreensível e antipatriótica, por outro. Enquanto Costa já fez o delete do passado recente para se colocar em modo integralmente eleitoral (para o que até Leão vai ter de abrir mais os cordões à bolsa).

(Cartoon do António, https://expresso.pt)

À direita, impera a bagunça. Com o CDS em completa desorientação — Chicão é mesmo o coveiro de um partido que perdeu a sua razão de ser, enquanto Nuno Melo alcançou finalmente uma auréola, a da resistência em nome da dignidade, que ninguém verdadeiramente lhe reconhece — e o PSD em jogos de bastidores que culminarão no Conselho Nacional do próximo sábado — Rangel corre contra o tempo e procura somar apoios, sobretudo de pessoas credíveis e com pensamento, e Rio esgrime argumentos razoáveis (a desunião do partido neste momento em que a unidade seria determinante) mas provavelmente tardios. Em paralelo, “Chega” e “Iniciativa Liberal” ganham razões de motivação e esperança num bom resultado, embora não esteja muito certo de que a luta do PSD não possa roubar-lhes boa parte desse capital que muitos dão por adquirido.


As minhas sondagens de rua, por fim, são algo contraditórias: há os que acham que agora só faz sentido votar em Costa e tudo o mais é conversa sem sentido (até para castigar devidamente a “traição” do Bloco e do PCP), os que pensam que a “Iniciativa Liberal” é o voto útil das próximas eleições (para dar força aos liberais numa potencial hipótese de coligação com um PSD insuficientemente vencedor), os que entendem que a manutenção do status quo seria a melhor solução e a única capaz de viabilizar uma “geringonça” recauchutada e os que fazem figas por uma qualquer espécie de Bloco Central excecional (Teresa de Sousa chama-lhe “informal” no “Público” de hoje) para garantir uma recuperação económica mais consistente.


De Marcelo, prefiro nem falar!

MARTHA ARGERICH RACONTE

 

(Cemitérios no horizonte, chuva miudinha e persistente que nos envolve, humedece e também relaxa, regresso ao ninho depois de alguns dias em Lisboa, condições imbatíveis para uma tarde de leitura e música, muita música. Martha Argerich Raconte é uma feliz digressão de Olivier Bellamy por entrevistas com a minha diva pianista, pequenas preciosidades para entender o contexto que a rodeia aos oitenta anos, nós sempre com o temor de um percalço qualquer que precipite o fim de uma carreira que queremos ainda mais longa para o prazer dos nossos ouvidos. É um livro diferente, coligido por alguém que conhece há longo tempo a pianista e que é aliás o autor da célebre biografia de Argerich, datada de 2011, mas que é uma preciosa ajuda para contextualizarmos o que representa aquela vida para muita gente.

Martha Argerich Raconte (edição Buchet-Castel de 2021 tal como o já foi a biografia “Martha Argerich l’enfant et les sortilèges” de 2011) é uma digressão leve e até divertida de entrevistas de há pelo menos dezassete anos até ao presente, conduzida pelo escritor/jornalista com trabalho para o Le Monde. Pelo contexto das entrevistas pode perceber-se o temor do jornalista perante os diferentes momentos de aproximação à diva, mas também inúmeros traços de comportamento, de proximidades e cumplicidades da pianista, que nos ajudam a perceber melhor a sua maneira ímpar de construir uma carreira, com muita gente em seu redor.

Recolho um pouco aleatoriamente algumas passagens do livro que permitem compreender o fascínio de Bellamy pela pianista, que me atrevo a traduzir do francês para português, embora pressinta que vou deixar cair muito do encanto das palavras na versão original.

Logo no começo:

Se Martha não tivesse tocado uma nota de piano que seja ao longo da sua vida, seria exatamente a mesma: espírito vivo e corpo com relutância em mexer-se, olhos de estátua etrusca, perfil de gamo. E que posição de cabeça! Cabelos de rainha assíria, cabeleira de cigana, juba de druida, ar de vidente da boa aventura. Diamante não esculpido, monumento coberto de amoras e ervas loucas, barco com a popa assoreada e a proa fulgurante de brilho, criança aborrecida, lutadora não violenta, caçarola com leite ao fogo, zeladora firme do seu espaço donde exalam perfumes desconhecidos, arco íris sorrindo para as nuvens, adolescente que desperta subitamente com um riso metálico, que bebe café e mais café, cola mais cola, eterna estrangeira que permanece, o que quer que faça, o centro de todos os olhares e de todas as atenções”.

E mais para o fim:

(…) Porquê fazer os impossíveis para obter um bilhete para um concerto? Porquê a espera para perceber a sua presença, para a ver alguns segundos ou passar algum tempo com ela? Porquê todas estas noites à procura do sono antes e depois esse acontecimento?

Não há uma resposta simples. Não se trata apenas de ouvir boa música para tentar prolongar esse instante delicioso por todos os meios. A razão é que Martha Argerich é um desses seres raros que estão em ligação com o intangível, o indescritível, a origem e o fim de qualquer coisa”.

Diria que quem escreve assim está vidrado pela personagem.

Mas o Martha Argerich Raconte é muito mais do que o fascínio do entrevistador pela entrevistada. É também a oportunidade para compreender as afinidades com os amigos de todos os dias, Nelson Freire, Daniel Barenboim, as filhas, os jovens dos encontros de Lugano, os grandes Amores e a veneração pelos grandes compositores que interpreta, Beethoven na frente, Schumman e outros.

A tarde desliza fluida pela leitura.

sábado, 30 de outubro de 2021

PARADOXO

 

                                                    (New York Times)

(A imagem que abre este post fui buscá-la com a devida vénia ao New York Times que a utiliza para enquadrar a crónica de Paul Krugman que também fornece algumas achas para o tema. Mas paradoxo porquê? Paradoxo porque o mundo vive um momento de auge tecnológico, seja visto sob o prisma da chamada Indústria 4.0, seja sob a perspetiva mais lata da transformação digital mais global e apesar disso enfrenta fenómenos de escassez e de quebras de abastecimento que lembram outros tempos, de mais baixo orgulho tecnológico. Como já o referi neste espaço, a clivagem fenómenos temporários versus problemas que persistirão no futuro já não parece ser o contexto mais favorável para se ir além do paradoxo. O que talvez tenhamos pela frente não é uma falha tecnológica mas talvez antes um problema de governação à escala global e se assim acontecer a questão pia mais fino.

O objetivo do artigo de Krugman (link aqui) é obviamente situar-se no contexto político americano de momento onde a entrada de leão de Joe Biden se vê agora a braços com problemas de oferta que não resultam de áreas de jurisdição nem nacionais nem muito menos de interferência possível direta do Presidente americano. E a questão mais dolorosa é que Trump está aí de novo a procurar capitalizar esta quebra de fornecimentos e sobretudo de complicações energéticas (essencialmente de gás) com reflexos na vida dos americanos. Se no Reino Unido uma deficiente preparação logística, incluindo a de recursos humanos para o pós-Brexit, terá exacerbado problemas de défices de oferta, particularmente de combustíveis, a economia americana está longe de acusar a mesma gravidade de situações.

Mas a situação transforma-se em caldo favorável ao discurso populista. Todas as evidências disponíveis apontam para problemas de perturbação de cadeias de valor globais, portanto do foro íntimo da economia mundial enquanto tal e para problemas na formação de preços a essa escala, como parece ser por exemplo o exemplo da energia e particularmente do preço do gás natural. Porém, embora do foro global, a verdade é que as consequências de tais perturbações se projetam nos planos nacionais e aí os populismos encontram campo fértil.

E estamos obviamente enredados no problema de sempre. A globalização evoluiu e procurou a vida do aprofundamento da integração económica, mas as políticas económicas permaneceram ancoradas na esfera de influência do velho e perturbado Estado-nação. Para mais, como sucede hoje em dia, quando algum dos mecanismos de que se alimenta a economia global os seus efeitos projetam-se na escala do dia a dia e, de repente, tudo parece deixar de ser global para afinal ter uma existência nacional/local.

Ontem, na linha do que António Guerreiro sublinhava com subtileza no ÍPSILON, mencionei que poderíamos viver um tempo estranho de objetivamente ninguém poder datar o pós-COVID e, simultaneamente, o comportamento de consumo e despesa após os desconfinamentos ter ultrapassado níveis anteriores ao início da pandemia e processos de confinamento e estar a demorar mais do que o esperado para regressar a esses níveis.

Se a recuperação após a crise de 2007-2008 foi agónica e longe de ser sustentada, a recuperação pandémica, para além de não a podermos datar com facilidade, é pelo menos estranha e levanta o espantalho da inflação. Para já os que se apressaram a reconhecer aqui um caso de “estagflação” do tipo da observada nos anos 70, com inflação e desemprego, a comparação parece ter sido precipitada. Alguns fenómenos de escassez de mão-de-obra estarão a manifestar-se nos mercados de trabalho, provavelmente alimentados pelo facto da economia do trabalho não ter no tempo recente qualquer exemplo comparativo de recuperação de uma pandemia devastadora que atingiu o mundo e que atingiu por estes os 5 milhões de mortes oficialmente declaradas como causadas pelo COVID. O fenómeno do desencorajamento do regresso ao mercado de trabalho induzido pelo confinamento e até o abandono precoce de alguns grupos etários mais velhos poderão estar a fazer-se sentir. Claro que essas manifestações de escassez de mão-de-obra e as roturas de oferta mundial em alguns domínios-chave para a economia mundial claro que são preocupantes do ponto de vista do efeito de propagação e reprodução de tensões inflacionistas. Daí eu falar de uma recuperação estranha, que coloca aos bancos centrais fortes exigências de sensibilidade, pois não estamos perante um caso normal de sobreaquecimento económico.

DA FADIGA FISCAL

(cartoon de Idígoras y Pachi, http://www.elmundo.es) 

Tenho acumulado comprovativos concretos de que a fadiga fiscal terá atingido mesmo um ponto de não retorno no nosso jardim à beira-mar plantado. Mais do que razões, que também contam, associadas à nossa competitividade e atratividade, são os cidadãos que pagam impostos — leia-se a classe média que vamos tendo e os jovens em início de vida — os principais atingidos e os grandes descontentes com um tal estado de coisas (que contribui, ademais, para alimentar populismos indecorosos). A situação não é diferente na “vizinha Espanha”, onde Pedro Sánchez navega igualmente à vista (até com alguns caricatos requintes suplementares) e igualmente atrelado a um quadro político pouco mais do que insustentável. Em contraste, o bom senso e a experiente lucidez de Mario Draghi sobressaem nas opções do orçamento italiano, onde a carga fiscal surge reduzida de modo tão significativo quanto os menos 12 mil milhões de receita de que prescindirá. Um exemplo a observar, sem prejuízo do fator adicional que advém do nosso triste estado de necessidade.


sexta-feira, 29 de outubro de 2021

PRAÇA DOS LEÕES, ONTEM E HOJE

Perdoar-me-ão este registo de natureza muito pessoalizada, mas este 29 de outubro (data que há um ano marcou o meu adeus ao edifício da Rua Dona Estefânia) foi o dia em que desci a escadaria da Universidade do Porto em diferente condição das tantas e tantas de há cinquenta anos e subsequentes; assim como o dia em por lá rondei salas que ocupam espaços que foram os dos anfiteatros das teóricas de Matemáticas Gerais e Análise Infinitesimal (sem, todavia, ter subido ao sótão onde frequentei aulas de Economia durante os quatro anos que precederam o 25 de abril). Tudo isto porque aceitei, com gosto e honra, a possibilidade de ser parte de um coletivo que procurará ser parte ativa de caminhos de reforço e sustentabilidade para a Instituição. Uma Instituição cujo continuado fortalecimento e crescente capacidade de inovação é absolutamente crucial para os destinos da Região e do País.

NA GULBENKIAN

 

(Há longo tempo que hesitava na ida a um concerto, tamanho foi o efeito reflexo que a pandemia e os confinamentos determinaram. Hoje, um dos nossos intelectuais mais assumidos, António Guerreiro, no ÍPSILON do Público, chamava a atenção com fino rigor de que nos próximos tempos será praticamente impossível “decretar” o pós-COVID. Nesse contexto, ficar mais tempo arredado do simbolismo de um concerto pareceu-me descabido. Calhou ser na Gulbenkian, a Casa da Música que me perdoe e não me arrependi. Tenho de confessar que a minha escolha por este programa se deveu à presença de Lisa Batiashvili, uma violinista de que gosto muito. Quis o destino que, por motivos que desconheço, a Lisa Batiashvili não pôde estar presente e acabou por ser substituído por uma jovem promessa do violino, Daniel Lazokovich, Concerto para Violino e Orquestra n.º 1, em Sol menor, op. 26 de Max Bruch, um compositor do romantismo tardio ou do último romantismo.

 

Retirando alguns idiotas, regra geral de idade mais avançada, que insistem em manter a máscara fora do nariz, o concerto só me trouxe surpresas para a minha inacabada e tardia formação musical, sempre com a orientação entusiasta de Lorenzo Viotti, que passou de maestro titular a maestro convidado:

  • A abertura da ópera Oberon de Carl Maria von Weber;
  • Um deslumbrante Concerto para Violino e Orquestra n.º 1, em Sol menor, op. 26 de Max Bruch, um complemento de formação precioso pois praticamente desconhecia a importância de Bruch no romantismo;
  • E, finalmente, uma preciosa obra de Richard Strauss para 23 instrumentos de cordas, Metamorfoses.

Nunca tinha visto o auditório da Gulbenkian tão empolgado. Talvez porque, tal como eu, a recuperação do simbolismo de um concerto, mesmo sem o pós-CVID estar decretado, estava ali a ser conseguido. E sobretudo a certeza de ter de seguir Daniel Lazokovich. Quanto à Lisa Batiashvili fica para outro dia.